Por Luiz Magno Bastos Junior, Advogado eleitoralista. Doutor em Direito (UFSC) e Pós-Doutor em Direitos Humanos (McGill University, Montreal). Membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político e da Academia Catarinense de Direito Eleitoral. Membro das Comissões de Direito Eleitoral e de Direito Constitucional da OAB/SC. Professor do Mestrado e Doutorado em Ciência Jurídica e da Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí.
Desde que foi aprovada a Emenda da Reeleição (EC n. 16/97), a Lei Geral das Eleições procurou conter um dos efeitos imediatos daí decorrentes: a flagrante desigualdade de oportunidades entre o atual mandatário e qualquer outro candidato que pretenda sucedê-lo.
A desigualdade é tamanha (e insuperável) que, em minhas aulas de direito constitucional, costumo de dizer que só consigo compreender a legitimidade do instituto da reeleição se o mandato do Executivo for compreendido como um mandato de 8 (oito) anos, com a necessidade de submissão a um referendo popular no meio do percurso. Um recall institucionalizado e pré-definido que faria as vezes de uma moção de confiança. Ou seja, muito mais do que uma decisão de revogação de mandato, seria uma espécie de renovação da confiança depositada no representante.
É óbvio que essa analogia é precária e representa, muito mais, uma percepção pessoal sobre o impacto que a reeleição causa na garantia constitucional de igualdade de oportunidades. Reconheço ainda que esta medida é saudada por alguns como um incentivo ao “voto prospectivo” (voto centrado na premiação do “bom” administrador) e, ainda, que existem estudos que demonstram não ter sido significativa a vantagem em eleições municipais realizadas desde então.
O fato é que, exitosa ou não a empreitada, o empenho do mandatário em obter êxito no pleito em que concorre a reeleição é, em geral, mais intenso do que o esforço empreendido para emplacar o seu sucessor. Afinal de contas, ninguém gosta de perder eleições e, mais ainda, perder uma disputa em que concorre à reeleição pode representar risco concreto à sua “sobrevivência política”.
Esse maior engajamento, não raras vezes, repercute em um maior envolvimento da máquina administrativa no esforço eleitoral. Ou melhor, o esforço de determinados servidores motivados por convicção política, por espírito cívico e, também, por óbvio, com desejo de manutenção de suas posições. Todas elas motivações igualmente legítimas.
A questão fundamental (e de difícil equacionamento) consiste em discutir qual o limite para esse engajamento. Quais condutas administrativas podem ser reconhecidas como aceitáveis? E, entre essas irregularidades, quais seriam aquelas capazes de justificar a mais graves de todas as sanções em matéria eleitoral: a perda do mandato.
Trata-se da mais grave sanção porque ela atinge (e pune) não somente o agente político que a realiza (ou dela se beneficia), mas retira do eleitor o direito de escolha, ou pior ainda, anula a escolha que fez no exercício de seu direito fundamental de participação democrática. A intervenção da Justiça Eleitoral, portanto, só estaria constitucionalmente autorizada tendo em vista o dever constitucional de se assegurar a legitimidade do pleito (abuso de poder econônico, corrupção ou fraude), nos termos do art. 14, § 10 da Constituição Federal.
A (tentativa) de resposta veio com a edição da Lei Geral e com a estabilização das condutas proibidas com uma pretensão de permanência. A lei passou a definir um conjunto de situações em que se presumia a existência de desequilíbrio eleitoral: as chamadas condutas vedadas.
Pronto. Fiat lux! A desigualdade de oportunidades seria combatida através da definição de um conjunto de proibições, definidas a partir da consolidação de práticas institucionais a serem combatidas.
Mas a estória não é bem assim. Se as transformações sociais dependessem da edição de boas leis e de virtuosas boas intenções, estaríamos mais próximos da consciência cívica das democracias escandinavas do que atualmente estamos.
Além disso, a própria lei também tem os seus problemas que, muitas vezes, parecem ser válvulas de escape colocadas intencionalmente na norma por parte daqueles que podem se beneficiar delas: a classe política. Essa, no entanto, é questão a ser discutida em outro post.
Voltemos, pois, às condutas vedadas. Mais especificamente, àquela a que me propus discutir nessa postagem: a regulação da publicidade institucional.
A lei previu originariamente dois tipos de restrição à veiculação de publicidade institucional em anos eleitorais: (i) proibiu que fosse veiculada durante o período crítico das eleições (nos três meses que antecedem o pleito); e (ii) restringiu o limite de gastos com esta rubrica durante o ano eleitoral.
Qual o critério a ser utilizado para estabelecer este limite? A lei estabelecia ser vedado ao administrador “realizar, em ano de eleição, despesas com publicidade” “que excedam a média dos gastos nos três últimos anos que antecedem o pleito ou do último ano imediatamente anterior à eleição”.
Este dispositivo apresentava, de imediato, duas questões interpretativas relevantes: a primeira, qual dos valores deve ser considerado o teto já que a lei usa a conjunção “ou”?; a segunda, a lei autoriza que sejam efetuados gastos em um único semestre equivalentes a média dos gastos do ano anterior ou a metade dos gastos?
Em relação à primeira questão, a Justiça Eleitoral consolidou o entendimento de que deveria ser adotado o “menor” dos dois valores obtidos. Pretendia-se diminuir, dessa forma, as diferenças de uma relação já diferenciada. A questão revelar-se-ia ainda mais evidente nas hipóteses em que o administrador aumentasse, no ano imediatamente anterior ao das eleições, as despesas com essa rubrica (o que o beneficiaria, em tese, duas vezes: pelo aumento da exposição de mensagens positivas sobre a administração e o próprio aumento do limite para gastos no ano eleitoral propriamente dito).
Uma vez mais, a Justiça Eleitoral via-se diante de uma difícil “escolha”: aplicar interpretação de norma restritiva de direitos de forma extensiva (contrariando sua função contra majoritária de garantia de direitos) ou avalizar condutas destinadas a fraudar o limite legal fixado (guardiã da legitimidade dos pleitos eleitorais)?
Em relação à segunda questão, a Justiça Eleitoral aplicou o entendimento mais garantista segundo o qual o Judiciário não poderia ampliar a restrição para além do limite textual da norma. Esse entendimento, no entanto, mudou. Por provocação da Corte Eleitoral catarinense, que deliberadamente defendia a necessidade de revisão desse critério de interpretação, o Tribunal Superior Eleitoral sinalizou que iria mudar o seu entendimento sobre o tema.
Em decisão proferida em 24.3.2015 (REspE n. 336-45), o Tribunal Superior Eleitoral manteve a cassação de prefeito por prática de conduta vedada relacionada à veiculação de publicidade institucional. Apesar de não ter sido o fundamento único do acórdão (já que o Regional havia reconhecido que existia ofensa ao princípio da impessoalidade nessas publicações institucionais), o TSE não infirmou essa premissa. E, nesse julgamento, admoestou sobre a necessidade de mudança desse critério.
Como resposta a essa provocação, a questão foi incluída na agenda da reforma política e eleitoral, que tramitou durante o ano de 2015, de maneira açodada e virada de costas para as ruas. A matéria foi, enfim, incorporada ao texto da Lei Geral das Eleições, por força da (mais nova) minirreforma (a Lei n. 13.165/2015).
O parâmetro de aferição dos gastos passou a ser o primeiro semestre de cada ano. Tanto na definição da conduta a ser regulada (as despesas com publicidade no primeiro semestre do ano), quanto na definição do parâmetro de referência (leva-se em conta, exclusivamente, a média dos gastos realizados no primeiro semestre dos três últimos anos).
Sem dúvida, a alteração provoca uma racionalização da utilização dos recursos e oferece uma solução aparentemente mais equânime em relação à utilização de uma importante ferramenta de propaganda eleitoral antecipada (a veiculação da imagem de boa administração).
Refiro-me propositadamente à expressão “propaganda eleitoral antecipada” sem deixar de reconhecer que, de acordo com a jurisprudência consolidada do TSE, não é qualquer publicidade institucional que está apta a configurar “propaganda antecipada”, mas aquela por meio da qual ocorre alusão ao pleito vindouro, ou ainda, que promove a imagem do próprio administrador (configurado ofensa autônoma ao princípio da impessoalidade).
Refiro-me aqui à “propaganda antecipada” em um sentido mais amplo. Em relação à vantagem (lícita) decorrente da exposição reiterada da imagem de “boa administração” que, em um contexto de redução do tempo de propaganda eleitoral estrito senso, representa um aumento significativo na vantagem competitiva do atual ocupante do cargo público (ou daquele por si apoiado). Questão muito bem apontada no paradoxo apresentado pelo brilhante e provocativo colega Fernando Neisser, no post que me antecedeu em nosso e-Leitor.
Indubitavelmente, nesse ponto, a minirreforma andou bem ao estabelecer critérios mais condizentes com o propósito definido na norma de preservar a igualdade de oportunidades. Questão igualmente ressaltada de maneira bastante precisa pelo eminente Ministro do TSE, Henrique Neves, no post que inaugurou essa coluna.
A crítica aqui dirigida vai em duas direções: a primeira, naquilo em que a norma deixou de regular e, por conseguinte, deixa margem a inúmeras controvérsias quanto à configuração do ilícito eleitoral; a segunda, na falta de clareza por parte da jurisprudência eleitoral quanto aos critérios a serem utilizados para se aferir o abuso a justificar a medida extrema de cassação do registro do candidato, ou seu diploma caso tenha sido eleito.
A primeira questão diz respeito à qualificação do que vem a ser “publicidade institucional”. A segunda diz respeito aos critérios a serem utilizados para que a Justiça Eleitoral aplica a sanção mais extrema de cassação do mandato.
O enfrentamento dessas questões é ainda mais necessário quando se está às vésperas de eleições municipais gerais. Maravilhoso palco para experimentação jurisprudencial. Quando ocorrem eleições em mais de 5 mil municípios, com as mais variadas características.
A primeira dificuldade decorre da falta de definição legal sobre o sentido e alcance a ser atribuído à expressão “publicidade institucional”. Afinal de contas, quais tipos de gastos este conceito engloba. Isso é assim porque o conceito pode compreender diversas espécies de despesas: publicações legais, confecção de material publicitário de campanhas específicas, despesas com informações de obras públicas, diferentes ações junto às empresas de comunicação (produção de programas de rádios e TV) e, inclusive, diversas despesas “ordinárias” do setor de comunicação social da entidade.
Ocorre que esse conjunto tão díspar de despesas não é classificado sob a mesma rubrica orçamentária. As leis orçamentárias distribuem esses gastos em diferentes rubricas que, ainda, são objeto de regulamentações específicas por parte dos Tribunais de Contas que impedem (ou dificultam) um inteiro controle sobre a execução dessas despesas. Tanto em relação aos órgãos internos de controle. Quanto em relação às instâncias de controle da aplicabilidade do limite definido na lei eleitoral.
Nos processos eleitorais, chegam-se a números que são adotados como verdades insofismáveis, sem que se tenha, muitas vezes, apreciada a natureza dessas despesas. Despesas são glosadas (excluídas do montante), ou são incluídas no cálculo, com base em informações pouco precisas. Muitas vezes, tão-somente, pela descrição feita na nota de empenho.
Esta imprecisão da norma (e o descompasso entre o seu propósito e o que ela consegue regular) está diretamente relacionada à inclusão de um elemento estranho ao direito eleitoral, o direito orçamentário. Ao utilizar de parâmetro externo para aferição das condutas vedadas, notadamente, afeito ao controle externo exercido pelos Tribunais de Contas, essas imprecisões tendem a se avolumar pela falta de um diálogo claro entre estas instâncias de controle.
Ainda que a norma regulamentasse com mais precisão esse aspecto, ela seria capaz de dirimir estas controvérsias? Em que medida o Tribunal Superior Eleitoral está legitimado a regulamentar essa questão? A necessidade de clareza sobre este elemento (publicidade institucional) se compatibiliza com as necessidades de definição de parâmetros de controle (interno e externo) da Administração Pública? Há espaço para harmonização regulamentar dessa matéria em relação aos diferentes tribunais de contas do país?
Nesse quesito, não faltam incertezas. Há muitos caminhos para burlar o sistema de controles. Há muitas surpresas que podem se apresentar aos administradores que pretendem ater-se aos limites legais.
A segunda questão, relacionada à aplicação da sanção extrema de cassação do diploma, diz respeito à própria percepção sobre o papel a ser exercido pelo Poder Judiciário no exercício do controle de legitimidade do pleito.
A Justiça Eleitoral tem a função messiânica de purificação das eleições e das práticas institucionais? Ou a Justiça Eleitoral deve atuar como última barreira do controle da legalidade?
Mais uma vez, estamos diante de uma tormentosa questão que está a desafiar uma postagem especifica, ou melhor, uma reflexão bastante abrangente sobre qual Justiça Eleitoral temos e queremos ter.
Pois bem, por hora, voltemos à questão referente à publicidade institucional.
O problema que se apresenta é quais os critérios devem ser levados em conta para que a Justiça Eleitoral reconheça que a extrapolação dos gastos permitidos seja capaz de ferir de morte a legitimidade do pleito?
É necessário que discutamos isso de maneira mais clara para que sejam evitadas restrições indevidas no direito de sufrágio da população, manifestado através de eleições livres, diretas e periódicas.
De plano, contudo, creio que algumas premissas parecem-me inaceitáveis.
(i) toda reeleição, per si, afeta o desequilíbrio do pleito. Portanto, a Justiça Eleitoral deve ser menos tolerante a extrapolações nas condutas vedadas.
Esse argumento é perigoso. No fundo, ele está ancorado em uma pré-compreensão de que a reeleição é um mal em si e deve ser combatida. Posso não gostar da reeleição (e como vocês puderam perceber antes, possuo profundas reservas quanto ao instituto), mas ele tem índole constitucional. Enquanto essa regra se mantiver, ela integra o parâmetro de controle de legitimidade das eleições. Isto posto, a medida extrema de cassação não pode ser feita com base em juízo baseado em violação a dispositivo que presume o desequilíbrio do pleito (art. 73 da Lei Geral das Eleições), mas deve estar assentada em um juízo fundamentado sobre a existência concreta de abuso, corrupção ou fraude (art. 14, § 10 da CF). Em se tratando de publicidade institucional, esse juízo concreto exige que sejam considerados outros elementos que não a extrapolação dos gastos.
(ii) gastos públicos com publicidade institucional são excessivos e acabam por desviar recursos de outras áreas sensíveis.
Essa premissa é igualmente perigosa. Ao proceder dessa forma, corre-se o risco do Judiciário usurpar a competência do Poder Legislativo (responsável por aferir a legitimidade da decisão política de alocação de recursos) e, ultima ratio, da própria população a quem os representantes possuem o dever de accountability. Na arena política, é legítimo perquirir as escolhas políticas e as prioridades na alocação dos recursos públicos. Nesta seara, compartilho integralmente com essa premissa. Na arena judicial, este critério não pode ser utilizado como razão, per si, a justificar a imposição da sanção mais gravosa.
Como vocês podem perceber, trago mais inquietações do que respostas. Mas, creio, seja exatamente esta a proposta desta coluna: provocar o debate, fomentar a crítica, desinstalar.
Se por um lado, acredito que a igualdade de oportunidades representa uma quimera irrealizável. Por outro lado, creio que o desenvolvimento das instituições democráticas depende da adoção deste ideal regulativo como diretriz, como norte, como luzeiro a orientar todo nosso caminhar.
Afinal de contas, prover mecanismos capazes de assegurar o máximo de oportunidades, “em condições de igualdade”, representa exigência que transcende o nosso compromisso constitucional, mas que decorre do concerto que une a comunidade de nações latino-americanas, tendo em vista a “consolidação dos valores democráticos e para a liberdade e a solidariedade no hemisfério” (Carta Democrática Interamericana).
Acesso em: 11/03/2016
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