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A expulsão como causa de pedir da perda do mandato eletivo por infidelidade partidária

quarta-feira, 26 de julho de 2017
Postado por Gabriela Rollemberg Advocacia

  1. Introdução: a fidelidade partidária a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal

Com a efetiva redemocratização, ao contrário de textos constitucionais anteriores, a Constituição Federal de 1988 não consagrou expressamente o princípio da fidelidade partidária[1], até porque era necessário conceder liberdade de filiação aos cidadãos em virtude do momento histórico, pois finalmente foi possibilitada a criação de diversos partidos políticos com posições ideológicas bem diversas, consagrando o pluripartidarismo.

Tanto isso é verdade que o Supremo Tribunal Federal, já na vigência da Carta de 1988, ao julgar o Mandado de Segurança nº 20.927, da relatoria do Ministro Moreira Alves[2], e o Mandado de Segurança nº 23.405, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes[3], rejeitou a tese da perda do mandato por infidelidade partidária.

Entretanto, o tema voltou a ser discutido no Tribunal Superior Eleitoral a partir da Consulta nº 1398, formulada pelo então Partido da Frente Liberal – PFL, atual Democratas – DEM, que, diante da migração de diversos filiados eleitos na legislatura 2007-2011 para outras legendas, formulou questionamento indagando sobre a possibilidade de a agremiação preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional quando houver pedido de cancelamento de filiação ou transferência do candidato eleito pelo partido para outra legenda.[4]

A resposta do Tribunal foi afirmativa, reacendendo a discussão sobre o tema da fidelidade partidária, que outrora já havia sido analisado de forma diametralmente diversa pelo Supremo Tribunal Federal.

Em virtude do posicionamento do TSE, a discussão sobre o tema retornou ao Supremo Tribunal Federal por meio dos Mandados de Segurança nº 26.602[5], 26.603[6] e 26.604[7], os quais se insurgiram contra o ato do Presidente da Câmara dos Deputados, que se recusou a declarar vagos os mandatos dos parlamentares que se desfiliaram para dar posse aos suplentes do partido, nos termos do que decidido na Consulta nº 1398.

O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o tema, ratificou o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral na Consulta nº 1398, estabelecendo que a permanência do parlamentar no partido político pelo qual se elegeu é imprescindível para a manutenção da representatividade do eleitor, e que, por essa razão, o abandono de legenda enseja a perda do mandato, ressalvadas situações específicas, como, por exemplo, mudanças na ideologia do partido ou perseguições políticas, que deveriam ser definidas e apreciadas caso a caso pelo Tribunal Superior Eleitoral.

O Tribunal Superior Eleitoral, em observância ao que decidido pelo Supremo Tribunal Federal, editou a Resolução nº 22.610/2007 para disciplinar o processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de desfiliação partidária, e estabeleceu como hipóteses de justa causa: (I) incorporação ou fusão do partido; (II) criação de novo partido; (III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; (IV) grave discriminação pessoal.

A partir do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal e da edição da Resolução nº 22.610/2007[8] pelo Tribunal Superior Eleitoral, iniciou-se uma nova competência para a Justiça Eleitoral.

Afinal, o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral sempre foi pacífico no sentido de que a competência da Justiça Eleitoral cessava com a diplomação dos eleitos, com exceção das cassações de mandatos por causas eleitorais tais como, por exemplo, a prática de captação ilícita de sufrágio, condutas vedadas, e abuso do poder político e econômico durante a eleição.

A perda de mandato eletivo por causas não diretamente eleitorais, até então, era considerada “tema pertinente ao direito constitucional, federal ou estadual, que ultrapassa os limites do direito eleitoral”.[9]São inúmeros os precedentes nesse sentido.[10]

A Justiça Eleitoral partia do pressuposto que as questões que envolvem o exercício do mandato em si tinham natureza eminentemente política, e não eleitoral. Questões como as mencionadas nos Mandados de Segurança, que trataram da justa causa para desfiliação pela mudança na orientação programática da agremiação ou por eventual perseguição política do filiado, eram tidas como temas interna corporis dos partidos políticos, o que afastava a competência da Justiça Eleitoral, que a atribuía à Justiça Comum.[11]

Não se pretende discutir se foi correto ou não o entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral que culminou na criação dessa nova competência para a Justiça Eleitoral a partir da interpretação da Constituição Federal.

O certo é que, a partir da inauguração dessa competência, a Justiça Eleitoral se viu diante da necessidade de ingressar em um campo desconhecido, por ter que adentrar nas questões políticas e intra-partidárias que envolvem a fidelidade, temas sobre os quais nunca havia se pronunciado antes.

Muito embora o Tribunal Superior Eleitoral, por meio da Resolução nº 26.610/2007, tenha buscado regulamentar ou tornar objetivas as premissas de justa causa contidas na Consulta nº 1398 e nos acórdãos dos Mandados de Segurança nº 26.602, 26.603, e 26.604, o certo é que a análise, na maioria das vezes, depende muito das nuances do caso concreto, o que tem sido um grande desafio para a Justiça Eleitoral.

É o que revela, por exemplo, o fato de essa competência ter sido definida inicialmente como administrativa, no voto proferido pelo Ministro Celso de Mello no julgamento do Mandado de Segurança nº 26.603[12], mas posteriormente alterada para a seara jurisdicional.

Quando da análise de um caso concreto, o Mandado de Segurança nº 3699, a Corte percebeu que essa competência somente poderia ser jurisdicional, pois a decisão a ser proferida no processo poderia implicar na perda do um mandato eletivo. No mesmo julgamento, o Tribunal verificou a necessidade de incluir a previsão da possibilidade de recurso para instância superior na Resolução nº 22.610/2007, pois, diante dessa omissão, a insurgência contra as decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais estava sendo feita por meio de impetração de mandado de segurança.

Todos esses fatos apenas revelam que, em se tratando de um novo instituto, é a partir da análise de casos concretos que se verificam eventuais omissões a serem supridas e erros a serem corrigidos na regulamentação da matéria.

Nessa toada, a expulsão como causa de pedir da perda de mandato eletivo por infidelidade partidária merece uma análise mais aprofundada na jurisprudência eleitoral, o que pode ocasionar até mesmo a alteração da regulamentação da matéria.

  1. Balizas da decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal a respeito da fidelidade partidária

Antes da análise específica da possibilidade da expulsão como causa de pedir da perda de mandato eletivo por infidelidade partidária, é conveniente reforçar quais foram as balizas que sustentaram a posição do Supremo Tribunal Federal, para demonstrar que é justamente a partir delas que é possível se chegar a essa conclusão.

Inicialmente, a simples inferência que tem sido feita a partir da decisão do Supremo de que “o mandato pertence ao partido político” merece um certo reparo hermenêutico, sob pena de possibilitar a criação de pressuposições equivocadas quanto ao real entendimento daquela Corte Constitucional. Na verdade, ao reconhecer que a fidelidade partidária é imposta pela Constituição Federal, resgatou-se a verdadeira finalidade dos partidos políticos no sistema representativo proporcional brasileiro.

Portanto, o pressuposto é que o eleitor vota no partido pela sua ideologia, pelos ideais defendidos em seu programa. O Supremo Tribunal Federal reconheceu que, na nossa democracia representativa, os partidos políticos detêm o “monopólio das candidaturas aos cargos eletivos”.[13] Isso porque a representação popular apenas é possível por intermédio de um partido político, o qual deve definir toda a condução ideológica, estratégica, propagandística e financeira do candidato.

Na perspectiva do que decidido, a relação de fidelidade a ser analisada é formada por três elementos: eleitor-partido-representante, sendo o partido um elemento essencial de intermediação entre eleitor e representante.

Assim, o principal elemento a ser considerado nessa equação jurídica é exatamente o eleitor que, ao sufragar um determinado ideário político ou corrente de pensamento, precisa que sua manifestação de vontade seja representada durante todo o exercício do mandato.

Em síntese, a finalidade do instituto fidelidade partidária é preservar a “vontade política expressada pelo eleitor no momento do voto”[14], protegendo assim a confiança que foi depositada nas propostas defendidas no decorrer da trajetória política pelo partido, personificadas no momento da eleição por um determinado candidato, resguardando-se assim o sistema representativo.

Trata-se do verdadeiro sentido do princípio da soberania popular, segundo o qual “todo o poder emana do povo” (CF, Artigo 1º, parágrafo único). É exatamente por essa razão que todas as correntes ideológicas escolhidas pelos cidadãos-eleitores devem ser representadas no processo político na proporção em que foram escolhidas nas urnas.

É inequívoco, portanto, que o partido político também assume compromissos com o eleitor e com o seu filiado. Na dinâmica da relação eleitor-partido, o mais importante é que sejam mantidos os compromissos firmados pela agremiação não só na sua orientação programática, mas durante a eleição, nas propostas e posicionamentos apresentados durante o processo eleitoral.

Por sua vez, na dinâmica da relação partido-representante, há uma série de aspectos a serem levados em consideração. Trata-se de uma relação recíproca, que deve ser respeitada por ambas as partes para que seja válida. As obrigações do partido foram muito bem delineadas no voto da Ministra Cármen Lúcia no Mandado de Segurança nº 26.604:[15]

Cabe, aqui, uma palavra sobre os compromissos que o partido político assume com o interessado em candidatar-se e, posteriormente à sua escolha como candidato na convenção partidária (art. 8º, da Lei nº 9.504/97), na campanha pela qual ele se terá exposto e pelo que terá obtido os votos necessários à sua eleição, por integrar aquela organização partidária.

O partido político assume os compromissos de agir de acordo com os respectivos programa e estatuto (art. 5º da Lei nº 9.096/95), que deverão estar inscritos no Registro Civil e no Tribunal Superior Eleitoral (art. 9º, inc. I, e 10 da Lei nº 9.096/95).

É também a agremiação partidária responsável pela prestação de contas (arts. 30 e 32 da Lei nº 9.096/95); pela administração e aplicação do Fundo de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (arts. 38 a 40); pelo acesso gratuito ao rádio e à televisão para realização de propaganda partidária (arts. 45 a 49 da Lei nº 9.096/95 e art. 241 da Lei nº 4.747/65); pela utilização gratuita de escolas ou Casas Legislativas para a realização de suas reuniões ou convenções (art. 51 da Lei nº 9.096/95); pelo registro dos candidatos (art. 11, da Lei nº 9.504/97 e art. 94 da Lei nº 4.747/65; e pela fiscalização da votação e da apuração de votos (arts. 131, 161 e 162 da Lei nº 4.737/65).

Assim, o partido acolhe na convenção exatamente o grupo de interessados que, nos termos da legislação vigente, haverá de honrar os compromissos do partido e possibilitar, pela sua atuação vinculada (nos termos do art. 24, da Lei nº 9.096/95), que a organização partidária tenha possibilidade de ajudar a concretizar os fins que ele expôs à sociedade como os que buscaria atingir em defesa do bem público.

O “agir de acordo com os respectivos programa e estatuto” envolve uma questão da maior relevância que tem sido também, em certa medida, mitigada na análise dos casos concretos pela Justiça Eleitoral. É que as decisões partidárias devem ser necessariamente tomadas de forma democrática, sem a imposição da vontade dos dirigentes partidários sobre os filiados.

Consequentemente, a decisão do Supremo Tribunal Federal partiu também do pressuposto de que os partidos políticos funcionam internamente de forma democrática, consultando seus filiados sobre os temas mais relevantes e estratégicos ou, ainda, no processo de expulsão.

A partir da análise das balizas definidas pelo Supremo Tribunal Federal, é possível perceber que o compromisso entre eleitor-partido-representante estabelece uma reciprocidade de direitos e deveres principalmente entre os dois últimos componentes dessa relação. Aquele que quebra esse pacto, que tem como finalidade precípua a representação do eleitor no curso do mandato, perde o direito de exercer esse múnus.

É exatamente por essa razão que a expulsão pode embasar uma ação declaratória de perda do mandato eletivo em situações específicas, como se demonstrará a seguir.

  1. Expulsão como causa de pedir da perda de mandato eletivo por infidelidade partidária

O partido político tem a prerrogativa de expulsar um filiado em hipóteses específicas tipificadas no Estatuto, por meio da abertura de processo que deve obedecer aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

Essa expulsão geralmente ocorre quando se trata de fato extremamente grave, como, por exemplo, quando se verifica que o mandatário não mais representa a ideologia da agremiação, quando pratica sucessivas insubordinações ao que estabelecido pelo partido como diretrizes importantes do mandato, ou pelo descumprimento de princípio essencial do programa e estatuto partidários.

Ocorre que, a partir da expulsão, surge o questionamento sobre a possibilidade de declaração da perda do mandato eletivo com base no princípio constitucional da fidelidade partidária, mesmo sem que essa hipótese esteja expressamente prevista na Resolução TSE nº 22.610/2007.

A expulsão gera inequivocamente uma desfiliação partidária, ainda que involuntária, e também explicita a necessidade de se proteger o voto do eleitor, de modo a garantir a eficácia do sistema representativo proporcional.

Sendo assim, é pertinente a discussão sobre a possibilidade de o partido político ajuizar processo requerendo a perda do mandato eletivo do expulso, como forma de restabelecer a sua representação e consequentemente a do eleitor.

Isso não significa que a Justiça Eleitoral possa imiscuir-se nas relações internas entre o partido e seus filiados, até porque deve respeitar o princípio da autonomia partidária, previsto no artigo 17, § 1°, da Constituição Federal[16]. Na verdade, o que se tem é a análise da consequência do cancelamento da filiação partidária, ou seja, do “fato externo”.

Caso o cancelamento da filiação por meio da expulsão tenha ocorrido tendo em vista a necessidade de preservação da vontade política expressada pelo eleitor no momento do voto, deve o mandato permanecer com o partido, porque o membro que fraturou a relação foi o representante.

A quebra do compromisso firmado na eleição pelo representante justifica o cancelamento de sua filiação, e implica na sua desqualificação para permanecer no exercício do mandato eletivo, o que possibilita o requerimento formulado pelo partido político, mesmo quando se trata de expulsão.

Em síntese, o representante que tem a sua filiação cancelada em decorrência da expulsão é destituído da capacidade de representar os eleitores adeptos da corrente de pensamento defendida pelo partido. Por essa razão, a agremiação tem o direito de requerer a reestabilização da representatividade popular no parlamento.

Ora, o princípio da autonomia partidária não desautoriza o cotejo da legalidade do procedimento de expulsão e da motivação do partido político (CF, artigo 17, § 1º). Afinal, é a própria agremiação partidária que dará início ao processo requerendo a declaração da perda do mandato eletivo, reclamando o exame pela Justiça Eleitoral para que se analise a consequência do cancelamento daquela filiação.

Caberá à Justiça Eleitoral analisar quem realmente deu causa à quebra do pacto firmado na eleição entre eleitor-partido-representante, para preservar a representatividade da corrente político-ideológica sufragada pelo eleitor durante o restante do tempo do mandato.

O primeiro aspecto a ser analisado é se o processo disciplinar respeitou todos os trâmites, possibilitando uma ampla defesa do mandatário expulso. Da mesma forma, será necessário verificar se a motivação da agremiação revela um desrespeito grave por parte do representante aos compromissos firmados com o partido e com o eleitor, e se está devidamente tipificado como causa para expulsão do filiado.

A possibilidade da perda do mandato parlamentar devido à expulsão já foi reconhecida por Augusto Aras, na obra Fidelidade Partidária – A Perda do Mandato Parlamentar, quando expõe a conclusão de seu estudo:[17]

Em face do exposto, conclui-se este estudo, esperando que os princípios constitucionais da autonomia e fidelidade partidárias tenham a devida efetividade (eficácia social) pela validação da perda do mandato parlamentar em razão do cometimento de infração tipificada como ato de infidelidade (inclusive migração) ou de indisciplina, consoante previsão estatutária autorizada pela norma do § 1º, do art. 17/CF, e, finalmente, a realidade política possa ser refletida na interpretação da nossa Carta Magna de 1988, a Constituição Cidadã, justamente porque o povo é titular do poder, que tem nos partidos políticos o embrião da democracia!

Posição divergente apresenta Clèmerson Merlin Clève, segundo o qual:[18]

Aliás, das manifestações do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral que operaram a transmutação do entendimento anteriormente esposado a propósito da perda do mandato do agente político trânsfuga, não há nada que autorize a suposição de que idêntica compreensão alcançaria a hipótese de infidelidade, tomada como caracterizando sanção, contemplada no art. 17 da Lei Fundamental. Aliás, da leitura dos votos é possível divisar uma apartação entre as dimensões distintas da infidelidade. Uma primeira, temos dito, incidente sobre os casos de migração partidária despida de causa justificadora aceitável, importando em perda do mandato, não como sanção, mas como simples decorrência do sistema representativo. Uma segunda, incidente sobre o mundo partidário, conferindo ao partido autonomia para, por seu estatuto, tipificar condutas desviantes de natureza disciplinar, passíveis de aplicação de penalidades, entre elas, nos casos mais graves, daquela de expulsão. Aqui, sim, haveria uma sanção, autorizada pela normativa constitucional, aplicada pelo partido. A mutação jurisprudencial alcançaria apenas a infidelidade do trânsfuga, mas não, aquela do indisciplinado. Neste caso, os arts. 15 e 55 da Constituição, tratando-se de parlamentar, impediriam a perda do mandato em razão de expulsão do partido. […].

Conclui-se, diante do exposto, que a expulsão por deslealdade tipificada como infração disciplinar nos termos da disposição estatutária, sendo causa para o cancelamento da filiação, não é, todavia, para a perda do mandato. A conclusão pode trazer certa dose de desconforto. Afinal, parece manifestar-se no caso alguma incoerência na disciplina jurídica da infidelidade. O transfugismo voluntário acarreta a perda do mandato. Aquele involuntário, entretanto, operado pela expulsão, não autoriza idêntica consequência. Mas o direito, é preciso convir, nem sempre é coerente. Coerência no caso poderá ser recobrada ou por novo giro hermenêutico concretizado pela jurisdição a conferir nova carga de significação ao disposto nos arts. 15, 17 e 55 da Constituição ou por conta de reforma constitucional. Enquanto isso não ocorre, o quadro se manifesta tal como acima.

O principal argumento utilizado pelo autor parte do pressuposto de que a perda do mandato por infidelidade partidária não poderia decorrer de uma sanção, pois os artigos 15 e 55 da Constituição Federal seriam taxativos. Além disso, segundo ele, a mutação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança julgados recentemente teria definido que a migração partidária implicaria na perda do mandato em decorrência do sistema representativo proporcional, e não de uma consequência gravosa para o trânsfuga.

Necessário discordar do autor, pois o que se defende no presente artigo não é a perda automática do mandato em decorrência da expulsão, o que se configuraria certamente em sanção. Na verdade, é justamente “em decorrência do sistema representativo”, que caberá à Justiça Eleitoral, quando provocada, analisar qual será a consequência dessa exclusão do filiado dos quadros do partido.

O próprio autor revela que seu pensamento revela “alguma incoerência na disciplina jurídica da infidelidade”. E não poderia ser diferente, pois se o raciocínio desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que a perda do mandato não seria uma sanção, mas apenas uma consequência da necessidade de assegurar a representatividade do eleitor, nada mais sensato do que reconhecer que a expulsão do filiado pode gerar a necessidade de recompor a representação da corrente ideológica que o partido se propôs a defender.

Afinal, o princípio da fidelidade partidária define que as agremiações partidárias têm o dever de preservar a sua linha programática de atuação. Nesse sentido, é evidente a legitimidade do ato de expulsão daquele que subverta a representação do eleitor no decorrer do mandato, desde que observados os princípios do devido processo legal, do contraditório, e da ampla defesa, no procedimento ético-disciplinar.

Obviamente, o princípio da fidelidade partidária deve se compatibilizar com o princípio constitucional da liberdade de consciência, de pensamento e de convicção, sob pena de se “transformar o mandato representativo em mandato imperativo, e o parlamentar em autômato guiado pelas cúpulas partidárias”.  Por essa razão é que se verifica a necessidade da análise por parte da Justiça Eleitoral, para verificar se a indisciplina do filiado está fundamentada na sua esfera de intimidade e convicção, sem implicar em violação à doutrina e ao programa partidário.[19]

Esse controle por parte da Justiça Eleitoral evitará qualquer excesso por parte dos partidos políticos, pois o processo será instruído com a cópia integral do feito administrativo que redundou na expulsão, e o mandatário expulso ainda poderá juntar novas provas, para demonstrar se continua ou não representando satisfatoriamente a corrente ideológica que o sufragou na eleição.

O certo é que a impossibilidade de decretação da perda do mandato nesse caso pode implicar em uma chancela da infidelidade partidária por parte da Justiça Eleitoral, uma vez que o representante apesar de não corresponder aos anseios partidários e dos eleitores permanecerá no exercício de seu mandato, como se fosse seu proprietário. Afinal, será mais conveniente permanecer filiado e desvirtuar os interesses partidários forçando a sua expulsão do que mudar para outro partido e correr o risco de ter o seu mandato cassado pela Justiça Eleitoral.

Ainda que a Resolução TSE nº 22.610/2007 não trate explicitamente dessa questão, a leitura da decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal permite concluir que a finalidade do instituto da fidelidade é fazer valer o modelo de democracia representativa, ou seja, ainda que a desfiliação seja involuntária, como na expulsão, ela pode implicar na perda do mandato, desde que seja para preservar a vontade do eleitor.

Alguns Tribunais Regionais Eleitorais já se manifestaram de forma favorável à possibilidade de perda de mandato em virtude de desfiliação decorrente de expulsão. O Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, por exemplo, analisou essa questão no julgamento da Petição nº 105451, da relatoria do Juiz Josaphá Francisco dos Santos, ajuizada pelo Diretório do Partido Socialista Brasileiro do Distrito Federal contra o então Deputado Distrital Rogério Ulysses. A expulsão do parlamentar se deu pelo seu envolvimento em grave escândalo de corrupção que ficou conhecido como “Mensalão do DEM”. Nesse caso, o Tribunal Regional se pronunciou claramente sobre a possibilidade de aplicação da Resolução nº 22.610/2007 quando se trata de expulsão, em decisão assim ementada:[20]

AÇÃO DE PERDA DE MANDATO ELETIVO – CONSTITUCIONALIDADE DA RES. 22.610/07-TSE – INFIDELIDADE QUE IMPLICOU A EXPULSÃO DO PARTIDO – INCIDÊNCIA DA RES. 22.610/07-TSE – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO DIREITO DE DEFESA – AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.

  1. […].
  2. Se a simples desfiliação enseja a perda do mandato, quanto mais a violação aos princípios éticos estabelecidos no estatuto. É cabível a aplicação da citada resolução, tendo em vista que a infidelidade partidária não se restringe à hipótese de desfiliação voluntária, mas também de expulsão. Precedente do TRE/MG.
  3. É legítimo o direito de resistência do parlamentar quanto às orientações partidárias manifestamente ilegais. Contudo, a insubordinação do filiado, em especial, pela votação de projeto de lei em manifesto confronto com a orientação da agremiação, fato que ensejou a aplicação da pena de advertência no âmbito partidário, caracteriza infidelidade partidária.
  4. Caracteriza infidelidade partidária a grave violação à ética partidária, consistente no envolvimento de filiado em escândalo de corrupção. No caso, verificou-se, em gravação legal de conversa travada na residência oficial do Governador, na qual o assunto era a “despesa mensal com políticos”, que o Chefe da Casa Civil ficou responsável pelo repasse de quantia ao Requerido.
  5. […].
  6. Julgou-se procedente a ação para decretar a perda do mandato.

Nesse mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais no julgamento do Processo nº 12162007, da relatoria do Juiz Renato Martins Prates, que tratou de pedido de perda de mandato eletivo decorrente de desfiliação ocasionada por expulsão[21]:

Agravo Regimental. Feitos Diversos. Pedido de perda de mandato eletivo. Impossibilidade jurídica do pedido. Extinção sem resolução de mérito, nos termos do art. 267, inciso VI, do Código de Processo Civil.

A Resolução nº 22.610/2007 é estatuto normativo de conteúdo adjetivo cuja interpretação não pode pautar somente pelo conteúdo de suas disposições. Necessidade de se buscar o conteúdo substantivo que embasa a noção de infidelidade partidária. Uso do método teleológico de interpretação para alcançar a exata dimensão do sentido emprestado à expressão “desfiliação partidária sem justa causa”, não podendo abstrair pela simples leitura a noção de infidelidade partidária. Cabe ao aplicador do Direito, mediante construção principiológica, fazer o adequado ajustamento do comando normativo à real proposição da lei.

Reserva-se o direito às agremiações partidárias de não só reclamar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional daquele que tenha abandonado as fileiras do partido sem justificativa, mas também de preservar sua linha programática de atuação no parlamento. O ato de expulsão daquele que venha a subverter a representação partidária, respeitados os princípios do contraditório e da ampla defesa em procedimento próprio, com o afastamento do infiel do mandato, é do partido político. Insubordinação no exercício do mandato parlamentar constitui hipótese de infidelidade partidária sem justa causa prevista no comando do art. 1º da Resolução nº 22.610/2007. Exame pela Justiça Eleitoral da legalidade do procedimento de expulsão e as razões que a motivaram não interferem na autonomia partidária ou constituem ingerência em matéria interna corporis. Agravo regimental provido para dar regular prosseguimento ao feito.

No entanto, a possibilidade de perda de mandato pela desfiliação partidária motivada pela expulsão ainda demanda uma análise mais profunda por parte do Tribunal Superior Eleitoral. Um dos primeiros casos concretos analisados foi a Ação Cautelar nº 105276, que teve a liminar analisada pelo Ministro Henrique Neves em substituição ao Ministro Relator Arnaldo Versiani:

O tema é palpitante e merece, ao meu sentir, uma análise mais aprofundada a ser desenvolvida no momento do julgamento do recurso ordinário.

Neste juízo ligeiro próprio das cautelares, impressiona-me o fato de que, efetivamente, a Res.-TSE nº 22.610 tem, em sua raiz, os acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento dos Mandados de Segurança nos 26.602 (rel. min. Eros Grau), 26.603 (rel. min. Celso de Mello) e 26.604 (rel. min. Cármen Lúcia).

Os três precedentes da Corte Suprema, assim como a própria resposta dada por este Tribunal na Consulta nº 1.398, analisaram o tema sob a ótica da desfiliação requerida de forma unilateral pelo detentor momentâneo do mandato parlamentar. Examinou-se, como se depreende dos respectivos acórdãos, a hipótese em que o parlamentar, por deliberação própria, decide, após a eleição, deixar o partido pelo qual concorreu e foi eleito, na maioria das vezes, com o aproveitamento dos votos da legenda.

Daí, inclusive, o substancioso voto proferido pela eminente Ministra Cármen Lúcia no Mandado de Segurança nº 26.602 tecer precisas observações sobre o caráter da consequência advinda da troca de partido, reconhecendo não se tratar de sanção por ato ilícito (o que dependeria de previsão legal), mas de efeito lógico da deliberação de vontade expressada pelo ocupante do cargo que, ao assim proceder, sacrifica o direito de exercer o mandato. Ou, melhor, como consta da ementa do acórdão (DJ de 2.10.2008):

A desfiliação partidária como causa do afastamento do parlamentar do cargo no qual se investira não configura, expressamente, pela Constituição, hipótese de cassação de mandato. O desligamento do parlamentar do mandato, em razão da ruptura, imotivada e assumida no exercício de sua liberdade pessoal, do vínculo partidário que assumira, no sistema de representação política proporcional, provoca o desprovimento automático do cargo. A licitude da desfiliação não é juridicamente inconseqüente, importando em sacrifício do direito pelo eleito, não sanção por ilícito, que não se dá na espécie.

Compreendo, assim, que a expulsão do parlamentar da agremiação pela qual foi eleito caracteriza hipótese, em princípio, diversa da que levou este Tribunal a, seguindo a determinação do Supremo Tribunal Federal, editar a Resolução nº 22.610.

Verifico, ainda, que do voto proferido pela eminente Ministra Cármen Lúcia no citado MS nº 26.602 – único dos três mandados de segurança que, ao final, foi efetivamente concedido em parte – constou a seguinte parte dispositiva:

Pelo exposto, conheço do mandado de segurança e voto no sentido de conceder, em parte, a ordem para reconhecer o direito líquido e certo do Impetrante de ser reconhecido como titular dos mandatos de Deputado Federal obtidos pelo partido nas eleições de 1º de outubro de 2006, e que já não estão sendo providos por Deputados filiados ao partido, que dele se tenham desligado após as eleições, por manifestação livre de sua vontade, e do que se excluem os casos excepcionais autorizadores de busca de outra agremiação para manter os compromissos eleitorais assumidos, a saber, quando tiver ocorrido mudança comprovado do ideário partidário, em caso de perseguição política objetivamente demonstrada, ou expulsão do eleito pelo partido político, a partir de 27 de março de 2007, tudo na forma da resposta proferido na Consulta 1.398, do TSE, garantido, em qualquer hipótese e em todos os casos, o direito constitucional à ampla defesa do parlamentar (art. 5º, inc. LVI) (sublinhado no original, negritos da transcrição).

No presente caso, reitero: não se está diante de manifestação livre da vontade do ocupante do cargo. O que ocorreu foi sua expulsão, à revelia, do partido.

Nesta sede provisória, entendo que a expulsão, por si, não pode gerar a consequência da perda do direito ao exercício do cargo, sob pena de fazer incidir – aí sim – sanção não prevista na legislação em hipótese na qual o parlamentar não teria concorrido.

Em outras palavras, o fato de o candidato ter sido expulso do partido, por si, não configura hipótese de perda de mandato. É necessário o exame das razões pelas quais a expulsão ocorreu e se estas, efetivamente, configuram infidelidade partidária.

Do contrário, as agremiações poderiam por razões múltiplas (e nem sempre legítimas) escolher, de tempos em tempos, quem deveria exercer o mandato, desconsiderando a própria vontade popular, pois, sendo certo que o voto é conferido aos partidos, não é menos correto afirmar que o eleitor, no sistema proporcional brasileiro, contribui com sua vontade para a ordenação da lista dos eleitos.

É bem verdade que uma análise superficial das decisões do Supremo Tribunal Federal poderia até levar a essa conclusão de que seria necessário que a desfiliação fosse voluntária para que pudesse ensejar a ação declaratória de perda de mandato eletivo, e a liminar certamente foi concedida com a finalidade de aprofundar o debate no julgamento do recurso ordinário. No entanto, lamentavelmente o julgamento do recurso ordinário não chegou a ocorrer, tendo sido declarado prejudicado posteriormente, em virtude do término do mandato.

Recentemente, essa questão da expulsão tem surgido no âmbito de outros casos concretos, mas sempre tem sido julgada sem maior profundidade, como se já tivesse sido debatida e decidida pelo Plenário. Tanto isso é verdade que há diversos casos julgados monocraticamente pela Ministra Nancy Andrighi, sendo que no julgamento do agravo regimental no Plenário da Corte não há maiores discussões, até pela impossibilidade de sustentação oral para expor as razões que diferenciam a hipótese de expulsão. As decisões monocráticas que vem sendo confirmadas no Plenário se baseiam apenas e tão somente nos seguintes argumentos:[22]

Com efeito, a “desfiliação partidária” de que trata art. 1ºdaRes.-TSE 22.610/2007 constitui um pressuposto indispensável para a propositura desta ação. E, no caso, ela não ocorreu.

Esse fundamento é corroborado pelo art. 4º da norma de regência que expressamente dispõe que o requerido na ação de perda de mandato deve ser “o mandatário que se desfiliou”, sem prever a hipótese de filiado que tenha sido expulso do partido, como na espécie.

Em situação semelhante à dos autos, esta c. Corte decidiu que ocorrendo o desligamento, pelo partido, de filiado que exerce mandato eletivo, não há interesse de agir em relação à ação de perda de mandato. Confira-se:

AGRAVO REGIMENTAL. PETIÇÃO. PEDIDO DE DECRETAÇÃO DE PERDA DE MANDATO ELETIVO. DESFILIAÇÃO PELO PARTIDO. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. ART. 1º§ 3º DA RES.-TSE 22.610/2007. EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. ART. 267, IV, DO CPC.

  1. O pedido de perda de mandato por desfiliação partidária encontra respaldo no art. 1º da Res.-TSE 22.610/2007. Contudo, referida norma impõe, como condição da ação, que o postulante se encontre no papel de “mandatário que se desfiliou ou pretenda desfiliar-se” do partido pelo qual se elegeu. No caso, como o próprio Democratas (DEM) editou a Resolução 070/2009, impondo ao agravado o desligamento do Partido, impossível que se concretize quaisquer das condições impostas pela norma, quais sejam, que o mandatário se encontre na situação de quem “se desfiliou ou pretenda desfiliar-se”. Nesse passo, não encontra respaldo jurídico a pretensão do suplente de reivindicação da vaga.
  2. O ajuizamento de ação declaratória de justa causa para desfiliação partidária não pode ser considerado, pelo partido, pedido implícito de desfiliação. Tal pretensão encontra respaldo no direito de livre acesso ao Poder Judiciário, assegurado constitucionalmente (art. 5º, XXXV, da CR/88) bem como no art. 1º, § 3º, da Res.-TSE n° 22.610/2007.
  3. Correta a decisão agravada ao vislumbrar a perda de objeto da ação que postula a perda do mandato do agravado, tendo em vista que seu desligamento foi realizado pelo partido. Agravo a que se nega provimento.

(AgR-Pet 2.983/DF, Rei. Min. Felix Fischer, DJede 18.9.2009)

Ademais, como salientado no mencionado precedente, não compete ao TSE analisar as razões que motivaram o partido a concluir pela expulsão do requerido, haja vista a natureza interna corporis do ato.

Por fim, a tese defendida pelo agravante, segundo a qual o estatuto do partido pode prever outras normas que ensejem a perda do mandato eletivo, significa, na prática, que a exclusão do parlamentar do quadro de filiados do partido acarretaria sumária e automaticamente a perda do mandato eletivo, sem a prévia intervenção da Justiça Eleitoral.

Todavia, além de não encontrar guarida na legislação, esse entendimento implicaria atribuir aos partidos políticos o poder de escolher, após as eleições, o filiado que exercerá o mandato eletivo, direito esse que não lhes foi outorgado pela Constituição ou pela lei.

Forte nessas razões, nego provimento ao agravo regimental.

Inicialmente, não cabe a invocação da omissão da Resolução TSE nº 22.610/2007 quanto ao tema para afastar a possibilidade de uma análise mais aprofundada pela Justiça Eleitoral. Afinal, foi o próprio Tribunal Superior Eleitoral que elaborou esse texto normativo, a partir do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

A propósito, esse texto da Resolução já foi alterado, justamente porque o Tribunal, analisando caso concreto, entendeu pela necessidade de fazer ajustes, para reconhecer, por exemplo, a natureza jurisdicional do processo, em detrimento da natureza administrativa que havia sido prevista pelo Supremo Tribunal Federal. [23]

Além disso, o texto da Resolução prevê como hipótese de justa causa “a criação de novo partido”, mesmo sem que essa questão tenha sido abordada explicitamente nos votos proferidos no julgamento dos casos paradigmas pelo Supremo Tribunal Federal, os quais nortearam a elaboração dessa norma. Sendo assim, é evidente a possibilidade de se concluir que a expulsão pode resultar na perda do mandato, por consequência lógica do raciocínio desenvolvido sobre a necessidade de se preservar a representatividade do eleitorado.

Além disso, o precedente mencionado pelo acórdão, qual seja, o Agravo Regimental na Petição nº 2983, de relatoria do Ministro Felix Fischer, apresentava peculiaridades. Naquele caso, não ocorreu exatamente um processo de expulsão, pois o Democratas decidiu excluir o mandatário de seus quadros por entender que teria havido um pedido implícito de desfiliação em virtude do ajuizamento de ação declaratória de justa causa, sem a abertura de um procedimento disciplinar.

Muito embora os argumentos utilizados pelo Ministro Relator pudessem indicar um possível caminho jurisprudencial a ser trilhado pelo Tribunal no caso de pedido de perda de mandato eletivo pela desfiliação decorrente de expulsão, essa questão não chegou a ser efetivamente decidida.

Como o próprio Democratas havia editado resolução impondo ao mandatário o desligamento do partido, concluiu o Tribunal que seria impossível que se entendesse concretizada a condição imposta pela norma.  A existência de peculiaridades ficou evidente no voto do Ministro Henrique Neves:

O SENHOR MINISTRO HENRIQUE NEVES: Senhor Presidente, quero apenas fazer uma ressalva para que este caso, dada as peculiaridades, não sirva como precedente para outros.

O primeiro suplente entrou com um pedido de desfiliação nesse meio tempo, o titular do mandato foi ao partido, explicou as suas razões, disse “quero me desfiliar”, e o partido respondeu “está bem, pode se desfiliar”.

Por isso, estaria prejudicado este processo. Entendo que está prejudicado porque há outro processo no Tribunal, já apreciado e transitado em julgado, no qual o partido manifestou que, realmente, ele estava concordando com as razões de desfiliação.

Muito embora o caso concreto apresente peculiaridades, há inúmeras questões consignadas no voto condutor do acórdão que merecem ser explicitadas para uma melhor análise do tema:

[…]. Não compete a este c. Tribunal avaliar as razões que levaram ao partido concluir pela desfiliação, especialmente nos autos desta ação declaratória.

[…].

É assente nesta e. Corte Superior Eleitoral a “natureza jurídica bifronte” dos partidos políticos, por ser pessoa jurídica de direito privado, nos termos do art. 44, V, do Código agremiações partidárias, entre outras prerrogativas, a autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, até mesmo com possibilidade de impor sanção aos filiados.

Com efeito, diante da autonomia assegurada no art. 17, § 1º, da Constituição da República, os partidos políticos estão sujeitos à jurisdição da Justiça Eleitoral apenas quanto aos atos que tenham potencialidade para interferir no processo eleitoral. Nesse sentido, destaco excerto do voto do e. Min. Sepúlveda Pertence no Recurso Especial Eleitoral n° 9467, litteris:

[…].

Assim, no que tange às razões que levaram o partido a concluir pela perda do mandato do agravado, a competência para julgar a matéria não pertence à Justiça Eleitoral, sob pena de violação à autonomia constitucionalmente assegurada aos partidos. Ademais, a petição de perda de mandato não é a via processual adequada para a discussão relativa à natureza e legitimidade de eventual ato punitivo praticado pela agremiação partidária.

A simples leitura dos argumentos contidos no precedente invocado revela que a premissa do voto condutor do acórdão foi equivocada, pois a partir do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança nº 26.603, a competência da Justiça Eleitoral foi ampliada, não se restringindo “apenas quanto aos atos que tenham potencialidade para interferir no processo eleitoral”. [24]

Além disso, não se trata de violar a autonomia constitucionalmente assegurada aos partidos políticos, pois a Justiça Eleitoral não poderá rejulgar o processo administrativo disciplinar que redundou na expulsão do mandatário, mas apenas verificar qual será a consequência da decisão do partido no que se refere ao sistema representativo proporcional.

Se o Judiciário amplamente verifica a presença de justa causa para a desfiliação promovida pelo candidato, de igual modo deverá observar as consequências da expulsão do representante que não mais corresponde aos interesses dos eleitores que conferiram o voto ao partido, sem que isso importe qualquer violação ao princípio da autonomia partidária.

Afinal, o princípio da fidelidade partidária pressupõe uma coerência ideológica do filiado ao exercer o cargo eletivo, e não uma mera conveniência político-eleitoral, de modo a imperar o fisiologismo[25].

Como já destacado, essa questão precisa ser melhor analisada pelo Tribunal Superior Eleitoral, pois o entendimento consignado no precedente implica em entendimento contrário ao que decidido pelo Supremo Tribunal Federal quanto ao instituto da fidelidade partidária, na medida em que não reconhece que o comportamento desleal do representante tem reflexos no processo político-eleitoral. É exatamente essa influência na representatividade do eleitorado que embasa a consequência da perda do mandato eletivo, para que seja possível restabelecê-la por meio da assunção do suplente do partido.

  1. Considerações finais

O que se pretende no presente artigo é demonstrar que a consequência da expulsão do mandatário precisa ser enfrentada com maior profundidade pelo Tribunal Superior Eleitoral, possibilitando que as decisões reflitam em maior proporção a verdadeira finalidade do instituto da fidelidade partidária, que é a preservação da representatividade do eleitor.

É certo que o enfrentamento dessas questões tem se constituído em um grande desafio para a Justiça Eleitoral, que teve de ingressar em questões políticas e intra-partidárias que sempre foram alheias à sua competência.

No entanto, preocupa a leitura superficial que tem sido feita da decisão do Supremo Tribunal Federal, que tem levado apenas à aplicação pura e simples do texto da Resolução TSE nº 22.610/2007, sem analisar a verdadeira finalidade do princípio constitucional da fidelidade, o que tem levado ao cometimento de equívocos na análise dos casos concretos.

Por essa razão, se faz necessária uma reflexão, uma análise crítica do que tem sido decidido pelo Tribunal Superior Eleitoral quanto à questão da expulsão, e de quais os reflexos dessas decisões no alcance do objetivo da fidelidade partidária, ou seja, na preservação da representatividade do eleitor, da “vontade política expressada pelo eleitor no momento do voto”.[26]

Caso a Justiça Eleitoral se aprofunde na análise dos casos concretos, verificando minuciosamente qual o verdadeiro pacto firmado entre eleitor-partido-representante no momento da eleição, observando que o verdadeiro sentido da fidelidade é o respeito à manifestação do eleitor, tem-se a possibilidade de resgatar a verdadeira essência do sistema partidário brasileiro.

O certo é que o reconhecimento de que a expulsão pode resultar na perda do mandato eletivo, a partir das balizas definidas pelo Supremo Tribunal Federal, resgata a concepção de que se trata mais de uma fidelidade ao eleitor do que propriamente ao partido político.

__________

GABRIELA ROLLEMBERG, sócia do escritório Gabriela Rollemberg Advocacia, é graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB (2006) e em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB (2008). Pós-graduada em Direito Eleitoral pelo Instituto Luiz Flávio Gomes – LFG (2012). Pós-graduanda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (IBRADE). Membro da Comissão Especial de Direito Eleitoral e Reforma Política da OAB Nacional. Secretária-geral do Colégio de Presidentes das Comissões de Direito Eleitoral das Seccionais da OAB.

 

Referências

ARAS, Augusto. Fidelidade Partidária – A Perda do Mandato Parlamentar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

ARAS, Augusto. Fidelidade e Ditadura: [Intra] partidárias. Bauru, SP: EDIPRO, 2011.

CARDOSO, José Carlos.  Fidelidade Partidária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997.

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade Partidária – Impeachment e Justiça Eleitoral. Curitiba: Juruá, 1998.

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade Partidária e Impeachment – Estudo de caso. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2012.

FRANCISCO, José Carlos. Traços Históricos dos Partidos Políticos: do surgimento até a segunda era da modernidade. Estudos eleitorais. Tribunal Superior Eleitoral, Volume 5, Número 1, jan./abr. 2010.

KINZO, Maria D’Alva. Partidos, Eleições e Democracia no Brasil Pós-1985. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Volume 19, nº 54, fevereiro/2004.  

LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Infidelidade Partidária e Proteção da Confiança. Estudos eleitorais. Tribunal Superior Eleitoral, Volume 5, Número 1, jan./abr. 2010.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1961, v. 1.

PIMENTA, Fernando Gurgel. Guia Prático da Fidelidade Partidária à luz da Resolução TSE 22.610/07. Leme: J. H. Mizuno, 2008.

RESENDE, Enio. Cidadania: o remédio para as doenças culturais brasileiras. 2.ed. São Paulo: Summus, 1992.

RODRIGUES, Leôncio Martins. Partidos, Ideologia e Composição Social. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Volume 17, nº 48, fevereiro/2002.

Notas

[1] A fidelidade partidária teve como marco normativo no Brasil a Emenda Constitucional nº 01/69, que estabelecia no parágrafo único do art. 159 da Constituição Federal de 1967 a perda do mandato do parlamentar que “por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito”.

Já próximo ao final do regime ditatorial, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 11/78 que trouxe uma nova redação ao artigo 152 da então Constituição, especialmente para excetuar a perda do mandato por infidelidade partidária àquele que “participar, como fundador, da constituição de novo partido”.

[2] TSE, MS 20927, Relator Ministro Moreira Alves, DJ – Diário de Justiça de 15.4.1994, p. 8061.

[3] TSE, MS 23405, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJ – Diário de Justiça de 23.4.2004, p. 8.

[4] TSE, Consulta 1398, Rel. Ministro César Asfor Rocha, julgado em 27.3.2007, DJ – Diário de Justiça de 8.5.2007, p. 143.

[5] STF, MS 26602, Rel. Min. Eros Grau, DJE – Diário de Justiça Eletrônico de 17.10.2008, p. 190.

[6] STF, MS 26603, Relator Ministro Celso de Mello, DJE – Diário de Justiça Eletrônico de 18.12.2008, p. 318.

[7] TSE, MS 26604, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJE – Diário de Justiça Eletrônico de 2.10.2008, p. 135.

[8] A Resolução nº 22.610/2007 foi julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.999/DF. STF, ADI nº 3.999/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 17.4.2009. Nesse mesmo sentido: STF, ADI nº 4.086/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 17.4.2009.

[9] TSE, Resolução 17.643, Relator Min. Paulo Brossard, DJ – Diário de Justiça de 20.1.1992, p. 142.

[10] Nesse sentido, ver os seguintes julgados: TSE, Consulta 1392, Relator Min. José Delgado, DJ – Diário de justiça de 11.12.2006, p. 214. TSE, Consulta 1.236, Relator Min. Gerardo Grossi, DJ – Diário de  Justiça de 1º.6.2006. TSE, Consulta 761, Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ – Diário de Justiça de 12.4.2002. TSE, Consulta 706, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ – Diário de Justiça de 1º.2.2002.TSE, Resolução 12.279, Relator Min. Oscar Corrêa, DJ –  Diário de Justiça 24.9.1985, p. 16265.

[11] Nesse sentido, ver os seguintes julgados: TSE, Representação 763, Relator Min. César Asfor Rocha, DJ – Diário de justiça de 27.03.2007, p. 130. TSE, Petição 12230, Relator Ministro Américo Luz, DJ – Diário de Justiça, 16.3.1992, p. 3064. TSE, Agravo Regimental em Mandado de Segurança 3890, Relator Ministro Marcelo Ribeiro, DJE – Diário da Justiça Eletrônico de 7.4.2009, p. 26.

[12] STF, MS 26602, Trecho do Voto do Ministro Celso de Mello, DJE – Diário de Justiça Eletrônico de 17.10.2008, p. 190: Entendo, Senhora Presidente, que, se esta for a compreensão do Supremo Tribunal Federal, assegurar-se-á, ao partido político e ao parlamentar que dele se desligar voluntariamente, a possibilidade de, em sede materialmente administrativa e perante a Justiça Eleitoral, justificar, com ampla dilação probatória – e com pleno respeito ao direito de defesa -, a ocorrência, ou não, das situações excepcionais a que se referiu o E. Tribunal Superior Eleitoral em sua resposta à Consulta nº 1.398/DF, para que se possa, então, se e quando for o caso, submeter, ao Presidente da Casa legislativa, o requerimento de preservação da vaga obtida nas eleições proporcionais.

[13] STF, MS 26603, Trecho do Voto do Ministro Celso de Mello, DJE – Diário de Justiça Eletrônico de 18.12.2008, p. 318.

[14] TSE, Consulta 1398, Trecho do voto do Ministro Cezar Peluso, DJ – Diário de justiça de 8.5.2007, p. 143.

[15] TSE, MS 26604, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJE – Diário de Justiça Eletrônico de 2.10.2008, p. 135.

[16] CF. Art. 17. […]. § 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 52, de 2006)

[17] ARAS, Augusto. Fidelidade Partidária – A Perda do Mandato Parlamentar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 342.

[18] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade Partidária e Impeachment – Estudo de caso. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2012.

[19] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade Partidária – Impeachment e Justiça Eleitoral. Curitiba: Juruá, 1998, pp. 78-79.

[20] TRE-DF, PET Nº 105451, Relator Juiz Josaphá Francisco dos Santos, Diário de Justiça Eletrônico de 29.9.2010, p. 2.

[21] TRE-MG, Feito Diverso nº 12162007 – Barbacena-MG, Acórdão nº 797, Juiz Relator Renato Martins Prates, DJMG 6.5.2008, p. 106.

[22] Tribunal Superior Eleitoral,  Agravo Regimental na Petição n° 1439-57.2011.6.00.0000, Relatora Min. Nancy Andrigui, DJE de 6.2.2012, pp. 27/28.

[23] No julgamento do Mandado de Segurança nº 3699, o TSE percebeu que essa competência somente poderia ser jurisdicional, pois a decisão a ser proferida no processo poderia implicar na perda do um mandato eletivo. No mesmo julgamento, o Tribunal verificou a necessidade de incluir a previsão da possibilidade de recurso para instância superior na Resolução nº 22.610/2007, pois, diante dessa omissão, a insurgência contra as decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais estava sendo feita por meio de impetração de mandado de segurança.

[24] Nesse mesmo sentido, e de forma até mais ampla, o entendimento de Augusto Aras: “18) A mudança de paradigma do mandato político, ocorrida quando do julgamento do Mandado de Segurança nº 26.603/STF, em que foi reconhecida a efetividade das normas do art. 1º, caput e parágrafo único, c/c arts. 14, § 3º, V e 17, § 1º da CF, e acolhido o instituto da Fidelidade Partidária, revela não mais se sustentar a jurisprudência cunhada após a promulgação da Carta de 1988, Segundo a qual a competência da Justiça Eleitoral se restringiria à imputação dos atos partidários qualificados por interferirem no processo eleitoral em curso, deixando-se para a Justiça estadual/distrital comum solucionar os demais conflitos de interesses decorrentes de atos partidários simples. 19) Neste contexto, espera-se que os eminentes julgadores dos tribunais superiores (STF e TSE) reflitam acerca do tema da competência da Justiça Eleitoral, a fim de que as questões que envolvam o Direito Partidário e Eleitoral sejam conhecidas e decididas pela Justiça especializada, notoriamente célere e comprometida com a realização da democracia representativa”. In:ARAS, Augusto. Fidelidade e Ditadura: [Intra] partidárias. Bauru, SP: EDIPRO, 2011, p. 107.

[25] Fisiologismo é um conceito da Ciência Política que define uma relação de poder político em que as ações e decisões são tomadas em troca de favores, favorecimentos e outros benefícios a interesses individuais. RESENDE, Enio. Cidadania: o remédio para as doenças culturais brasileiras. 2.ed. São Paulo: Summus, 1992. Fisiologismo é um conceito da Ciência Política que define uma relação de poder político em que as ações e decisões são tomadas em troca de favores, favorecimentos e outros benefícios a interesses individuais.

[26] TSE, Consulta 1398, Trecho do voto do Ministro Cezar Peluso, DJ – Diário de justiça de 8.5.2007, p. 143.

 

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