Por Marcos Paulo de Souza Miranda
Com o advento das alterações, a propaganda eleitoral no ano de 2016 fica autorizada a partir do dia 15 de agosto próximo, quando todos os municípios do país certamente passarão a contar com adesivos, folhetos, faixas, cartazes e inscrições em seus logradouros, alterando inevitavelmente o padrão cotidiano da ambiência urbana e expondo o patrimônio cultural a situação de risco, pois como adverte Eduardo Yázigi[1]:
Os estudiosos do patrimônio já sabem há mais de meio século: tais bens só adquirem significado com suas ambiências: arquitetônica, urbanística e social. No entanto, quando os bens, tombados ou não, ficam impunemente rodeados de fatores avessos à sua nobreza, seu valor é diminuído.
Entretanto, a fim de conciliar o direito dos candidatos e dos partidos de divulgarem seus nomes, siglas e propostas, com o direito de todos a um ambiente urbano hígido, há normas, tanto na própria legislação eleitoral, quando na legislação de defesa da ordem urbanística e do patrimônio cultural, que vedam ou condicionam a colocação de propagandas eleitorais em determinados bens, com o intuito de acautelar a paisagem das cidades.
Um dos maiores objetivos de tal normatização é a preservação da estética urbana, sobre a qual Hely Lopes de Meirelles[2] ensina:
A estética urbana tem constituído perene preocupação dos povos civilizados e se acha integrada nos objetivos do moderno urbanismo, que não visa apenas às obras utilitárias, mas cuida também dos aspectos artísticos, panorâmicos, paisagísticos, monumentais e históricos, de interesse cultural, recreativo e turístico da comunidade. Na realidade, nada compromete mais a boa aparência de uma cidade que o mau gosto e a impropriedade de certos anúncios em dimensões avantajadas e cores gritantes, que tiram a vista de belos sítios urbanos e entram em conflito estético com o ambiente que os rodeia.
Nessa linha de raciocínio, o artigo 243 do Código Eleitoral é explícito ao estabelecer que não será tolerada propaganda: VIII - que prejudique a higiene e a estética urbana ou contravenha a posturas municiais ou a outra qualquer restrição de direito. Tal disposição se mostra em consonância com o Estatuto da Cidade, que define como uma das diretrizes gerais das políticas urbanas a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (artigo 2º, XII, Lei 10.257/2001).
Mas para além dos comandos gerais acima enunciados, a Lei 9.504/97, com as recentes alterações introduzidas, detalha diversas formas de propagandas eleitorais vedadas, a exemplo das abaixo destacadas.
No caput do artigo 37, de início, é vedada a veiculação de propaganda de qualquer natureza, inclusive pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do poder público, ou que a ele pertençam, e nos bens de uso comum, inclusive postes de iluminação pública, sinalização de tráfego, viadutos, passarelas, pontes, paradas de ônibus e outros equipamentos urbanos.
A veiculação de propaganda em desacordo com o disposto no caput do artigo acima mencionado sujeita o responsável, após a notificação e comprovação, à restauração do bem e, caso esta não seja cumprida no prazo, a multa no valor de R$ 2 mil a R$ 8 mil.
Em continuidade, segundo o artigo 37, parágrafo 5º nas árvores e nos jardins localizados em áreas públicas, bem como em muros, cercas e tapumes divisórios, não é permitida a colocação de propaganda eleitoral de qualquer natureza, mesmo que não lhes cause danos.
Ademais, conforme o artigo 37, parágrafo 8º, é vedada a propaganda eleitoral mediante outdoors, inclusive eletrônicos, sujeitando-se a empresa responsável, os partidos, as coligações e os candidatos à imediata retirada da propaganda irregular e ao pagamento de multa no valor de R$ 5 mil a R$ 15 mil.
Uma indagação que normalmente surge diante das regras eleitorais sobre o tema é a seguinte: seria legalmente possível a veiculação de propaganda eleitoral mediante, por exemplo, pichação, inscrição a tinta e exposição de placas, estandartes, faixas, cavaletes, bonecos e assemelhados em bens protegidos, individualmente ou em conjunto, pelo instituto do tombamento?
A resposta é negativa.
É de se ressaltar que a finalidade do tombamento, regulamentado pelo Decreto-Lei 25/37, é a conservação da integridade dos bens acerca dos quais haja um interesse público pela proteção em razão de suas características especiais.
É indiscutível a existência de um caráter funcional de que é dotado o bem cultural, enquanto voltado intrínseca e originariamente à aptidão de satisfazer um público interesse e, portanto, reconduzível à categoria geral de bens de interesse público, em relação aos quais a Administração exerce poderes ob rem.[3]
Com efeito, os bens tombados ficam submetidos a um especial regime jurídico de proteção e integram expressamente o conceito de “patrimônio público” (lato sensu), nos termos do artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei de Ação Popular[4] sendo expressamente equiparados, para fins de fruição, a bens de propriedade da nação pelo artigo 21 do Decreto-Lei 25/37[5].
José Afonso da Silva, invocando ensinamentos de doutrinadores italianos, afirma sobre o regime jurídico diferenciado dos bens culturais[6]:
A doutrina vem procurando configurar outra categoria de bens – os ‘bens de interesse público’ – na qual se inserem tanto bens pertencentes a entidades públicas como bens dos sujeitos privados subordinados a uma particular disciplina para a consecução de um fim público. Ficam eles subordinados a um peculiar regime jurídico relativamente a seu gozo e disponibilidade e também a um particular regime de polícia, de intervenção e de tutela pública. Essa disciplina condiciona a atividade e os negócios relativos a esses bens, sob várias modalidades, com dois objetivos: controlar-lhes a circulação jurídica ou controlar-lhes o uso – de onde as duas categorias de bens de interesse público: os de circulação controlada e os de uso controlado.
Em razão de tudo o que foi exposto, a doutrina eleitoral entende que: “o bem tombado, ainda que continuando bem particular, transforma-se em bem posto sob regime público”.[7]
Incorporando tal entendimento, segundo orientações da própria Justiça Eleitoral Brasileir[8]:
Os bens materiais ou imateriais integrantes do patrimônio cultural brasileiro encontram-se sob a proteção do artigo 216, V, § 1º, da Lei Maior. Por isso, é proibida a realização de propaganda em bem ou conjunto arquitetônico ou paisagístico tombados, pois poderia prejudicar a estética do ambiente que se quis preservar com o tombamento.
Em conclusão, uma vez que a partir do tombamento os bens protegidos ficam sujeitos a um especial regime de proteção e vigilância por parte do Poder Público (artigos 17, 18, 20 e 21 do Decreto-Lei 25/37), incidindo sobre eles restrições quanto à integral disposição e modificabilidade da coisa, evidente a aplicabilidade da vedação do artigo 37, caput, da Lei 9.504/97 em relação ao bens tombados.
Sobre o assunto a jurisprudência eleitoral está sedimentada de maneira pacífica, sendo de se destacar os seguintes julgados, a título de exemplo:
Propaganda eleitoral. Fixação de placa luminosa em imóvel particular. Prejuízo ao patrimônio histórico e artístico nacional. Violação ao art. 243, VIII, do CE. Recurso provido.” (TSE, Ac. no 15.609, de 29.6.99, Rel. Min. Nelson Jobim.)
RECURSO DE REPRESENTAÇÃO. PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR. BEM TOMBADO PELO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. IMPROVIMENTO. Embora o prédio onde a propaganda irregular foi veiculada seja bem particular, tratando-se de cidade tombada como patrimônio histórico, utiliza-se da interpretação sistemática das Leis 9.504/97 e 9.605/98. (TRE-SE, RECEL 1310; Ac. 1226/2000; São Cristóvão; Rel. Juiz José Jefferson Correia Machado; Julg. 24/10/2000);
RECURSO - PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR - Bem tombado pelo patrimônio histórico, artístico e cultural do município. Inscrição a tinta. Vedação. Art. 216 da Constituição c/c arts. 37 da Lei nº 9.504/97, 62 da Lei nº 9.605/98, 243, VIII, do Código Eleitoral, Lei Municipal nº 1.058 e Decreto-Lei nº 25/37. 1. O tombamento constitui procedimento administrativo vinculado, através do qual o poder público impõe restrições parciais ao direito de propriedade, em nome do interesse público e do bem estar social. É uma forma de preservação de bens de interesse da coletividade. 2. Embora o bem onde foi feita a propaganda seja de propriedade particular, encontra-se, em razão do tombamento, sob tutela do poder público, não podendo nele ser veiculada propaganda eleitoral, nos termos do disposto no art. 37 da Lei nº 9.504/97. Recurso a que se nega provimento. (TRE/MG - RE n. 33782000 - (302/2001) - Iguatama - Rel. p/o Ac. Des. Orlando Adão - DJMG 16.05.2001 - p. 47)
O tombamento produz efeitos sobre a esfera jurídica dos proprietários privados, impondo limitações ao direito de propriedade de bens particulares, transformando-os em bens de interesse público. Proteção do art. 216, V, § 1º, da Constituição da República, e do art. 37 da Lei n. 9.504/97. Ordem denegada. (TRE-MG - MS-78 – Rel. GUTEMBERG DA MOTA E SILVA – j. 30/09/2008)
Por todas as razões acima, conclui-se que o patrimônio cultural tombado deve ser preservado de maneira incólume, não podendo ser conspurcado pela veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral.
O descumprimento de tal mandamento, além das sanções administrativas previstas na Lei 9.504/97, pode implicar em responsabilidade criminal, por violação à norma proibitiva inserta no artigo 63 da Lei 9.605/98[9].
Por derradeiro, a lesão à ambiência urbana pode repercutir também na esfera cível, impondo ao poluidor o dever de reparar monetariamente os danos causados durante a permanência ilícita das propagandas no cenário da cidade, nos termos do artigo 14, parágrafo 1º da Lei 6.938/81[10], considerando a menos-valia imposta à higidez do patrimônio cultural e a obtenção de vantagem ilícita, mediante uso de bem de fruição coletiva em benefício próprio.
Enfim, se a propaganda eleitoral é um direito dos candidatos, tal direito não é absoluto e deve se harmonizar com normas de interesse geral cuja observância voluntária é o mínimo que se espera daqueles que pretendem ser mandatários do povo brasileiro.
[1] YÁZIGI, Eduardo. Reencantamento da cidade. Miudezas geográficas e devaneio. São Paulo: Scortecci. 2013. p. 217.
[2] MEIRELLES, Hely Lopes de. Direito de Construir. 9. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 139.
[3] MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 150, citando Alibrandi, Ferri e Sandulli,
[4] Lei nº 4.717/65, com redação dada pela Lei nº 6.513, de 1977.
[5] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do tombamento comentada. Doutrina, jurisprudência e normas complementares. Belo Horizonte: Del-Rey, 2014. Responsabilidade civil objetiva. p. 100
[6] Direito Ambiental Constitucional. 4. ed. 2. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 83.
[7] AMARAL, Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Manual das Eleições, Editora Saraiva, 2ª edição, 2002, pág. 173.
[8] Propaganda Eleitoral e Poder de Polícia. Orientações. Eleições de 2014. Corregedoria Eleitoral - TRE-CE. p. 17. Disponível em:http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-ce-eleicoes-2014-orientacoes-da-cre-propaganda-eleitoral Acesso em 14 de junho de 2016.
[9] Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida: Pena — reclusão, de um a três anos, e multa.
[10] APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - MUNICÍPIO DE SÃO JOÃO DEL-REI - DANO AMBIENTAL - ENGENHOS DE PUBLICIDADE - POLUIÇÃO VISUAL - PERSISTÊNCIA DA IRREGULARIDADE - INDENIZAÇÃO - CABIMENTO - PRECEDENTES - "QUANTUM" INDENIZATÓRIO - PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE - PROVIMENTO. Comprovado nos autos que, embora ciente da nova regulamentação, a ré não regularizou o imóvel no prazo fixado, perpetuando o dano e omitindo-se em preservar e conservar o patrimônio histórico cultural, impõe-se o dever de indenizar. (TJMG - Apelação Cível 1.0625.12.005032-7/001, Relator(a): Des.(a) Vasconcelos Lins , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/02/2016, publicação da súmula em 22/02/2016)