Questões relacionadas à prisão e (in)elegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva há algum tempo vêm tomando enormes proporções, e aqui, o que se propõe, é justamente diferenciar tais questões, principalmente no que diz respeito a sua elegibilidade.
De início há de pontuar que a prisão imposta ao ex-presidente possui caráter cautelar, processual, consoante posicionamento do Supremo Tribunal Federal, e a possibilidade de tal prisão (após acórdão condenatório) consubstanciou-se nos termos do voto proferido pelo ministro Teori Zavascki, que permitiu a execução provisória de acórdão condenatório[1].
Sem adentrar ao mérito do caso concreto, há de se esclarecer que os principais fundamentos ensejadores da possibilidade de execução provisória – a qual, repete-se, possui caráter cautelar –, são: (i) a ausência de efeito suspensivo das vias recursais especial e extraordinária; e (ii) a impossibilidade de discutir-se matérias inerentes aos fatos, mas tão somente rever questões de direito, nos termos do Excelentíssimo ministro Teori nos recursos dirigidos aos Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal não é possível rediscutir-se a culpabilidade do agente.
Equivocado, ao nosso ver, tal posicionamento. De fato, em sede recursos especial e extraordinário, não é mais possível rediscutir-se fatos, e muito menos culpabilidade. De todo modo, ao impugnar a inobservância por parte dos juízos a quo de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, o acórdão prolatado pelas cortes superiores pode diminuir as penas impostas, anular ações penais desde o início e até mesmo invalidar provas que motivaram a condenação – nesse ponto, consequentemente absolvendo o recorrente.
Nesse ponto, de maneira muito bem acertada ao esclarecer que a execução provisória da pena de prisão é possível, porém não é obrigatória, o ministro Dias Toffoli concedeu um habeas corpus de ofício[2] (em outras palavras, sem que que lhe fosse requerido) para o fim de suspender a execução provisória imposta ao então paciente, fundamentando tal decisão na plausibilidade jurídica de recurso proposto contra a condenação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tendo seu voto sido acompanhado pelos eminentes ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.
Portanto, o que pode ensejar a execução provisória de acórdão condenatório (repete-se, que se trata de prisão cautelar) é a presença dos elementos elencados nos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal, devendo o magistrado observar questões inerentes aos riscos que a liberdade do agente possa causar a sociedade (periculum in libertatis), a existência do crime e de indícios suficientes de autoria (fumus commissi delicti), a pena imposta, as condições pessoais do agente e ainda condições pessoais de eventual vítima.
Sem adentrar ao mérito da (i)legalidade da prisão imposta ao ex-presidente da República, diante do exposto, é patente que a segregação de sua liberdade não guarda relação alguma com a (im)possibilidade de concorrer ao cargo pretendido.
O fato que, até o momento, impede sua candidatura se fundamenta na Lei Complementar 64/1990, que sofreu substancial alteração com a promulgação da Lei Complementar n. 135/2010, projeto de lei de iniciativa popular, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa.
Necessário fazer alguns esclarecimentos com relação aos direitos políticos, que são inerentes a todos os cidadãos brasileiros.
Pois bem, a Constituição da República, no parágrafo único do artigo 1°, pontua que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.
Nesse sentido, o artigo 14 do texto constitucional, esclarece os meios pelos quais será exercida a soberania popular, que consiste basicamente no sufrágio universal, e o próprio artigo regulamenta os casos em que o alistamento eleitoral é obrigatório ou facultativo, como também aqueles que podem se alistar, e se eleger.
Outrossim, o artigo 15, também da Carta Magna, esclarece de maneira expressa que “é vedada a cassação de direitos políticos”, e traz em seus incisos às exceções a tal regra, de modo que somente serão caçados os direitos políticos em caso de:
cancelamento de naturalização por sentença transitada em julgado;
incapacidade civil absoluta;
condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;
recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do artigo 5º, VIII;
improbidade administrativa, nos termos do artigo. 37, parágrafo 4º.
Nada obstante tais exceções, o parágrafo 9°, do artigo 14, esclarece que “lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
Diante de tal necessidade, fora editada a Lei Complementar 64/1990, que foi substancialmente alterada pela Lei Complementar 135/2010, que incluiu novas hipóteses de inelegibilidade.
O que importa ao presente estudo é justamente o objeto das referidas Leis Complementares, já que são estes dispositivos legais que impedem a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Vale destacar o fato que quando da promulgação Lei Complementar 135/2010, o Supremo Tribunal Federal julgou conjuntamente as ações declaratórias de constitucionalidade 29 e 30, que foram propostas respectivamente pelo Partido Popular Socialista e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, oportunidade na qual, por maioria de votos, julgou a supramencionada “Lei da Ficha Limpa” constitucional.
Naquela oportunidade, a Suprema Corte posicionou-se no sentido de que as hipóteses que ensejam inelegibilidade estão elencadas na Lei da Ficha Limpa e não possuem natureza jurídica de pena, mas que se trata de um rol de requisitos objetivos que permitem a suspensão do direito político passivo (direito de ser votado), este rol é aplicável a todo cidadão brasileiro.
A nosso ver, as hipóteses que ensejam a suspensão do direito político passivo muito se assemelham às consequências do trânsito em julgado de sentença condenatória, conforme artigos 91 e 92 do Código Penal.
Nesse ponto, vale fazer referência ao início desse artigo. Como dito, nos dias atuais, a Corte Constitucional permite a prisão cautelar para o fim de executar acórdão condenatório proferido em sede de recurso de apelação. Em outras palavras, caso haja decisão colegiada que condene determinado réu, este poderá ser recolhido à prisão, em caráter cautelar, para o cumprimento de sua condenação, e, por óbvio, tal prisão possui natureza jurídica de pena.
Igualmente, a Lei Complementar 135/2010 trouxe diversas hipóteses em que caso haja decisão colegiada que condene determinado réu, este se tornará inelegível pelo prazo de 8 anos.
Nessa toada, como é possível afirmar que a natureza jurídica de tal posicionamento não é de pena? Tal assertiva seria o mesmo que dizer que em havendo acórdão condenatório o réu deverá ser recolhido à prisão, pois não reuniria os requisitos objetivos necessários para viver em sociedade, o que é teratológico, e evidentemente não afasta a natureza jurídica de pena.
Diante do exposto, a nosso ver, é certo que tanto a execução provisória de acordão condenatório, quanto a inelegibilidade, pela mesma razão, possuem latente natureza jurídica de pena.
Ambas as possibilidades claramente vilipendiam o princípio do estado inocência (artigo 5°, LVII, da Constituição da República), o qual pontua que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
É certo que essa garantia individual foi consagrada muito antes de 1988, ano de promulgação da Constituição da República. Dentre seus principais marcos vale consignar que tal garantia fora consagrada num primeiro momento em 1789, no artigo 9° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão[3], posteriormente reiterada em 1948 no artigo 26 da Declaração Americana de Direitos e Deveres[4], e também no artigo 9° da Declaração Universal dos Direitos Humanos[5], em também no artigo 7° do Pacto de San José da Costa Rica[6].
Outrossim, nada obstante o artigo 1°, parágrafo único, e artigo 14 da Constituição da República, é certo que o direito ao sufrágio universal é consagrado em legislações muito anteriores, como no artigo 20 da Declaração Americana da Direitos de Deveres[7], artigo 21 da Declaração Universal dos Direito Humanos[8], artigo 23 do pacto de São José da Costa Rica[9].
Perceba, a execução provisória de acordão condenatório, e a inelegibilidade por essa mesma razão constituem um enorme retrocesso cívico, indo claramente em desencontro com os princípios basilares do “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”[10].
Assim sendo, não pode mais ser concebida a execução provisória da pena como regra geral, e, muito menos a inelegibilidade antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, tendo em vista se tratar de verdadeiro retrocesso que vem em desencontro ao Estado Democrático de Direito.
Destarte, o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal – presente no habeas corpus concedido de ofício pelo ministro Dias Toffoli – consagra o princípio da presunção do estado de inocência, há tempos rechaçado ante a “regra” com relação à execução provisória da pena, e, diante disso, fica evidente que o ex-presidente, sem prejuízo algum, pode aguardar o julgamento e trânsito em julgado de seus recursos dirigidos às cortes superiores em liberdade.
Entretanto, nos moldes da legislação eleitoral em vigor, Luiz Inácio Lula da Silva é absolutamente inelegível, o que a nosso ver vai em desencontro com diversos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, o que vilipendia as suas garantias individuais como cidadão.
[1] STF – HC 126.292/SP, relator Min. Teori Zavascki. DJe 17.05.2016.
[2] STF – RCL 30.245/PR, relator Min. Dias Toffoli. DJe 28.06.2018.
[3] Artigo 9, da Constituição dos Direitos do Homem e do Cidadão: Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.
[4] Artigo 26 da Declaração Americana de Direitos e Deveres: Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos. Deve poder contar, outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridade que violem, em seu prejuízo, qualquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.
[5] Artigo 9° da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
[6] Artigo 7° do Pacto de San José da Costa Rica: Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários
[7] Artigo 20 da Declaração Americana da Direitos de Deveres: Toda pessoa, legalmente capacitada, tem o direito de tomar parte no governo do seu país, quer diretamente, quer através de seus representantes, e de participar das eleições, que se processarão por voto secreto, de uma maneira genuína, periódica e livre.
[8] Artigo 21 da Declaração Universal dos Direito Humanos: Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos negócios, públicos do seu país, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2.Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país. 3.A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.
[9] Artigo 23 do Pacto de San José da Consta Rica: Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades: de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores.
[10] Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil.
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