Por Felipe Recondo e Iago Bolivar.
As campanhas eleitorais brasileiras, embora caríssimas, estão há décadas ancoradas em veiculação gratuita de propaganda na televisão. A propaganda paga em veículos limitava-se a pequenos espaços em jornais impressos, com relevância cada vez menor. A reforma eleitoral aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Michel Temer neste mês estabelece um corte radical com esse padrão ao permitir o impulsionamento de conteúdo nas redes sociais. As regras abrem a possibilidade de um novo cenário de campanha, menos transparente, ainda mais sensível ao dinheiro e controlado por empresas que muitas vezes esquivam-se de decisões judiciais.
Além disso, dará as ferramentas para um novo salto no marketing político, permitindo que um mesmo candidato assuma inúmeras faces, uma para cada público que for selecionado de acordo com fatores econômicos, demográficos, ideológicos e psicológicos. Não teremos um candidato, teremos centenas em um. Então, um eleitor com baixa escolaridade, de classe média baixa e que viva no norte do país vai se deparar com um candidato diferente do que vai se apresentar para o eleitor com curso superior completo, que viva numa grande capital e seja um profissional liberal. Quem vai saber quantos e o que professa e promete este candidato com suas dezenas de faces nas redes sociais?
Este é um tema de repercussões ainda abertas, que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) terá de estudar com rigor técnico para estabelecer regras que permitam transparência e equilíbrio democrático, mas neste momento ainda não há sequer uma minuta de resolução. Diante da importância das novas regras, alguns pontos merecem discussão ampla, envolvendo desde já a sociedade e especialistas:
1 – Quem controla, quem fiscaliza – Os candidatos poderão pagar para impulsionar suas publicações nas redes sociais. Mas não há resolução TSE que os obrigue a informar para quais públicos impulsionaram suas propagandas. Nem que tipo de propaganda fizeram para cada um dos públicos. Algumas questões técnicas são importantes, por exemplo: será permitido impulsionar dark posts? Essas publicações não aparecem para quem acessa a página do candidato na rede social ou a segue, apenas para quem estiver nos públicos selecionados no anúncio, seja ou não seguidor. Haverá um repositório ou meio obrigatório de informação ao TSE sobre as publicações impulsionadas, incluindo não apenas as mensagens, mas também cada seleção de audiência e o valor investido em cada uma delas? Mesmo que haja regras rígidas, o tribunal tem uma interface técnica com as principais redes para garantir que as informações prestadas pelas campanhas são reais? Nenhuma rigidez de regras resiste à falta de capacidade de perceber que elas estão sendo descumpridas.
2 – E o eleitor? – O eleitor não terá como fiscalizar o seu candidato. Se o político terá diversas faces, como saber se o candidato prometeu algo para um grupo de eleitores e algo distinto para outro? Se o eleitor já desconfia das promessas que lhe são feitas, como confiar em candidatos que podem prometer uma coisa para cada grupo? Podemos sair de um período de estelionatos eleitorais, promessas demagógicas e campanhas de medo para um ainda pior, em que um mesmo candidato se elege sendo demagogo para uns, radical para outros, responsável para um terceiro grupo, revolucionário para um quarto e tecnocrata para um quinto. Nesse caleidoscópio de personalidades, cada segmento do eleitorado terá acesso a uma só das múltiplas máscaras vestidas pelos candidatos e levadas até ele por direcionamento avançado. Um exemplo: Com R$ 100 reais é possível atingir, em média, 72 mil pessoas no Facebook, em um recorte “geral”, sem grande segmentação. Este valor pode levar uma reprodução da campanha e das mensagens na TV. Outros R$ 100 podem servir para falar com 25 mil jovens desempregados de classe C de cidades médias, prometendo mais oportunidades para eles, com programas de primeiro emprego. Outros R$ 100 vão para 15 mil homens com mais de 50 anos nessas mesmas cidades, dizendo que a prioridade de novos empregos será deles. Um mesmo candidato pode fazer mensagens pró-vida para um público evangélico selecionado, ao mesmo tempo em que manda mensagens progressistas, pro-choice, para mulheres universitárias na mesma cidade. Se, aos olhos de todos, na TV, as campanhas tiveram o elemento político e cívico cada vez mais dissolvido em técnicas de venda, o que acontecerá nos recessos segmentados e escondidos de uma rede cada vez mais polarizada?
3 – Os donos das informações – As empresas, como Google e Facebook, deterão os dados sobre as campanhas políticas na internet e nas redes sociais. Elas saberão exatamente qual o caminho cada candidato trilhou na disputa pelo voto, quais regiões do País mereceram mais atenção de cada candidato, qual o perfil do eleitor de cada político. Enquanto os candidatos estarão no mundo virtual, o TSE terá informações ainda do mundo analógico: vai basear suas análises apenas nos dados extraídos das urnas.
4 – A influência do dinheiro e de atores paralelos – Sob forte pressão do Congresso e do FBI, o Facebook demorou quase um ano para divulgar que uma empresa russa ligada ao Kremlin investiu 100 mil dólares em anúncios de caráter eleitoral na disputa pela presidência americana em 2016. Muito mais foi gasto por PACs e Super-PACs, os comitês independentes que fazem campanha nos EUA sem ligação oficial com as candidaturas. Oficialmente, Trump investiu 90 milhões de dólares em anúncios digitais. A campanha vitoriosa gastou menos que Hillary Clinton globalmente, mas se destacou nos ambientes online. Na reta final, Trump investiu 29 milhões em anúncios online e 39 milhões em TV. Já Hillary investiu apenas 16 milhões em anúncios digitais no fim da campanha, enquanto direcionou 72 milhões para a TV. Nesse momento, o direcionamento foi fundamental: Trump focou anúncios em Michigan, Wisconsin, Pensilvânia e Flórida, estados em que venceu por pouco. Como controlar o fluxo de dinheiro nesse ambiente?
5 – A liberdade de expressão e as campanhas paralelas em tempos de fake news – Enquanto a nova lei eleitoral levanta questões importantes para dentro das campanhas, não precisamos esperar 2018 para recebermos nas nossas timelines “notícias” bombásticas sobre atores políticos. Um está tramando intervenção militar com generais, outro tem as chaves pra burlar as urnas eletrônicas. São dezenas de sites que ganham dinheiro com anúncios conseguindo tráfego nas redes a partir de mentiras, meias-verdades e manipulações. É um ambiente em que aparecem no mesmo nível os posts dos principais jornais do país, startups jornalísticas, partidos, empresas, amigos, sites de notícias falsas, fakes de militantes e robôs. Como saber se um post ou anúncio de um site de curiosidades e cultura não é na verdade uma propaganda disfarçada? E como regular esse ambiente extra-campanha sem afetar a liberdade de expressão e sem criar mecanismos que só deem relevância a veículos tradicionais de imprensa, estabelecendo uma barreira para novos?
Estes são apenas subsídios para uma discussão mais ampla, que pode ter o potencial de influenciar o resultado das eleições, em um ambiente ainda não explorado. Avançamos com novos meios de fazer campanha sem que os órgãos de fiscalização e organização das eleições tenham se mostrado eficientes para coibir abusos das campanhas tradicionais. Se o TSE não tem condições de fiscalizar com eficiência um candidato e as informações entregues por ele em papel, como fiscalizará um candidato de mil faces no ambiente digital controlado por empresas privadas e multinacionais? E como o eleitor poderá perceber, em meio aos fragmentos contraditórios, quais são as propostas reais dos candidatos?
Fonte: JOTA
Acesso em: 01/11/2017