Uma indenização bastante onerosa em um processo trabalhista ganhou as manchetes dos jornais americanos, por um motivo, digamos, aparentemente estrambótico. Legisladores estaduais do Maine, ao elaborarem uma norma sobre jornada de trabalho, se atrapalharam com o uso (ou o não uso) de uma vírgula; e essa pontuação duvidosa levou a uma divergência de interpretação da lei. Patrões a interpretavam de uma forma; empregados, de outra. Em um dos processos, uma empresa acabou condenada e achou melhor fechar um acordo de cinco milhões de dólares para não levar um prejuízo ainda maior. Vamos ao caso.
Um grupo de empregados contratados como motoristas entregadores processou o seu empregador, a empresa de laticínios Oakhurst Dairy, perante a Justiça Federal do Maine, alegando que não recebiam as horas extras trabalhadas, na forma prevista pela lei estadual (nos EUA, diferentemente do Brasil, a competência para legislar sobre direito do trabalho é concorrente entre Estados e União). A legislação trabalhista do Estado do Maine estabelece que horas laboradas além da jornada normal devem ser remuneradas com adicional de 50%, porém determina (de forma semelhante ao nosso art. 62 da CLT) que certos trabalhadores não estão sujeitos ao regime de controle de jornada e, portanto, não tem direito ao recebimento de remuneração extraordinária. Assim, a norma laboral do Maine estabelece que, dentre outros, não têm direito ao percebimento de horas extras os trabalhadores contratados para as atividades de:
“envasar, processar, preservar, congelar, secar, rotular, armazenar e embalar para expedição ou distribuição de:
Produtos agrícolas
Carne e peixe; e
Alimentos perecíveis”.
-
Pois bem. No entendimento dos autores da ação, só estariam excluídos do direito a horas extras os empregados engajados nas atividades descritas até a palavra “embalar”, quando tais atividades se destinassem a “expedição ou distribuição”. No entanto, no entendimento da empresa, estariam excluídas do regime de horas extras não apenas as várias atividades descritas destinadas à expedição; também a mera “distribuição”, isoladamente considerada, seria motivo de excludente: afinal o vocábulo distribuição segue-se à conjunção “ou”, a qual deveria ser entendida como o último item de uma longa relação. Ou seja, na interpretação patronal da lei, “distribuição” seria um item serial subsequente a “embalar para expedição” e não um conjuntivo de “expedição”. E, como os trabalhadores requerentes faziam exclusivamente distribuição, estariam também incluídos na exceção da norma e, assim, não teriam direito a horas extras.
E aí é que entrou a polêmica da vírgula. Muitos anglófonos defendem ser obrigatório o uso da “vírgula serial”, que, segundo os puristas da gramática inglesa, deveria ser empregada quando é necessário deixar claro que o último item de uma série tem caráter aditivo e não conjuntivo (pois A, B ou C seria diferente de A, B, ou C; na primeira hipótese, “C” seria um elemento textual relacionado a “B”, mas não a “A” necessariamente; enquanto que, no segundo caso, está se tratando de uma série indeterminada de elementos e “C” é um consectário de “A” ou “B”). Assim, para exemplificar, a frase, “na sobremesa, temos, além de frutas, sorvete de creme e chocolate” seria diferente de “na sobremesa, temos, além de frutas, sorvete de creme, e chocolate”. Sem a última vírgula, o chocolate poderia se referir ao sabor do sorvete e, com ela, se torna um item distinto do cardápio. Essa vírgula serial é conhecida também no mundo da anglofonia como “vírgula de Oxford” (Oxford comma), por ter seu uso recomendado pela editora da Universidade de Oxford.
Desta forma, os advogados dos trabalhadores defenderam que a ausência da “vírgula de Oxford” no texto da lei seria um “silêncio eloquente”, pois, segundo eles, se os legisladores quisessem ter excluído do direito a horas extras os motoristas dos caminhões de produtos perecíveis, a teriam utilizado, para deixar claro que a atividade de distribuição, isoladamente considerada, também estava fora do regime de horas extras.
Todavia, há graves dúvidas gramaticais entre os próprios estetas da língua de Shakespeare – profissionais ou amadores – sobre a obrigatoriedade, ou não, do uso da vírgula de Oxford, o que só contribuiu para aumentar a insegurança jurídica em torno da questão. Há, aliás, divergências seríssimas entre reputados manuais de redação e estilo, com relação a essa relevante matéria vernacular. Por exemplo, o manual de redação e estilo da Associated Press é contra a “Oxford comma”, como também o do New York Times; todavia, o da Universidade de Chicago é a favor.
Para complicar as coisas ainda mais, o emprego da vírgula de Oxford é um assunto que polariza e divide a sociedade americana, semelhantemente ao que ocorre com temas como aborto, controle de armas e Donald Trump. Segundo uma pesquisa de 2014, 57% dos habitantes dos EUA são favoráveis ao uso obrigatório da “Oxford comma”, enquanto 43% lhe são contrários (às vezes me pergunto se os americanos não têm mais o que fazer).
Exatamente em razão das acirradas e bizantinas divergências virgulinas, a empresa tentou fazer prevalecer nos tribunais uma interpretação teleológica. Ora, perguntaram os advogados patronais, qual o propósito de excluir os trabalhadores do regime de jornada limitada? Fazer com que produtos alimentares perecíveis não estraguem em razão do término abrupto da jornada de trabalho. E, sob esse ponto de vista, indubitavelmente seria necessário incluir na cláusula de exceção os motoristas que distribuem os laticínios da empresa.
A tese da interpretação teleológica sensibilizou o juízo de primeiro grau, e a empresa ganhou a causa perante a Justiça Federal de primeira instância. Mas a alegria dos patrões durou pouco, pois a Corte de Apelações do Primeiro Circuito reverteu a decisão.
Em sua decisão, o juiz relator David Jeremiah Barron, em síntese, alegou que o texto da norma inequivocamente dá margem a interpretações textuais distintas, o que teria sido reconhecido em primeiro grau de jurisdição. Para demonstrar que de fato havia sérias dúvidas sobre o sentido do texto, o juiz Barron alongou-se em especulações gramaticais, socorrendo-se de manuais de redação e dicionários. Ele, inclusive, reconheceu que o Manual de Redação Legislativa do Estado do Maine recomenda expressamente que a vírgula de Oxford não seja usada como regra, o que, em princípio, seria um reforço à tese patronal. Mas, por outro lado, o manual admite que em situações excepcionais, quando ocorre uma alteração na natureza de um dos itens de uma série (como no caso em questão), aquela pontuação específica pode ser usada. Além disto, o juiz assinalou que o Manual de Redação do Maine está em um grupo minoritário de apenas sete estados que são contrários à vírgula de Oxford, sendo que os demais quarenta e três legislativos estaduais são favoráveis àquela pontuação, posição que também é perfilada pelos técnicos legislativos do Congresso dos EUA.
Assim, sustentou, ao invés de pura e simplesmente escolher qual a melhor interpretação gramatical ou optar pela teleológica (que para ele também é duvidosa), o juiz deve seguir outro dispositivo da legislação estadual, segundo o qual em casos de obscuridade legal, a questão deve ser decidida em favor dos fins a que a lei se destina. Considerando que o propósito da norma é proteger os trabalhadores de jornadas longas, as exceções a essa regra, em caso de obscuridade, devem ser, no seu entendimento, interpretadas restritivamente.
Com a decisão da corte de apelações da justiça federal – e sendo improvável a admissibilidade de outros recursos – estimava-se que uma possível execução poderia alcançar a cifra de até dez milhões de dólares. Mas a empresa se antecipou e resolveu pagar cinco milhões de dólares em acordo. Como se trata de uma ação coletiva ajuizada por 75 empregados, eles dividirão esse valor, que será distribuído de acordo com o tempo de serviço de cada um. Em média, os ex-empregados receberão cerca de 65 mil dólares.
Além dos trabalhadores, portanto, saíram vitoriosos no processo os fervorosos defensores da “Oxford Comma”, cujo valor, pelo menos monetário, parece agora ser inquestionável.
Disponibilizo aqui o link para a decisão da Corte de Apelações do Primeiro Circuito, para quem gosta de direito do trabalho, direito comparado, e de vírgulas.
***
Com certa frequência, ouço empresários reclamando que, no Brasil, “mesmo se você cumprir rigorosamente a legislação trabalhista, poderá ser processado na Justiça do Trabalho”. Respondo a eles que sim, isso é verdade. Mas essa é uma verdade universal e não nacional. Em qualquer lugar do mundo capitalista e democrático, o contrato de trabalho é, por natureza, conflituoso, gerando com frequência divergências de interpretação e processos judiciais, por maior que seja a boa fé dos contratantes.
As partes de um contrato de trabalho têm objetivos que, se de um lado se harmonizam (geração comum de riqueza), de outro, entram rotineiramente em choque, pois o empregador sempre quer otimizar o lucro extraído da mão-de-obra, enquanto o empregado quer maximizar o valor do seu trabalho. Além disto, como a economia capitalista é extremamente dinâmica e cada atividade empresarial e laboral tem características peculiares, as normas trabalhistas gerais, por mais claras e precisas que sejam, não têm como dar conta de todas as discrepâncias decorrentes dos processos de “otimização do lucro/maximização do trabalho”. Assim, é absolutamente natural que a relação de trabalho seja perpassada por essa “tensão contratual imanente” e que os menores desentendimentos sobre o valor da mão de mão obra (que evidentemente incluem, sobretudo, a duração da jornada), suscitem conflitos, inclusive judiciais.
O caso da vírgula mal posta pelos legisladores do Maine demonstra que o Brasil não é nenhuma “jabuticaba”, neste particular: os proprietários da empresa de laticínios do Maine também acreditavam que estavam cumprindo rigorosamente e de boa fé a lei trabalhista local.
Acesse o conteúdo completo em www.jota.info