Prezados leitores do JOTA,
Conforme já analisado nesta coluna em outro momento, o Código de Processo Civil de 2015 estabelece uma sistemática de observância obrigatória de precedentes judiciais[1], de acordo com o art. 927:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Segundo Rodrigo Mudrovitsch e Guilherme Pupe, “dentre as novidades trazidas pelo ainda recente codex, chamou atenção um alardeado novo capítulo no processo de amadurecimento de uma cultura brasileira de precedentes e de objetivação processual. A merecer destaque, nesse particular, o caput do artigo 927 trouxe consigo norma a prever que os juízos e tribunais “observarão”— rectius, se vincularão a— precedentes judiciais, dentre os quais assim consideradas, na forma do inciso I, as decisões proferidas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade.
Trata-se, a nosso sentir, de uma das mais significativas alterações no novo regime, visto que o CPC revogado não estabelecia hipóteses em que os juízes estariam compelidos a decidir de acordo com teses firmadas pelos Tribunais Superiores (ou intermediários), muito embora as decisões proferidas pelo STF em repercussão geral e pelo STJ, em recurso especial repetitivo, gozassem de acentuada força persuasiva.
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Para além do estabelecimento da necessidade de se observarem os precedentes indicados no artigo 927 do CPC, o Código disciplinou uma forma de controlar o descumprimento das decisões que se afastarem da tese estabelecida.
Com efeito, o artigo 988 do CPC dispõe, in verbis:
Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:
I – preservar a competência do tribunal;
II – garantir a autoridade das decisões do tribunal;
III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência;
§ 1º A reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.
§ 2º A reclamação deverá ser instruída com prova documental e dirigida ao presidente do tribunal.
§ 3º Assim que recebida, a reclamação será autuada e distribuída ao relator do processo principal, sempre que possível.
§ 4º As hipóteses dos incisos III e IV compreendem a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam.
§ 5º É inadmissível a reclamação:
I – proposta após o trânsito em julgado da decisão reclamada;
II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias.
§ 6º A inadmissibilidade ou o julgamento do recurso interposto contra a decisão proferida pelo órgão reclamado não prejudica a reclamação.
Tem-se, como regra, portanto, de acordo com o §5º, II, que é possível o ajuizamento de reclamação, visando garantir a observância de acórdão (rectius – tese adotada em acórdão) proferido em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, recurso extraordinário ou especial repetitivos, desde que esgotada a instância ordinária[2].
Trata-se também de novidade, já que o Supremo Tribunal Federal, em outras oportunidades, afastara o cabimento de reclamação constitucional para fazer valer os fundamentos determinantes de suas decisões[3].
Pois bem. No julgamento da Reclamação nº 26300, proposta pela União, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, o tema foi enfrentado pela primeira vez na vigência do novo CPC, tendo o relator acolhido os argumentos apresentados pela reclamante, e determinado a cassação da decisão que se afastou do precedente invocado como paradigma.
No caso, a União argumentou que o acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região teria descumprido o quanto decidido no julgamento do Recurso Extraordinário nº 632.853-RG/CE, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes.
No referido RE, assim decidiu o Supremo Tribunal Federal:
Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Concurso público. Correção de prova. Não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas. Precedentes. 3. Excepcionalmente, é permitido ao Judiciário juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame. Precedentes. 4. Recurso extraordinário provido. (RE 632853, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe 29-06-2015)
A decisão reclamada restou assim ementada:
APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 5046116-79.2014.4.04.7100/RS. ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. CONCURSO PÚBLICO. ANULAÇÃO QUESTÃO PROVA. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE RESPOSTA CORREÇÃO. INTERVENÇÃO PODER JUDICIÁRIO. PARTICIPAÇÃO DO CANDIDATO POR ORDEM JUDICIAL. APROVAÇÃO. NOMEAÇÃO. PECULIARIDADE DO CASO CONCRETO.
- É possível a interferência do Poder Judiciário na avaliação/correção de provas quando restar evidenciado a ilegalidade do Edital ou o seu descumprimento pela banca examinadora.
- omisso.
- omisso.
Porto Alegre, 16 de junho de 2015.
Desembargador Federal Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle
Relator
Ao analisar o caso, o Ministro Ricardo Lewandowski ocupou-se inicialmente de tratar sobre o cabimento da Reclamação, com o propósito de controlar decisões judiciais que se afastam de entendimentos vinculantes.
Apresentou, num primeiro momento, a jurisprudência do STF, que “antes da entrada em vigor do CPC/2015 (…) era pacífica em considerar incabíveis reclamações que apontassem como paradigma um leading case de repercussão geral”. Citou os julgamentos proferidos nas Rcl 15.378-AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Primeira Turma, Dje de 11/09/2015 e Rcl 18.368-AgR, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, DJe de 11/3/2015.
Na sequência, o relator, acertadamente, afirmou que, após a vigência do novo CPC, passou a ser cabível a reclamação na qual se indique como parâmetro de controle um leading case de repercussão geral, desde que esgotadas as instâncias ordinárias.
Fundamentou a necessidade de cassar a decisão reclamada nos seguintes termos:
“No mérito, destaco que este Tribunal, no julgamento do RE 632.853-4 RG/CE (Tema 485), de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, exarou o entendimento segundo o qual “não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas”. No entanto, reconheceu-se, naquela assentada, que, “excepcionalmente, é permitido ao Judiciário juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame.
Ocorre que, pelos elementos que constam dos autos, o Juízo de primeiro grau, bem como o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a despeito do que decidido por esta Corte no RE 632.853-RG/CE, substituiu a banca examinadora, avaliando a resposta mais adequada à questão formulada, com a atribuição de ponto a alguns candidatos. “
Ao realizar o cotejo analítico entre o caso paradigma e a decisão reclamada, o Ministro Relator ponderou que:
“a excepcionalidade assinalada na decisão proferida por esta Suprema Corte, sob a sistemática da repercussão geral, não ficou caracterizada, pois não foi feito pelos julgadores o mero juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame, havendo, de fato, substituição da banca examinadora pelo Poder Judiciário, que, para reconhecer o “erro de correção”, foi além do controle de legalidade, fazendo interpretação da questão e alterando as notas atribuídas aos candidatos. Verifica-se, portanto, que a decisão reclamada descumpriu a orientação firmada por este Tribunal, no julgamento do RE 632.853-RG/CE (Tema 485)”
Elogiável, sob vários aspectos, a decisão proferida pelo Ministro Lewandowski. A uma, por aplicar corretamente a nova função da reclamação, qual seja: controlar decisões judiciais que se afastam de teses jurídicas adotadas pelo Supremo Tribunal Federal, em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, desde que esgotada a instância ordinária.
A duas, por incumbir-se do ônus de fundamentar efetivamente a decisão (art. 489 do CPC), cotejando-se analiticamente o caso paradigma e o caso concreto, para concluir pelo descumprimento da orientação vinculante firmada.
Espera-se que, a partir do julgamento ora relatado, o Supremo Tribunal Federal enfrente e reveja, de forma expressa, a questão da aplicabilidade da teoria da transcendência dos motivos determinantes, visto que, a partir da lógica dos precedentes, as razões de decidir tornar-se-ão referência para casos futuros.
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[1] MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt e NÓBREGA, Guilherme Pupe. O que vincula no efeito vinculante? CPC/2015 e transcendência de motivos in http://www.conjur.com.br/2016-set-03/observatorio-constitucional-vincula-efeito-vinculante-cpc-transcendencia-motivos?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook
[2] Por esgotamento da instância ordinária, entende-se, na linha da jurisprudência do STF, adotada pelo Ministro Relator na Reclamação ora analisada, aquela situação em que todos os recursos disponíveis foram utilizados, incluindo o agravo interno contra a decisão de inadmissibilidade do recurso extraordinário.
[3] Trata-se aqui da teoria da transcendência dos motivos determinantes, afastada no julgamento da Reclamação nº 3.094, muito embora tenha contado com voto favorável do Ministro Gilmar Mendes. Para maior aprofundamento sobre o tema, recomendamos a leitura doo já citado artigo publicado por Rodrigo Mudrovitsch e Guilherme Pupe, que avaliam a necessidade de revisitação do tema, a partir da vigência do novo CPC. Ob. cit. in http://www.conjur.com.br/2016-set-03/observatorio-constitucional-vincula-efeito-vinculante-cpc-transcendencia-motivos?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook.
Jota
www.jota.info
Acesso em 08/05/2018