Por José Jairo Gomes
No roteiro político brasileiro anuncia-se para breve o fim de um dos capítulos mais aguardados, que é o julgamento das ações eleitorais ajuizadas no Tribunal Superior Eleitoral contra a chapa Dilma-Temer por abuso de poder econômico, a saber: a ação de investigação judicial eleitoral – AIJE nº 194358 e a ação de impugnação de mandato eletivo – AIME nº 761, ambas sob a relatoria do competente Ministro Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin.
As referidas ações podem, sim, ensejar a cassação de mandato presidencial, desde que na instrução processual seja comprovada a ocorrência de abuso de poder econômico e, pois, financiamento ilícito da campanha eleitoral. Mesmo porque o § 10, art. 14, da Constituição Federal estabelece claramente a possibilidade de se impugnar mandato eletivo perante a Justiça Eleitoral, especificamente em caso de “abuso do poder econômico, corrupção ou fraude”, como é o caso das ações em apreço.
É, pois, a própria Constituição que estabelece a competência especial da Justiça Eleitoral para conhecer e julgar a impugnação de mandato, sem fazer distinção de qualquer espécie, nomeadamente sem distinguir a natureza do mandato impugnado, se majoritário ou proporcional, se de presidente da República, governador de Estado, prefeito, senador, deputado ou vereador. A competência é fixada no órgão eleitoral que procedeu ao registro da respectiva candidatura. De modo que, no caso de impugnação de mandato de presidente da República, o juiz natural e constitucional é o TSE, cujo decisão é recorrível mediante recurso extraordinário (CF, art. 121, § 3º, segunda parte) para o Supremo Tribunal Federal.
No Direito Eleitoral, o instituto da responsabilidade visa ao controle das eleições e da investidura político-eleitoral, a fim de que o voto seja autêntico e sincero e a representatividade, real e verdadeira. Ele está comprometido com a efetiva proteção de bens jurídicos fundamentais como lisura e normalidade do pleito, legitimidade dos resultados, sinceridade das eleições, representatividade do eleito. Pouco importa, então, a perquirição de aspectos psicológicos dos infratores e beneficiários de condutas ilícitas, sendo apenas relevante demonstrar que fatos denotadores de abuso de poder, abuso dos meios de comunicação social, corrupção ou fraude beneficiaram um dos lados da disputa. É que, quando presentes, esses eventos comprometem de modo indelével as eleições em si mesmas, porque ferem os princípios e valores que as informam.
Nas três esferas do Poder Executivo, o registro de candidatura é sempre efetivado em chapa única e indivisível, a qual deve ser composta por um titular (denominado cabeça de chapa) e um vice.
Se a Justiça Eleitoral reconhecer a ocorrência de abuso de poder em dada eleição, é intuitivo que tal vício contamina a chapa, afetando todos os seus integrantes. Isso porque o ilícito aproveita a chapa em sua totalidade, beneficiando a um só tempo o titular e o vice. Afinal, a eleição de ambos é indissociável e se deu de forma espúria e ilícita. Daí não ser possível cindir o julgamento, de modo a afirmar-se a responsabilidade eleitoral de apenas um deles e isentar-se o outro.
Portanto, no julgamento das aludidas ações eleitorais, se o TSE reconhecer a ocorrência de abuso de poder econômico, outra alternativa não lhe restará senão responsabilizar os beneficiários do abuso de poder, a saber: a titular da chapa, Dilma Vana Rousseff, e seu vice Michel Miguel Elias Temer Lulia.
Como consequência da responsabilização, a eles poderão ser aplicadas as sanções de inelegibilidade (por 8 anos) e cassação do diploma/mandato – tudo nos termos do inciso XIV, art. 22, da LC nº 64/90.
À Dilma Vana Rousseff não mais é possível aplicar a sanção de cassação de diploma/mandato, pois ela o perdeu antes por força do impeachment que sofreu. Nesse ponto, há perda superveniente de interesse processual. Resta, porém, a sanção de “inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição”, prazo esse que é contado a partir da data do primeiro turno, que, no caso, ocorreu no dia 5 de outubro de 2014. Portanto, a ex-presidente ficará inelegível até 4 de outubro de 2022.
Já quanto ao vice na chapa, o atual presidente Michel Temer, ambas as sanções podem igualmente ser aplicadas pela Justiça, ou seja, tanto a cassação de diploma/mandato, quanto à inelegibilidade por oito anos.
Note-se, porém, que a inelegibilidade tem caráter pessoal, subjetivo – e não objetivo. No dizer expresso do inciso XIV, art. 22, da LC nº 64/90, ela só pode ser constituída em relação aos que “hajam contribuído para a prática do ato”. Assim, será preciso demonstrar no processo que o réu contribuiu de alguma forma para o ilícito e consequente beneficiamento da chapa.
Nesse cenário, a inelegibilidade do presidente Michel Temer só pode ser constituída se ficar provado que de algum modo ele contribuiu para o ilícito eleitoral, ou seja, para o abuso de poder. Isso ocorrerá, por exemplo, se ficar provado que também ele solicitou de empresários dinheiro para o caixa 2 da campanha presidencial de 2014, ou, ainda, se intermediou a canalização de recursos espúrios para a campanha.
Já quanto à eventual cassação do mandato do presidente Michel Temer, vale atentar para uma recente mudança na legislação eleitoral. Refiro-me à Lei nº 13.165/2015, que acresceu ao art. 224 do Código Eleitoral os §§ 3º e 4º. Esses novos dispositivos têm gerado polêmica, sobretudo no plano constitucional, tanto assim que contra eles foram propostas as ações diretas de inconstitucionalidade – ADIs nos 5525/DF e 5619/DF, ainda não julgadas pelo Pretório Excelso.
Consoante o referido § 3º, art. 224, do Código a decisão da Justiça Eleitoral que importe “a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados”.
Logo, uma vez cassado o diploma/mandato do presidente Michel Temer, nova eleição deverá ser convocada, denominada eleição suplementar. E o novo pleito deverá ser direto – nos exatos termos do art. 224, § 4º, II, do referido Código, in verbis: “§ 4º A eleição a que se refere o § 3º correrá a expensas da Justiça Eleitoral e será: I – indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato; II – direta, nos demais casos”.
Note-se que esse dispositivo se harmoniza com o art. 1º, § único, e com o art. 14, caput, ambos da Constituição, que assentam respectivamente que todo o poder emana do povo, e que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos. Deveras, em Estado Democrático de Direito ao povo pertence o poder soberano, e é sempre dele a palavra final sobre os assuntos mais importantes para a sociedade – como é a escolha de seu governante. Esse princípio fundamental da Constituição foi corretamente interpretado pelo legislador infraconstitucional na regra posta no referido § 4º, art. 224. A eleição indireta tem caráter excepcional, devendo, pois, ser interpretada estritamente – apenas em situações singulares poderia ser aceita, por isso ela só tem lugar há poucos meses do final do mandato, quando, então, se torna mais viável do ponto de vista operacional.
Apesar de harmonizar-se com o sistema constitucional e com os elevados valores democráticos que o animam, há quem entenda que o aludido § 4º é inconstitucional por contrariar o art. 81, § 1º, da Constituição Federal. Por esse dispositivo, vagando os cargos de presidente e vice-presidente da República “nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”. De sorte que, pela literalidade desse art. 81, § 1º, a eleição deveria ser indireta, pelo Congresso Nacional.
Entretanto, por quatro principais razões essa não se afigura a melhor a solução. Primeiro, porque a eleição indireta é sempre excepcional em Estado Democrático de Direito, devendo ser interpretada estritamente; somente é aplicável em situações restritas e especialíssimas. Se se pensar na hermenêutica constitucional e na proporcionalidade, tem-se que na ponderação de princípios e valores fundamentais há de preponderar o modo democrático de escolha de mandatários, ou seja, escolha feita diretamente pelo povo, afinal é esse espírito democrático que preside a Constituição.
Segundo, porque da cassação do mandato decorre a invalidação da votação e, pois, da eleição – disso resulta a necessidade de o ato de escolha coletiva (= a votação, a eleição) ser novamente praticado pelo mesmo agente, desta feita, validamente, sem vícios.
Terceiro, por imposição de lógica jurídica, eis que não se apresenta requisito essencial para a incidência do citado art. 81, § 1º. E tal requisito consiste justamente na ocorrência de vacância dos “cargos de Presidente e Vice-Presidente da República”. A bem ver, esses cargos ainda não foram preenchidos definitivamente – porque suas ocupações legítimas encontram-se sub judice desde o ajuizamento das referidas AIJE nº 194358 e AIME nº 76. Por óbvio, só pode vagar cargo ocupado de forma legítima e em caráter definitivo. Na verdade, o art. 81, § 1º, da Constituição trata de fenômeno posterior e condicionado ao processo eleitoral e à definitiva diplomação, fenômeno esse ocorrente após a investidura e posse definitiva do candidato legitimamente eleito. Trata ele de situações em que a investidura nos cargos presidenciais se deu de modo legítimo e definitivo, e não de modo condicional, precário e sub judice como no enfocado caso da chapa Dilma-Temer.
A seu turno, o art. 224 do Código Eleitoral rege situação específica ocorrente no processo eleitoral, situação que antecede, portanto, à definitiva diplomação, investidura e posse do candidato eleito no cargo disputado. Trata dos desdobramentos da perda de mandato decorrente da denominada causa eleitoral.
Note-se que os artigos 81, § 1º, da Constituição e 224, § 4º, do Código Eleitoral incidem em espaços próprios e logicamente inconfundíveis, convivendo de forma harmoniosa. Cada um deles apresenta razões e fundamentos que lhes são próprios. O primeiro tem por pressuposto a dupla vacância dos cargos do Executivo Federal em razão de causa não eleitoral (ex.: morte, renúncia etc.), enquanto o segundo pressupõe a cassação de diploma/mandato pela Justiça Eleitoral em razão de causa eleitoral (ex.: abuso de poder econômico ou político).
Quarto, porque o art. 81 da Constituição Federal tem por objeto a auto-organização dos entes federativos, enquanto o art. 224 do Código Eleitoral trata de matéria eleitoral.
Sobre isso, há muito o Supremo Tribunal Federal assentou o entendimento de que o art. 81 da Constituição Federal não é de reprodução obrigatória pelos Estados e Municípios; a propósito, vide ADI nº 4298/TO, j. 7-10/2009 e também ADI nº 1057 MC/BA, DJ 6-4-2001, p. 65. Nesse último julgado, o relator Ministro Celso de Mello deixou consignado que “os Estados-membros não estão sujeitos ao modelo consubstanciado no art. 81 da Constituição Federal, abrindo-se, desse modo, para essas unidades da Federação, a possibilidade de disporem normativamente, com fundamento em seu poder de autônoma deliberação, de maneira diversa”. Portanto, em caso de dupla vacância das respectivas chefias do Poder Executivo, aqueles entes federativos poderiam prever prazos diferentes, por exemplo: vagando os cargos de governador e vice, a Constituição estadual poderia prever eleições diretas se a vacância ocorresse no primeiro ano do mandato, e indireta se ocorresse nos três últimos anos. O que a Constituição estadual não pode afastar é a própria realização de eleição.
Diante disso, é fácil ver que o art. 81 da Constituição Federal cuida de auto-organização dos entes federativos, dotados que são de autonomia política – e não de matéria eleitoral.
Já as regras e os procedimentos eleitorais são de observância obrigatória, e integram o âmbito da competência privativa da União, consoante dispõe o art. 22, I, da Constituição Federal. É nesse contexto, pois, que o art. 224 do Código Eleitoral se insere.
Outro ponto a ser considerado refere-se ao momento em que as novas eleições deverão ser realizadas. Prescreve o art. 224, § 3º, do Código Eleitoral que elas só poderão ocorrer “após o trânsito em julgado” da decisão.
No entanto, no âmbito do controle incidental ou difuso de constitucionalidade, ao julgar o ED-REspe nº 13925/RS em 28-11-2016, o TSE declarou a inconstitucionalidade da expressão “após o trânsito em julgado” prevista no citado § 3º, art. 224. Afirmou aquele sodalício que tal expressão viola a soberania popular, a garantia fundamental da prestação jurisdicional célere, a independência dos poderes e a legitimidade exigida para o exercício da representação popular. No mesmo julgado, firmou a Corte Superior a tese de que as novas eleições devem ocorrer, em regra: “[…] 2. Após a análise do feito pelas instâncias ordinárias, nos casos de cassação do registro, do diploma ou do mandato, em decorrência de ilícitos eleitorais apurados sob o rito do art. 22 da Lei Complementar no 64/1990 ou em ação de impugnação de mandato eletivo”.
Com base nesse recente precedente, para a realização de nova eleição presidencial, não será necessário aguardar o trânsito em julgado do acórdão do TSE que venha a cassar o mandato do presidente Michel Temer. É que, por se tratar de competência originária, o TSE funciona como instância ordinária, e o recurso para Supremo Tribunal Federal tem caráter excepcional, extraordinário – e não possui efeito suspensivo.
Portanto, tão logo publicado, o acórdão do Tribunal Superior já terá aptidão para gerar efeitos concretos – a menos que se entenda prudente aguardar o escoamento do prazo para interposição de embargos de declaração e o consequente julgamento desse recurso, hipótese em que a geração de efeitos concretos terá de aguardar a publicação do acórdão prolatado nos declaratórios.
À guisa de conclusão, tem-se que, caso as citadas ações eleitorais em vias de apreciação pelo TSE sejam julgadas procedentes e reconhecida a ocorrência de abuso de poder no financiamento da campanha eleitoral presidencial de 2014, a consequência lógico-jurídica será a responsabilização dos integrantes da chapa, devendo-se impor-lhes as seguintes sanções: i) inelegibilidade por 8 anos contados da data da eleição, caso fique demonstrado que os dois integrantes da chapa contribuíram para o ilícito eleitoral; ii) cassação do mandato do presidente Michel Temer.
Por outro lado, também se deverá determinar a invalidação da votação e a consequente convocação de novo pleito presidencial.
A nova eleição presidencial deve ser direta (o povo – único soberano no Estado Democrático de Direito, cumpre sempre relembrar! – deverá escolher o novo presidente) nos termos do art. 224, § 4º, II, do Código Eleitoral (e também do art. 1º, § único, e 14, caput, ambos da Constituição), não incidindo o art. 81, § 1º, da Constituição porque, como visto, cuida de matéria diversa.
Anote-se, por fim, que – se for afirmada sua inelegibilidade pelo Tribunal Superior – o presidente Michel Temer não poderá participar da nova eleição. E não poderá, primeiro, porque estará inelegível; segundo, porque é pacífico o entendimento da jurisprudência eleitoral no sentido de que ao causador da invalidação da eleição é vedado participar do pleito suplementar.
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OSCONSTITUCIONALISTAS
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Acesso em 07/06/2017