A despeito de sua relevância para a estabilidade democrática do país, as ações eleitorais são regidas por um emaranhado melindroso de regras dispersas em fontes variadas[1]. Por isso, merece positivo destaque a apresentação, perante a Câmara dos Deputados, de Projeto de Lei que propõe a criação de um Código de Processo Eleitoral, especialmente acompanhado de justificativa que revela sua pretensão de observar as garantias processuais constitucionais, harmonizar–se com o CPC/2015 e racionalizar os procedimentos eleitorais.
O PL 7106/2017, apresentado pelo Deputado Daniel Vilela no dia 16 de março de 2017, não esconde a inspiração no CPC de 2015 e o objetivo de tornar fora de dúvida que as normas deste devem ser aplicadas de forma subsidiária e supletiva aos procedimentos judiciais eleitorais. Essa aplicação já se encontra prevista no art. 15 do CPC, mas vem sendo refreada pelos tribunais, inclusive em disposições específicas da Resolução TSE 23.478/2016, ante o receio de incompatibilidade daquele Código com as peculiaridades do âmbito eleitoral. Passado o pleito de 2016, contudo, é oportuno abrir um debate mais aprofundado sobre o tema, com enfoque no aprimoramento democrático da jurisdição eleitoral.
O êxito dessa tarefa, porém, exige abandonar uma compreensão superficial da noção de celeridade, que inspira uma postura jurisprudencial e doutrinária defensiva em relação ao CPC/2015. Encarada de modo imediatista e restrito, a celeridade tem servido para justificar a redução do espaço do contraditório nas ações eleitorais – por exemplo, pela recusa à adoção do agravo de instrumento, de algumas modalidades de intervenção de terceiros e da contagem de prazos processuais em dias úteis.
O que deixa de ser considerado nesse raciocínio é que tal postura impacta negativamente sobre o tempo de solução definitiva da demanda. Ao permitir que o procedimento avance a despeito de vícios graves e da incompletude no tratamento das questões, abre-se ensejo para a anulação e repetição de atos processuais e para o ajuizamento posterior de demandas similares.
É, então, positivo que o PL 7106/2017 se posicione no sentido de que a celeridade não pode prejudicar a ampla defesa e o contraditório (art. 1º, II). Mas, para que seja coerente com essa diretriz, o projeto merece ser revisto em pontos nos quais se limita a acolher medidas ditadas por uma jurisprudência defensiva. Um exemplo é o endosso da tese de irrecorribilidade imediata de todas as decisões interlocutórias (art. 61), que deixa sem possibilidade de correção eficaz decisões que trazem consequências imediatas e graves, como a concessão de tutela provisória.
Quanto à racionalização dos procedimentos, a via buscada foi a de prever normas gerais quanto à legitimidade ativa e passiva, regulamentar as citações e intimações e criar três procedimentos – ordinário, sumário e especial – construídos a partir da compilação de regras vigentes e aplicáveis, respectivamente, à impugnação ao registro de candidatura e à ação de investigação judicial eleitoral; à representação por propaganda irregular e ao direito de resposta; à perda de mandato por infidelidade partidária. É um início de discussão, mas que demanda aprimoramento, porque os procedimentos propostos tanto conservam regras que colidem com o anunciado prestígio ao contraditório e à ampla defesa, quanto servem de base para sugerir a revogação de diversas normas vigentes que regulam aspectos não integralmente contemplados neles.
Ademais, uma maior dose de ousadia será bem-vinda para que o PL 7106/2017 não se limite a reproduzir regras existentes. Em especial, espera-se o reconhecimento do caráter difuso dos bens jurídicos resguardados pelas ações eleitorais. Essa premissa exige que regulamentação do contencioso eleitoral absorva a dinâmica própria do processo coletivo – por exemplo, favorecendo a atuação conjunta dos colegitimados em um mesmo feito e adotando as regras específicas quanto à formação da coisa julgada.
É uma exigência dos tempos atuais, em que a complexidade das demandas eleitorais transborda os tímidos limites dentro dos quais se esperava inicialmente resolvê-las. Explica-se.
A Justiça Eleitoral foi criada em 1932 com as funções de preparar, realizar e fiscalizar as eleições e, de modo acessório, resolver as controvérsias surgidas ao longo do período eleitoral. Passadas mais de oito décadas, é inegável que, hoje, a atuação judicial de tribunais e juízes eleitorais cresceu em relevância. O denominado contencioso eleitoral – controle jurídico incidente sobre o processo de formação da vontade eleitoral, que se materializa em um “conjunto de atos dotados de finalidade de dirimir um litígio de natureza eleitoral”[2] – apresenta-se como fundamental via de proteção à legitimidade das candidaturas e dos mandatos.
A cada pleito, o contencioso eleitoral tem se tornado cada vez mais denso e complexo. Sucessivas reformas legislativas contribuem para isso. Cite-se, por exemplo, a tipificação de ilícitos eleitorais específicos – como a captação ilícita de sufrágio (1999), a proibição de distribuição gratuita de bens em ano eleitoral (2006), a arrecadação e o gasto ilícito de recursos de campanha (2009) – e o advento da Lei da Ficha Limpa (2010).
Atualmente, portanto, a jurisdição eleitoral constitui uma atividade profundamente especializada e perene – algo muito diferente de um passado em que a Justiça Eleitoral somente funcionava como órgão judiciário típico durante poucos meses em intervalos de dois anos. Por isso, preocupa o fato de que a regulamentação do contencioso eleitoral ainda não tenha recebido tratamento cuidadoso na legislação.
Nesse contexto, a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP) elegeu o Contencioso Eleitoral um dos temas a serem tratados no Seminário Reforma Política e Eleitoral no Brasil, evento que realiza em parceria com a Escola Judiciária Eleitoral do TSE nos dias 23 e 24 de março de 2017[3]. O evento tem enfoque propositivo: cada painel será dirigido pelo membro da ABRADEP que conduziu os trabalhos do grupo temático respectivo no âmbito da entidade e fomentará um debate interinstitucional, com Ministros do TSE, parlamentares da Comissão Especial de Reforma Política da Câmara dos Deputados (Cepoliti), membros do Ministério Público, cientistas políticos e jornalistas. No caso do contencioso eleitoral, o desafio principal é sensibilizar os representantes institucionais para o problema da ausência de sistematização da matéria, que contrasta com sua importância.
Será a primeira oportunidade de discutir o PL 7106/2017, contando o evento, inclusive, com a presença do autor do projeto na mesa. Diante da certeza de que muitos serão os debates em torno do tema, espera-se que o evento sinalize a possibilidade de que um futuro Código de Processo Eleitoral seja fruto de diálogos profícuos entre o Congresso Nacional, o TSE e a Academia.
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[1] Em rápida pincelada, pode-se citar os seguintes indicativos que respaldam essa afirmação: normas aplicáveis às ações eleitorais são encontradas no Código Eleitoral elaborado durante o regime militar (1965), na Lei 9.504/97, na LC 64/90 e, mesmo, em Resoluções do TSE. A defasagem é tal que a Ação de Impugnação de Mandato Eleitoral, criada na Constituição de 1988, até hoje não teve procedimento fixado em lei.
[2] PEREIRA, Rodolfo Viana. Tutela coletiva no direito eleitoral: controle social e fiscalização das eleições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 20-22.
[3] O Seminário Reforma Política e Eleitoral no Brasil abordará os seguintes temas: Financiamento da Política e das Eleições; Participação Feminina na Política; Registro de Candidaturas; Propaganda Política e Eleitoral; e Contencioso Eleitoral. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas no site do evento: http://www.tse.jus.br/hotsites/seminario-reforma-politica-eleitoral/
Roberta Maia Gresta - Doutoranda em Direito Político (UFMG) e Mestre em Direito Processual (PUC Minas). Professora. Assessora de Juiz Membro da Corte Eleitoral do TRE/MG. Membro-fundadora da ABRADEP.