Por Fernando Neisser
Advogado, mestre e doutorando pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP) e do Instituto Paulista de Direito Eleitoral (IPADE). Presidente da Comissão Permanente de Estudos em Direito Político e Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).
Depois de idas e vindas, o Congresso Nacional aprovou a implantação da impressão do voto eletrônico. A Presidência da República chegou a opor veto ao dispositivo, afirmando que a medida levaria a um desmesurado acréscimo de custos, sem previsão de origem, mas o Parlamento promoveu a derrubada do óbice presidencial, mantendo a nova regra.
Com isso, a partir da próxima eleição geral, a se realizar em 2018, deverá ser criado mecanismo ligado à urna eletrônica que faça a impressão de cada voto, “que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado” (art. 59-A da L. 9.504/97).
Ora, poderia perguntar o leitor desavisado, mas esta medida não torna ainda mais seguro o sistema? Por qual razão confiar tão cegamente no sistema eletrônico, sendo possível realizar a impressão do voto e, assim, permitir uma futura conferência?
Não seria o nosso sistema vulnerável a fraudes e hackers? A impressão não melhoraria sua segurança, afastando a ameaça de violação da vontade do eleitor?
O desconhecido causa dúvida. Quando o conhecimento exigido é de ordem técnica, desconfiança ainda maior. No mundo moderno, contudo, devemos aprender a conviver com o desconhecimento técnico, uma vez que é impossível a todos saberem em detalhes tudo aquilo que é relevante em suas vidas.
Andamos de carro sem saber como funciona exatamente ou, pior, a razão pela qual ele não explode em nossas caras. Voamos em aviões, entregando as vidas a um sistema que poucos conhecem o funcionamento. Sabe-se lá como é gerada a energia que chega à minha casa. E por aí vai.
Ulrich Beck, em sua “Sociedade de Risco”, alerta para este cenário. A confiança é transmitida por avais técnicos dados pelos especialistas. Voamos por crer que os engenheiros certificaram que aquele avião voa corretamente; que as agências responsáveis fiscalizam suas condições periodicamente; que os pilotos sabem voar, uma vez que tem uma licença para tanto, etc. Não fosse assim, viveríamos todos em constante pânico.
Mas aviões caem, por vezes. Carros sofrem acidentes.
Em tudo que se faz socialmente, há risco e erro. Risco zero e possibilidade zero de erro equivalem a um custo infinito. Estamos intuitivamente acostumados com isso, sem perceber.
Quando se vai construir um prédio, opta-se pela resistência de seus materiais. Um edifício que resistisse a qualquer terremoto, maremoto, incêndio, vulcão, etc., teria um custo infinito. Obviamente, não se segue por este rumo. Admite-se, portanto, que há um ponto de equilíbrio: é o chamado risco tolerável.
O mesmo vale para os aviões, carros e urnas eletrônicas.
A questão reside, portanto, em saber qual o risco tolerável e se a impressão do voto reduz o risco com um aumento também tolerável de custos. A resposta é não para ambas as questões.
Quem já manejou um computador sabe qual é a parte que mais dá problema: a impressora. Por se tratar de um equipamento com peças móveis e funcionamento mecânico, seus erros são mais constantes do que com equipamentos eminentemente eletrônicos. O papel engasga, a tinta acaba, a impressão sai ilegível.
A proposta aprovada na Câmara dos Deputados prevê que o eleitor não terá acesso físico ao seu voto impresso. Caso levasse para casa, seria fácil para os compradores de voto verificarem o resultado da compra. Inadmissível, quebraria o sigilo da votação.
Portanto, o voto seria impresso e, provavelmente dentro de uma caixa de acrílico, iria direto para uma urna física. E quando der problema na impressora? Paralisa-se a votação? Abre-se no meio do dia a urna e tem-se acesso aos votos de quem já votou?
Além disso, quanto mais simples um equipamento, melhor ele cumpre sua função. Entre uma calculadora e um PC, a primeira faz melhor contas matemáticas. Ela tem menor possibilidade de erro; não está conectada na internet e, portanto, não pode ser contaminada.
Quando se adiciona uma impressora à urna, altera-se sua configuração e abre-se caminho para o ingresso de contaminações externas. Impressoras são excepcionais caminhos para entrada de vírus, na medida em que implicam uma porta de acesso físico à urna.
Outra questão é ainda mais grave. Hoje é impossível desembaralhar a votação dada por um eleitor. Ou seja, cada voto dado em uma eleição geral – deputado estadual, deputado federal, senador, governador e presidente -, por exemplo, é gravado em uma parte do disco da urna eletrônica.
Não há, desta forma, como saber que um determinado eleitor votou em uma combinação de candidatos. Isso protege o eleitor e garante o sigilo de seu voto.
Se houver a impressão, existirá um papel, que obviamente poderá ser acessado posteriormente pelos candidatos que queiram “verificar” a regularidade das eleições, no qual constará as combinações dadas pelos eleitores de uma determinada seção eleitoral.
Nada mais simples do que aproveitar o momento para se certificar que aquele voto comprado foi devidamente entregue. Basta ao criminoso ter elaborado em cada urna combinações diferentes e “exóticas” de votos, orientando os eleitores a segui-las.
Assim, alguém interessado em comprar votos para um deputado estadual, por exemplo, transmite ao eleitor uma combinação com candidatos supostamente incompatíveis nos outros cargos: Bolsonaro a presidente, acompanhado de um companheiro do PSTU a governador e, quem sabe, alguém do Partido Novo para senador, com um petista a deputado federal.
Com um universo pequeno de amostragem – cada urna contém no máximo quatrocentos votos -, torna-se muito difícil que esta combinação exista aleatoriamente. Assim, basta ao comprador verificar, posteriormente, se aquela combinação, que contém o voto dado ao deputado estadual beneficiado, está na urna. Em caso negativo, saberá que o eleitor deixou de cumprir com sua parte da ilicitude.
O pior de tudo não são os erros da máquina, mas o erro humano.
O eleitor erra e muito. Em outras palavras, é comum que ele não consiga transformar sua intenção de voto em voto efetivamente dado aos seus candidatos de preferência. Assim é no mundo inteiro; objeto de pesquisas infindáveis nas ciências políticas.
Ocorre que estes erros têm uma característica que os torna praticamente irrelevantes: são aleatórios. Dito de outro modo, um sujeito queria votar em A e, sem querer, vota em B. Outro, eleitor de B, acaba votando em A.
Na média, estatisticamente falando, os erros praticamente se anulam e, portanto, a decisão é tomada pelos que acertam seus votos. É o que se chama nas ciências políticas de “milagre de agregação”, fruto da irracionalidade racional que orienta a formação do voto e sua expressão nas urnas.
Agora imaginem que o eleitor deu seu voto – crendo estar certo –, aperta a tecla “confirma” e, em seguida, vê o papel com a impressão. Ocorre que ele errou, achando que votava primeiro em presidente, quando o voto era dado para uma legenda de deputados estaduais, erro muito comum. Esse eleitor entrará em desespero, dizendo que a urna modificou seu voto, que não era aquilo, etc.
E o que fazer? Novamente paralisa-se tudo? Anula-se o voto recentemente dado? Como?
Por um viés cognitivo que todos temos, é muito difícil crermos que cometemos erros deste tipo. Mas os cometemos a todo o momento. A tendência é jogar a culpa “na máquina”.
Ao invés de pacificar a sociedade, aumentando a credibilidade do sistema, a medida aprovada só irá incentivar ainda mais os questionamentos sem fundamento ao processo eleitoral.
Por fim, é preciso dizer que até hoje nunca existiu uma falha detectada no sistema de votação, totalização e apuração da Justiça Eleitoral. A comparação entre os boletins de urna e os valores totalizados jamais mostrou discrepância. As votações paralelas em urnas selecionadas aleatoriamente, jamais apontaram erro.
O que há, em verdade, é que toda eleição apertada gera a ideia que houve “armação”. Isso é comum nas cidades e, por conta do resultado de 2014, se espalhou pelo Brasil a sensação de que o voto impresso melhoraria a segurança do sistema. Apenas o pânico do desconhecido em nova forma.
Como visto, a adoção da impressão do voto, longe de tornar a votação mais segura, a enfraquece e fragiliza.
Por isso é que se espera que o Supremo Tribunal Federal, quando devidamente acionado, reconheça a inconstitucionalidade da medida, uma vez que mitiga a garantia do voto secreto, cláusula pétrea contida no art. 60, §4º, II, da Constituição Federal.
Acesso em: 22/05/2016
Leia notícia completa em:
Jota Artigos Jurídicos
www.conjur.com.br