Danielle e Diana estavam separadas por 323 km quando seus nomes foram registrados pelo PSDC (Partido da Social Democracia Cristã) como concorrentes ao cargo de vereadora de São Paulo no ano passado.
Suas fichas passaram sem que elas tivessem assinado, e assim foram encaminhadas para o TRE-SP (Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo). Só souberam que postulavam à vaga no dia da eleição --quando viram seus nomes e fotos na urna eletrônica.
Como elas, mais de uma centena de mulheres foram vítimas de fraude na última eleição municipal, segundo a promotora Vera Lucia de Camargo Braga Taberti, 50. Um golpe constante, que consiste em registrar candidatas apenas para preencher a cota de gênero de 30% exigida pela legislação eleitoral, sem no entanto repassar as verbas de fundo partidário.
Em 2016, o PSDC foi campeão nessa modalidade e corre o risco de ter toda a chapa inelegível para a próxima eleição. Dos 30 menos votados, nove eram da sigla --sete mulheres. Mesmo desconhecendo as próprias candidaturas, Danielle teve seis votos, e Diana, 61. Todas, no entanto, tiveram a chapa indeferida por falta de documentação --e, claro, de assinatura.
"Elas eram filiadas, mas não tiveram o registro assinado. A ação não as inclui porque elas nem sequer sabiam que estavam concorrendo, só souberam no dia da eleição. Alguém viu e falou para elas. As duas viram na urna a fotografia. A Diana estava em Bauru nesta época e veio para cá na votação. Ela estava inelegível porque havia deixado de votar em uma eleição e iria ficar irregular. O partido sabia que não podia ser candidata", diz a promotora Vera Lúcia.
Celina Souza, a única candidata com zero voto na eleição municipal paulistana, teve a mesma situação: a candidatura pelo PSDC foi impugnada por estar irregular. Um caso que se estendeu por outros partidos, inclusive os maiores e com parlamentares eleitos, como o PMDB.
Filiada a um partido, candidata por outro
"Algumas candidatas desistiam no mesmo dia em que eram inscritas", diz a promotora. "O PMDB chegou ao absurdo de lançar uma candidata que estava filiada a outro partido. Ela fez o registro como candidata no dia 10 de agosto e só se filiou no dia 15. Depois disso, renunciou."
A candidata em questão, Fátima Aparecida Ferreira, a Índia, havia saído do PMDB e foi convencida a retornar ao partido apenas para preencher a cota de gênero. "Ela falou numa boa. Contou no processo que saiu do PMDB porque tinha briga lá, mas foi chamada mesmo sabendo que ia para outro partido para preencher a cota. E ela teve que renunciar porque daria dupla filiação. Já havia renunciado em 2014, quando foi candidata a deputada federal." Fátima foi procurada pela reportagem do UOL, mas não quis dar declarações sobre o caso.
O procedimento para investigar as fraudes nas candidaturas foi instaurado para apurar se os partidos repassaram o dinheiro do fundo partidário para as mulheres durante a campanha. Uma cláusula da Justiça Eleitoral determina que os partidos registrem o máximo 70% de candidatos de um mesmo sexo --se 70% são homens, 30% devem ser mulheres, e vice-versa.
No artigo 9º da Lei 13.165/2015, o TSE determinou que, para a última eleição e as duas posteriores (2018 e 2020), entre 5% e 15% dos recursos do fundo partidário devem ser reservados pelos partidos para as candidatas do sexo feminino. No ato da aprovação da lei, o ministro do TSE Henrique Neves comentou: "Não há nada que incentive mais a participação feminina do que financiar a campanha de mulheres, para promover a igualdade entre os candidatos". A Justiça Eleitoral, no entanto, não fixou prazo para o repasse.
"Depois da apresentação da prestação de contas [desta eleição], pudemos verificar que muitas candidatas não haviam tido nenhuma movimentação bancária na conta específica aberta para as eleições de outubro", afirma o promotor eleitoral José Carlos Bonilha. "Era um indício de que não havia tido campanha."
Investigação ouviu mais de cem candidatas
A lista dos candidatos a vereador votados na última eleição, em outubro, expõe a fragilidade das chapas femininas. Dos 20 com pior votação, 16 eram mulheres. Dos 20 mais votados, apenas dois não eram homens --e nenhuma delas estará na Câmara: Patrícia Bezerra, do PSDB, atual secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, e Soninha Francine (PPS), de Assistência e Desenvolvimento Social, ambas na gestão João Doria (PSDB). Foram substituídas por dois homens: Dalton Silvano (DEM) e Rodrigo Gomes (PHS).
Na investigação promovida pela promotora Vera Lúcia, mais de cem candidatas foram ouvidas: quem não teve voto, quem teve poucos votos, quem foi indeferida e quem desistiu. Quatro ações contra partidos ou coligações foram instauradas, incluindo as contra o PSDC e o PMDB, e cabe ao TRE julgar se houve ou não irregularidade passível de punição.
"Antigamente, não havia possibilidade de verificar a fraude depois do registro. Mas a decisão do TSE permitiu questionar candidatas que não podiam ser lançadas por terem condenações, não estarem quites com a Justiça Eleitoral e mulheres que nem sabiam que eram candidatas. Alguns partidos têm fraudes, mas o percentual [de candidatas] não ficou abaixo dos 30%. A medida foi instaurar um inquérito criminal para apurar a fraude", diz a promotora.
Após a publicação da reportagem, em nota, o advogado do Diretório Estadual do PMDB, Ricardo Vita Porto, afirmou que as candidaturas do partido estavam regulares. "O partido ainda não foi notificado para apresentação de defesa no procedimento instaurado pelo Ministério Público. No entanto, desde já, se informa que a chapa de vereadores da coligação formada pelo PMDB e PSD rigorosamente observou a cota de gênero de 30% nas candidaturas ao cargo de vereador na capital nas eleições do ano passado, havendo equívoco na conta apresentada pelo Ministério Público. Segundo se extrai dos dados constantes da própria Justiça Eleitoral, descontando-se os indeferimentos e desistências, acabaram efetivamente concorrendo 75 candidatos, dos quais 23 eram mulheres e 52 homens, o que corresponde a porcentagem de 30,666% de mulheres e 69,333% de homens."
A nota prossegue: "Bastante oportuno relembrar, que a coligação formada pelo PMDB foi a que mais elegeu proporcionalmente vereadoras na cidade de São Paulo, um terço do total, o que reafirma o compromisso do partido com a promoção e difusão da participação feminina na política". Sobre o caso da candidata Fátima "Índia", o advogado afirma que houve um erro de dupla filiação --e, assim que constatado, a candidatura foi retirada.
O PSDC emitiu nota também após a publicação da nota dizendo que "as citadas filiadas participaram de eventos que reuniram pré-candidatos e foram neles filmadas e fotografadas para efeito de documentário histórico relativos às eleições de 2016".
"Em qual partido vou acreditar?"
No escritório de advocacia que mantém com o pai, na Vila Prudente (zona leste de São Paulo), Patrícia Alonso separa os documentos e páginas impressas do sistema de divulgação do TRE-SP (Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo). Em outubro, Patrícia, 46, candidata a vereadora de São Paulo pelo PSC, recebeu 1.260 votos e não foi eleita.
A não eleição é a menor das queixas que a advogada carregada do partido, do qual pediu desfiliação em 1º de dezembro: ela diz ter conseguido a vaga apenas para cumprir a cláusula da Justiça Eleitoral. O PSC lançou apenas Patrícia, mas foi amparado pela coligação com o PRB, que teve 76 candidatos, 24 deles mulheres. A soma da coligação dá exatamente a cota pretendida pela legislação.
"Olha", diz, apontando para uma das páginas, "dos oito candidatos do partido, um desistiu e outro foi indeferido. Dos outros seis, apenas três receberam verba do fundo partidário". Com os papéis nas mãos, ela mostra para onde esse dinheiro foi: R$ 310.200 abasteceu o caixa do vereador eleito Gilberto Nascimento, filho do deputado federal e pastor da Assembleia de Deus Gilberto Nascimento (PSC-SP), e R$ 20 mil para Amauri Silva, candidato derrotado e ligado à Igreja Mundial.
Patrícia teve R$ 2.000 depositados em sua conta exclusiva para as eleições às 17h da sexta-feira anterior ao primeiro turno. Do percentual de fundo partidário depositado pelo partido, apenas 0,6% foi aplicado em sua única candidata.
"Elas não receberam nada. A doação para elas foi material de campanha", afirma a promotora Vera Lúcia de Camargo Braga Taberti, que investiga o caso. "Eles fazem esse repasse em cima da hora porque, em cima da hora, [a candidata] não vai usar na campanha e vai devolver."
A praxe era a confecção de santinhos de candidatos a vereador pela chapa majoritária --no caso de Patrícia, sua imagem aparecia com a do postulante à prefeitura Celso Russomanno (PRB). Foram confeccionados 40 mil panfletos, a um custo gráfico orçado em R$ 5.000 pela coligação. "As candidatas serviam como verdadeiros cabos eleitorais gratuitos", diz o promotor eleitoral José Carlos Bonilha.
Na investigação, o promotor observou que partidos não serviram assessorias jurídicas nem contábeis às candidatas. Patrícia cercou-se dos serviços de seu escritório de advocacia e do contador pessoal. A candidata ainda apareceu uma única vez na TV: 20 segundos em uma segunda-feira, cuja fatura de R$ 1.000 foi cobrada dias depois pela coligação.
"Só após a eleição a gente verificava a falta de empenho dos partidos na participação das mulheres na política. Algumas até desistiram da atuação", diz Bonilha.
Patrícia, que é evangélica, havia se filiado ao PSC em 2015, incentivado por gente de sua igreja --a Assembleia de Deus do Bom Retiro, a mesma de Gilberto Nascimento. O PSC foi procurado pela reportagem, mas afirmou, por meio de sua assessoria, que o responsável pelo repasse do fundo partidário estava fora de São Paulo.
No dia 1º de dezembro, Patrícia pediu desfiliação do PSC. Está em busca de um partido para concorrer em 2018 para levantar novamente sua bandeira --ela é contra a lei de alienação parental, de 2010, que impede genitores de restringirem a visita de ex-cônjuges a seus filhos. "Não vou desistir da política, mas, depois dessa experiência, em qual partido vou acreditar?"
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Acesso em 24/02/2017