Por Israel Nonato[1] | Editor do Os Constitucionalistas
Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
– Lya Luft
1) Introdução
Era primavera de 2010 e o Supremo Tribunal Federal se deparava pela primeira vez com a Lei da Ficha Limpa. “Temos aqui um caso de arremedo de lei”, proclamou o ministro Cezar Peluso. A frase é emblemática. Em questão de ordem no RE 630.147, o então presidente do STF sustentou a inconstitucionalidade formal da Lei Complementar 135/2010. Para Peluso, o projeto de lei violou o parágrafo único do art. 65 da Constituição.
O Supremo Tribunal Federal, contudo, nunca julgou a inconstitucionalidade formal da Ficha Limpa. No RE 630.147, o Plenário não conheceu da questão de ordem do ministro Cezar Peluso. No RE 633.703, a Corte se restringiu a fixar que a lei não era aplicável nas eleições de 2010. E nas ADCs 29, 30 e ADI 4.578, os ministros se limitaram a julgar a constitucionalidade material das novas causas de inelegibilidade.
O entendimento atual é que “Ficha suja está fora do jogo democrático”[2]. Porém, sendo contramajoritário, indaga-se: será que esse “ficha suja” está mesmo fora do jogo? Será que um condenado em segundo grau está mesmo impedido de concorrer a mandatos eletivos? E se a Ficha Limpa contrariar as normas constitucionais do bicameralismo?
A Ficha Limpa não é soberana. Não pode se sobrepor à Constituição. E numa democracia representativa, é do eleitor – e de ninguém mais[3] – o direito de escolher o candidato no qual depositará sua confiança. Para exercer esse direito, o eleitor precisa de liberdade para fazer escolhas conscientes.
A questão fulcral que se coloca no presente artigo[4] é: a Lei da Ficha Limpa viola o “devido processo legislativo constitucional”, como apontou o ministro Cezar Peluso no RE 630.147? Para encontrar a resposta, é preciso definir qual Casa – Senado ou Câmara – tinha a última palavra no processo de formação da lei.
2) RE 630.147. Questão de ordem
No julgamento do RE 630.147, o Supremo Tribunal Federal teve o seu primeiro encontro com a Ficha Limpa. Na sessão de 22 de setembro de 2010, o ministro Ayres Britto (relator) votou pela aplicação da lei às eleições de outubro daquele ano. Entendeu também que a LC 135/2010 podia apanhar atos anteriores a sua vigência. Porém, após o voto do relator, o ministro Cezar Peluso, em questão de ordem, suscitou a inconstitucionalidade formal da Ficha Limpa.
Peluso destacou que a emenda do Senado Federal ao projeto da Ficha Limpa não era uma emenda de redação. Salientou que, ao alterar o tempo verbal de cinco alíneas, a Casa revisora alterou o conteúdo semântico do texto. O projeto deveria voltar à Câmara dos Deputados. Só que o Senado enviou o projeto à sanção. Para o então presidente do STF, o caso era de arremedo de lei. “O projeto violou o artigo 65, parágrafo único, da Constituição, violou o devido processo constitucional legislativo”, concluiu o ministro Cezar Peluso:
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE): Antes de se abrir a discussão, eminentes Ministros, eu estava muito atento, ouvindo o voto de Sua Excelência, o eminente Relator, na expectativa de que Sua Excelência ventilasse questão que me parece decisiva no caso.
Como a Corte já fixou em dois recursos extraordinários, Vossas Excelências hão de se recordar, no caso em que se discutia um recurso extraordinário de São Paulo, de funcionário público, em que se discutia se o Tribunal devia resolver a questão com base no princípio do direito adquirido ou no princípio da irredutibilidade. O Tribunal, em duas oportunidades, no Plenário, fixou o seguinte princípio: pode o Supremo Tribunal Federal, conhecendo de recurso extraordinário fundado no 102, III, “a”, decidir a causa aplicando norma constitucional que, embora incidente e aplicável no caso, não foi nem invocada nem discutida.
Por que estou invocando esses dois precedentes importantíssimos? Por um fato que até me deixa perplexo em ter passado despercebido. Todos sabemos que essa lei resultou de projeto que se iniciou e foi aprovado na Câmara dos Deputados. Aprovado, foi remetido ao Senado, e o Senado aprovou emenda apresentada pelo Senador Francisco Dornelles, na qual se alteravam os tempos verbais de várias alíneas do inciso I do artigo 1º da Lei 64, com a alteração que, no fim, resultou na Lei Complementar 135.
Entre essas alíneas, dizia o texto da Câmara:
“h) condenados em decisão transitada em julgado”; o Senado aprovou – “que forem condenados em decisão transitada em julgado”;
“j) os que tenham sido condenados, em decisão transitada em julgado”; e o Senado aprovou – “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado”;
k) ………
l) ………
“m) os que tenham sido excluídos do exercício de profissão, por decisão sancionatória”; disse o Senado aprovando o texto – “os que forem excluídos”;
“o) os que tenham sido demitidos do serviço público”; e o Senado aprovou – “os que forem demitidos do serviço público”;
“q) os magistrados e os membros do Ministério Público que tenham sido aposentados compulsoriamente”; e o Senado aprovou – “os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente”.
Evidentemente – não preciso nem insistir – que essas emendas aprovadas pelo Senado não podem, em nenhum sentido, ser consideradas emendas de redação.
O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (RELATOR): É que isso não foi prequestionado.
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE): Por isso é que invoquei os precedentes da Corte, Ministro. Essa norma incide, embora não discutida. Mas podemos decidir o recurso com base nela.
O que se alterou? Alteraram-se os tempos verbais dos tipos, e alteraram-se, não para efeito de sanar algum vício de linguagem, alguma imprecisão terminológica, não. Passou-se do pretérito perfeito composto, com o verbo auxiliar da voz passiva – “tenha sido condenado, tenha sido demitido” – para o futuro composto da voz passiva – “que forem condenados, que forem etc.”
É verdade que o Regimento Interno do Senado Federal não diz o que seja emenda de redação. Mas o § 8º do artigo 118 do Regimento Interno da Câmara dispõe o seguinte:
“Art 118. …………………………
§ 8º Denomina-se emenda de redação a modificativa que visa a sanar vício de linguagem, incorreção de técnica legislativa ou lapso manifesto.”
Evidentemente, nada disso aconteceu. Temos aqui hipótese exemplar de emenda que alterou o conteúdo semântico do texto, ou dos textos provindos da Câmara dos Deputados.
Mas vamos fazer uma concessão: se se tratasse ou se se pudesse tratar de meras emendas de redação, o que prevê a respeito o Senado Federal no Regimento?
“Art. 234. A emenda que altere apenas a redação da proposição será submetida às mesmas formalidades regimentais de que dependerem as pertinentes ao mérito.”
Não foi à toa que dois deputados, especificamente, os senhores Paes de Lira e Luiz Couto, apresentassem à Mesa da Câmara dois requerimentos.
Dizia o primeiro deles, de Paes de Lira:
“Senhor Presidente,
Com fundamento no art. 65, parágrafo único, da Constituição Federal, e nos termos regimentais, solicito a Vossa Excelência que sejam adotadas as medidas legais…; retorne a esta Casa legislativa, uma vez que sofreu alterações de mérito, nos seguintes termos constitucionais:
Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar.
Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora”.
Aí, ele justifica o texto da Câmara: “ter sido condenado.”
Diz Sua Excelência à Mesa:
“Assim, para evitar a violação da competência constitucional da Câmara, ou mesmo a declaração de inconstitucionalidade da lei, por vício formal, faz-se necessário o retorno do projeto à Câmara, para que a Casa Originária exerça o seu papel regimental e constitucional”.
A mesma coisa é dita no requerimento do Deputado Luiz Couto – não o vou transcrever, porque diz substancialmente a mesma coisa e também pede que retorne.
O que a Mesa da Câmara respondeu a esses requerimentos? Deu a seguinte decisão, em ambos os casos:
“Não há previsão regimental para que o Presidente da Câmara dos Deputados, do ponto de vista do processo legislativo, possa interferir no procedimento adotado pelo Senado Federal. Trata-se de alterações efetuadas naquela Casa do Poder Legislativo, sob alegação de correção redacional. Dessa feita, não cabe à Presidência da Câmara questionar ou discutir as preferências redacionais do Senado Federal”.
E o projeto foi submetido à sanção.
A meu ver, com o devido respeito, estou pondo a questão à discussão, a mim me parece que temos um caso, aqui, de arremedo de lei, ou seja, de projeto que violou o artigo 65, parágrafo único, da Constituição, e, por conseguinte, violou o devido processo constitucional legislativo, porque não foram adotadas as exigências de tramitação no caso de emendas que, em nenhuma hipótese, poderiam ser consideradas de mera redação. E, ainda que o fossem, segundo o Regimento do Senado, teriam que obedecer às mesmas exigências das emendas tendentes à alteração de conteúdo ou de alteração de mérito.
É o que estou submetendo à consideração de Vossas Excelências, a mim me parecendo que seria caso de inconstitucionalidade formal, que preexclui a discutibilidade eventualmente das arguidas inconstitucionalidades materiais.
(STF, RE 630.147, Red/p acórdão Min. Marco Aurélio, DJe 5.12.2011. Questão de ordem do ministro Cezar Peluso. Grifos no original)
A questão causou intensa discussão[5] no Plenário. Sem conseguir proferir o seu voto, o ministro Dias Toffoli pediu vista. No dia seguinte, retomado o julgamento, a proposta do ministro Cezar Peluso foi rejeitada. Os ministros Ayres Britto (relator), Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Celso de Mello não conheceram da questão de ordem. Havia um óbice processual. Os seis ministros entenderam que a questão era incognoscível, pois ausente o requisito do prequestionamento. A Corte de origem[6] não tinha debatido a inconstitucionalidade formal da Ficha Limpa.
O STF não admitiu a questão de ordem. Não julgou a inconstitucionalidade formal da lei suscitada pelo ministro Cezar Peluso. Como lamentou o ministro Marco Aurélio, “Seis Ministros se recusaram a discutir a constitucionalidade formal da lei (…) Seis Ministros recusaram-se a discutir, sequer discutir, a inconstitucionalidade da lei!”[7].
No final, nenhuma tese de repercussão geral foi fixada no RE 630.147. Nem mesmo a da incidência ou não da Ficha Limpa nas eleições de 2010. Após dois dias de julgamento, com o Tribunal dividido (5 votos contra, 5 a favor da aplicação da LC 135/2010), o recorrente desistiu do recurso. Na sessão de 29 de setembro de 2010, o Supremo Tribunal Federal declarou extinto o processo, sem julgamento do mérito, contra os votos do ministros Ayres Britto (relator), Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa. O ministro Marco Aurélio ficou designado como redator do acórdão.
3) RE 633.703. Princípio da anterioridade eleitoral
Em 23 de março de 2011, com o julgamento do RE 633.703, relator o ministro Gilmar Mendes, o Tribunal decidiu a questão da incidência da Ficha Limpa. Com o voto do ministro Luiz Fux, que passara a integrar a Corte naquele mês, o Supremo Tribunal Federal fixou que a LC 135/2010 era inaplicável às eleições de 2010. Prevaleceu[8] o princípio da anterioridade eleitoral, disposto no art. 16 da Constituição. Ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Ayres Britto e Joaquim Barbosa.
4) ADCs 29, 30 e ADI 4.578. Limites. Questão aberta
No julgamento das ADCs 29, 30 e ADI 4.578, o Supremo Tribunal Federal não discutiu a inconstitucionalidade formal da Ficha Limpa. Não havia “controvérsia judicial relevante”[9], isto é, decisões judiciais negando a aplicação da lei por entendê-la incompatível com o devido processo legislativo. Nenhum ministro arguiu violação ou invocou como parâmetro de controle o art. 65 da Constituição, que dispõe sobre o princípio da bicameralidade. E a questão de ordem do ministro Peluso sequer foi lembrada. A Corte se limitou a declarar a constitucionalidade material das novas causas de inelegibilidade. E só:
Há três questões a responder neste julgamento, quais sejam: (1) se as inelegibilidades introduzidas pela Lei Complementar nº 135/10 poderão alcançar atos ou fatos ocorridos antes da edição do mencionado diploma legal e (2) se é constitucional a hipótese de inelegibilidade prevista no art. 1º, I, “m”, da Lei Complementar nº 64/90, inserido pela Lei Complementar nº 135/10. Sucede que o exame dessas questões demanda, previamente, (3) a própria fiscalização abstrata de constitucionalidade de todas as hipóteses de inelegibilidade criadas pela Lei Complementar nº 135/10, que podem ser divididas, basicamente, em cinco grupos, a saber:
(i) condenações judiciais (eleitorais, criminais ou por improbidade administrativa) proferidas por órgão colegiado;
(ii) rejeição de contas relativas ao exercício de cargo ou função pública (necessariamente colegiadas, porquanto prolatadas pelo Legislativo ou por Tribunal de Contas, conforme o caso);
(iii) perda de cargo (eletivo ou de provimento efetivo), incluindo-se as aposentadorias compulsórias de magistrados e membros do Ministério Público e, para os militares, a indignidade ou incompatibilidade para o oficialato;
(iv) renúncia a cargo público eletivo diante da iminência da instauração de
processo capaz de ocasionar a perda do cargo; e
(v) exclusão do exercício de profissão regulamentada, por decisão do órgão profissional respectivo, por violação de dever ético-profissional.
(STF, ADCs 29, 30 e ADI 4.578, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 29.6.2012. Acórdão único. Voto do relator. Grifos no original)
13. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente. Ações declaratórias de constitucionalidade cujos pedidos se julgam procedentes, mediante a declaração de constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade instituídas pelas alíneas “c”, “d”, “f”, “g”, “h”, “j”, “m”, “n”, “o”, “p” e “q” do art. 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 64/90, introduzidas pela Lei Complementar nº 135/10, vencido o Relator em parte mínima, naquilo em que, em interpretação conforme a Constituição, admitia a subtração, do prazo de 8 (oito) anos de inelegibilidade posteriores ao cumprimento da pena, do prazo de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o seu trânsito em julgado.
(STF, ADCs 29, 30 e ADI 4.578, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 29.6.2012. Acórdão único. Item 13 da ementa do acórdão)
E por que só a constitucionalidade material? Porque o princípio da causa de pedir aberta não pode ser levado às últimas consequências. O STF pode muito, mas não pode tudo. Há limites. A Ficha Limpa é um pequeno subsistema na ordem jurídica. Para declarar a sua constitucionalidade formal, era preciso haver um mínimo de fundamentação nas iniciais das ADCs 29, 30 e ADI 4.578. Era preciso também existir controvérsia judicial relevante. Ou que algum ministro suscitasse uma questão de ordem, como fez o ministro Cezar Peluso. O Supremo Tribunal Federal não pode impor efeito vinculante a algo que não foi decidido. Nesse sentido, lição do ministro Sepúlveda Pertence:
Obviamente, sempre afirmei a chamada causa petendi aberta no processo objetivo de inconstitucionalidade, mas o caso de uma lei que é um pequeno subsistema na ordem jurídica mostra que esse princípio não pode ser levado às suas últimas consequências, sob pena de – precisamente porque adotamos a ação direta de constitucionalidade quanto à ação declaratória de constitucionalidade como ações dúplices – comprometer-se o Tribunal a um exame, que é impossível, em determinadas leis, e mais, impor, com efeito vinculante, um exame que, na realidade, não foi feito, ou não pode ser feito, em muitas circunstâncias.
A meu ver, a restrição está na exigência do mínimo de fundamentação, sob pena de instaurar-se um grande risco, uma grande objeção ao controle abstrato de constitucionalidade, que é a ditadura da Corte constitucional, um verdadeiro exame de ofício da inconstitucionalidade material de uma lei, quando só se discutiu em todo o processo a higidez do processo legislativo.
(ADI 2.182, Red. p/acórdão Min. Cármen Lúcia, DJe 10.9.2010. Voto do ministro Sepúlveda Pertence na questão de ordem. Grifo no original)
Como se não bastassem tais limites, no julgamento do RE 785.068 o ministro Gilmar Mendes contestou o alcance das ADCs 29 e 30. Para Mendes, não havia nas ações os requisitos básicos em matéria de controvérsia judicial. “O que havia era uma controvérsia de rua. Não tínhamos controvérsia efetiva em relação a todos os dispositivos da lei”, afirmou Gilmar Mendes:
No que diz respeito à própria decisão em ADC, é evidente que, diante da propositura da ação, com a envergadura com que se fez, nós não tínhamos sequer os requisitos básicos em matéria de controvérsia. O que havia – vamos chamar assim – era uma controvérsia de rua. Nós não tínhamos controvérsia jurídica mesmo no sentido amplo como nós sabemos em relação a toda a lei. Porque não tínhamos controvérsia efetiva em relação a todos os dispositivos. Juízes negando ou afirmando a possibilidade de aplicação de todos os dispositivos. Que são muito amplos, como nós sabemos. E o Tribunal – fora um ou outro caso, e talvez esta seja a exceção mais acachapante, mais evidente – tem sido muito severo. Me lembro de um precedente do ministro Celso de Mello, que chegou a cobrar inclusive um certo equilíbrio entre as posições contrárias e as posições favoráveis no que dizia respeito à chamada controvérsia judicial, tendo em vista a exigibilidade da ADC. Aqui nem de longe tivemos esse debate. Até porque não houve tempo. E por isso temos nos deparado com situações as mais diversas.
(Manifestação do ministro Gilmar Mendes no julgamento do RE 785.068, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, sessão de 12.11.2015. O processo foi substituído pelo RE 929.670. O vídeo da manifestação pode ser assistido no canal do Supremo Tribunal Federal no You Tube. Disponível em <https://youtu.be/Km-ubG3eZ9o?t=59m37s>)
Essa contestação também se deu no Tribunal Superior Eleitoral. Em debate no REspe 75-86, o ministro Gilmar Mendes reiterou que as ações declaratórias não atendiam aos requisitos de admissibilidade. Disse que não havia controvérsia judicial nos casos concretos. E que o STF havia sido pressionado. “Como o Congresso, nós também fomos pressionados e atendemos a recados de rua. Foi isso que aconteceu no Supremo”, declarou Gilmar Mendes:
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX: Quero fazer apenas uma observação. Penso que, após o Supremo chancelar a constitucionalidade da Lei da Ficha da Limpa, não podemos mais discutir se isso é certo ou errado.
Foi opção do legislador estabelecer esse tipo com esse prazo de inelegibilidade. Se esse tipo e esse prazo foram desproporcionais, afere-se inconstitucionalidade não só por descumprimento de regras constitucionais, como também pelo descumprimento de princípios constitucionais, dentre os quais se inclui a razoabilidade.
Isso não foi acolhido. Se o Supremo Tribunal Federal tivesse entendido que a Lei da Ficha Limpa era irrazoável, ele teria dito, e não disse. Em segundo lugar, o Tribunal Superior Eleitoral é submetido à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que há de ser íntegra, coerente e estável. E há de haver obediência hierárquica. Os tribunais locais não vão desrespeitar a jurisprudência do STJ e não vamos desrespeitar a jurisprudência do Supremo. Claro que podemos, na análise do caso concreto, interpretarmos – somos intérpretes – a lei na aplicação ao caso concreto, porque aqui não se trata de processo objetivo. A nossa técnica é de subsunção, de aplicar lei existente ao caso concreto, e, às vezes, não há adequação típica ao caso concreto. O Ministro Gilmar Mendes, por exemplo, citou – e até votamos nesse sentido – que o parlamentar não havia renunciado para fugir de nada, tanto que depois ele foi absolvido, mas ele renunciou por desinteresse da carreira política.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (presidente): Não por desinteresse da carreira política, foi porque ele seria submetido a processo político-eleitoral, em uma situação vexatória.
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX: Mas o parlamentar não abusou do direito de renunciar, naquele caso. Ele renunciou. Podemos analisar casos em que se demonstre que a aplicação da regra ao caso concreto vai gerar decisão inconstitucional. Isso é outra coisa.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (presidente): É esse o caso presente.
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX: Bom, é o caso aí. Agora discutir que isso é um absurdo… O absurdo está chancelado pelo Supremo. O direito é o que os tribunais dizem que é. [fala retirada no acórdão]
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (presidente): Se o Supremo Tribunal Federal chancelar absurdos, o Supremo não faz do quadrado redondo.
Data venia, isso não é conceito que se possa sustentar, nem o “Código Fux” sustenta isso, e não podemos chancelar, e eu mesmo vou defender a insurreição contra esse tipo de jurisprudência.
Já tivemos um caso excepcional, que foi ter aceitado ação declaratória mambembe, porque não atendia os requisitos e pressupostos de admissibilidade, não houve a controvérsia nos casos concretos. De fato não teve, não atendia os requisitos.
Assim como o Congresso foi pressionado, nós também fomos pressionados e atendemos a recados de rua. Foi isso que aconteceu no Supremo, naquele caso. Depois, tivemos situações desse tipo.
Também tivemos tempero nessa jurisprudência, e a única hombridade que tivemos foi não aplicar a questão da lei naquele ano, e, ainda assim, queriam votar uma lei que era casuística e tudo mais.
Estamos vendo que se aplica pena restritiva de direitos, o sujeito cumpre a pena, mas estende-se o prazo e se diz que tem que cumprir, como se o Supremo tivesse discutido isso no detalhe.
(TSE, REspe 75-86, Red. p/acórdão Min. Rosa Weber, PSESS 19.12.2016. Debate disponível em <https://youtu.be/zA6dG3s8kH4?t=44m0s>. Sobre o debate, conferir TRINDADE, André Karam. STRECK, Lenio Luiz. A insurreição do ministro Gilmar Mendes contra o realismo jurídico. Consultor Jurídico, 17 dez. 2016. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2016-dez-17/diario-classe-insurreicao-ministro-gilmar-mendes-realismo-juridico>)
Por último, ao contrário do que muitos imaginam, o Supremo Tribunal Federal não declarou a constitucionalidade de toda a Lei da Ficha Limpa. No julgamento das ADCs 29, 30 e ADI 4.578, o Tribunal não analisou[10] todos os dispositivos da lei. A Corte não se pronunciou, por exemplo, sobre a constitucionalidade do novo inciso XVI[11] do art. 22. Ou do novo art. 26-C[12]. Ou mesmo do art. 3º[13]da LC 135/2010. Basta a impugnação de um desses dispositivos para se reconhecer o vício formal da lei.
O Supremo Tribunal Federal nunca julgou a inconstitucionalidade formal da Ficha Limpa. Não há como o Tribunal impor efeito vinculante a algo que não foi decidido. Desse modo, juízes e tribunais – inclusive o próprio STF – podem declarar a inconstitucionalidade formal da Lei da Ficha Limpa. A questão está aberta na jurisdição constitucional.
5) Iniciativa. Motivação. Esclarecimentos
Antes de continuar, quatro esclarecimentos se fazem necessários.
O primeiro esclarecimento é que o projeto de lei complementar que resultou a Lei da Ficha Limpa nunca foi de iniciativa popular. O projeto que se transformou na LC 135/2010 é de iniciativa do presidente da República.
O projeto aprovado na Câmara dos Deputados, com alterações, foi o PLP 168/1993, de iniciativa do presidente da República. Autuado no Senado Federal como PLC 58/2010, o projeto foi aprovado na Casa revisora com uma emenda que alterou o tempo verbal de cinco alíneas.
O segundo esclarecimento é que o PLP 518/2009, cujo anteprojeto era do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), foi declarado prejudicado. Em sessão de 4 de maio de 2010, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou a subemenda substitutiva global do deputado José Eduardo Cardoso (relator na CCJ). Como consequência, restaram prejudicadas todas as proposições apensadas ao PLP 168/1993, dentre elas o PLP 518/2009:
05/10/2009
Mesa Diretora da Câmara dos Deputados ( MESA )
Apense-se à(ao) PLP-168/1993.
Proposição Sujeita à Apreciação do Plenário
Regime de Tramitação: Prioridade
04/05/2010
Mesa Diretora da Câmara dos Deputados ( MESA )
Aprovada a Subemenda Substitutiva Global oferecida pelo Relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania ao PLP 168/1993.
Prejudicados: o Projeto inicial, o Substitutivo da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, os PLPs nºs 22/99, 53/03, 35/03, 203/04, 376/08, 446/09, 487/09, 499/09, 502/09, 518/09, 519/09 e 544/09, apensados, e as Emendas de Plenário apresentadas.
(Câmara dos Deputados. Tramitação do PLP 518/2009. Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=452953>)
O terceiro esclarecimento é que, ao contrário do que muitos pensam, o PLP 518/2009 também nunca foi um projeto de iniciativa popular. Houve apropriação de autoria do projeto. Embora concebido pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, o PLP 518/2009 foi subscrito por 33 deputados[14], que encamparam a proposta do MCCE e a protocolaram na Casa iniciadora. Esses 33 três deputados são formalmente os autores do projeto.
Além disso, na época o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral alardeou[15] que o anteprojeto havia coletado 1.604.815 assinaturas. Porém, como o PLP 518/2009 foi subscrito por deputados, não houve na Casa iniciadora a análise de nenhuma dessas assinaturas. Essa ausência de conferência das assinaturas tornou impossível saber se, juridicamente, o anteprojeto do MCCE atendeu ou não aos requisitos do art. 61, § 2º, da Constituição:
Art. 61…
§ 2º – A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
Sobre esses requisitos do art. 61, § 2º, há uma decisão paradigmática do ministro Luiz Fux. Em dezembro de 2016, ao deferir liminar no MS 34.530, que discutia vícios no PL 4.850/2016 (“10 Medidas de Combate à Corrução”), o ministro Luiz Fux reconheceu que, desde a promulgação da Constituição de 1988, nunca houve um projeto autuado formalmente como de iniciativa popular. Para Fux, esse fato atesta “não apenas o completo desprestígio com que este instrumento democrático é tratado, mas também a eliminação de qualquer efetividade das normas constitucionais que regem o tema”:
(…) o projeto subscrito pela parcela do eleitorado definida no art. 61, § 2º, da Constituição deve ser recebido pela Câmara dos Deputados como proposição de autoria popular, vedando-se a prática comum de apropriação da autoria do projeto por um ou mais deputados. A assunção da titularidade do projeto por parlamentar, legitimado independente para dar início ao processo legislativo, amesquinha a magnitude democrática e constitucional da iniciativa popular, subjugando um exercício por excelência da soberania pelos seus titulares aos meandros legislativos nem sempre permeáveis às vozes das ruas. Nesse ponto, é relevante destacar que desde 1988 não houve nenhum projeto sequer autuado formalmente como de iniciativa popular na Câmara dos Deputados, atestando não apenas o completo desprestígio com que este instrumento democrático é tratado, mas também a eliminação de qualquer efetividade das normas constitucionais que regem o tema.
(STF, MS 34.530, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 19.12.2016)
Por último, como quarto esclarecimento, há de se ressaltar que o PLP 518/2009 foi autuado na Câmara dos Deputados sem conter qualquer fundamentação que justificasse as novas causas e prazos de inelegibilidade.
É grave um projeto de lei destituído de motivação – sobretudo quando cria restrições a direitos fundamentais. Como afirma Ana Paula de Barcellos, que sustenta a existência do direito constitucional ao devido procedimento na elaboração normativa, “a ausência da apresentação de justificativa com a proposição normativa caracterizará uma inconstitucionalidade formal cuja consequência, assim como acontece com outras inconstitucionalidades formais, será a invalidade da norma afinal editada”[16].
6) Regimentos internos. Inaplicabilidade
Como premissa, não se invocará aqui nenhuma norma do regimento interno do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. O artigo versa sobre a interpretação dos arts. 65 e 66 da Constituição. E por uma razão fundamental. Normas regimentais não podem ditar parâmetros de interpretação da Constituição (STF, MS 24.041, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 11.4.2003).
7) Ficha Limpa. Emenda do Senado. Tempo verbal
O Senado Federal emendou o projeto de lei complementar da Ficha Limpa. Sendo a Casa revisora, o Senado alterou o tempo verbal de cinco alíneas:
1) alínea “h”
– a Câmara dos Deputados aprovou “os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, condenadosem decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes” (grifei)
– o Senado alterou para “os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenadosem decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes” (grifei)
2) alínea “j”
– a Câmara aprovou “os que tenham sido condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição” (grifei)
– O Senado alterou para “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição” (grifei)
3) alínea “m”
– a Câmara aprovou “os que tenham sido excluídos do exercício de profissão, por decisão sancionatória de órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário” (grifei)
– o Senado alterou para “os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético- profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário” (grifei)
4) alínea “o”
– a Câmara aprovou “os que tenham sido demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário” (grifei)
– o Senado alterou para “os que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário” (grifei)
5) alínea “q”
– a Câmara aprovou “os magistrados e os membros do Ministério Público que tenham sido aposentadoscompulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos” (grifei)
– o Senado alterou para “os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentadoscompulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos” (grifei)
Na sessão de 19 de maio de 2010, o Senado Federal votou a emenda. Durante o processo de votação, o senador Demóstenes Torres (relator do projeto na CCJ) pediu a palavra. Disse que a emenda era do senador Francisco Dornelles. Que o objetivo era a harmonização do texto. E que era desnecessário o retorno do projeto à Casa iniciadora. “Como a emenda é de redação, não há o menor risco de a matéria voltar para a Câmara dos Deputados”:
O SR. PRESIDENTE (Marconi Perillo. PSDB – GO) – Votação da Emenda nº 1 da CCJ, emenda de redação.
Nós vamos abrir o painel e vamos continuar a discussão.
Votação da emenda de redação.
Emenda de redação, para aprimorar o projeto.
(Procede-se à votação.)
[…]
O SR. DEMÓSTENES TORRES (DEM – GO) – Pela ordem, Sr. Presidente.
O SR. PRESIDENTE (Marconi Perillo. PSDB – GO) – Com a palavra, pela ordem, o Presidente da CCJ, Senador Demóstenes.
O SR. DEMÓSTENES TORRES (DEM – GO. Pela ordem. Sem revisão do orador.) – Só para fazer um esclarecimento, Sr. Presidente.
Essa emenda é uma emenda de redação. O Senador Francisco Dornelles observou, com muita propriedade, que o texto tinha, em alguns casos, a expressão “os que forem condenados” e, noutras, “os que tenham sido condenados”. Então, ele fez uma emenda para harmonizar o texto, usando a mesma expressão em todos os artigos, em todos os incisos. Como a emenda é de redação, não há o menor risco de a matéria voltar para a Câmara dos Deputados.
Então, a intervenção é só para tranquilizar todos os Srs. Parlamentares e aqueles que nos ouvem: a emenda de redação do Senador Dornelles tem apenas o objetivo de dar harmonia ao texto, para não ficar uma expressão num inciso e, noutro, outra expressão.
O SR. PRESIDENTE (Marconi Perillo. PSDB – GO) – V. Exª colabora para a elucidação desse assunto, para que não pairem dúvidas e questionamentos sobre o assunto.
[…]
O SR. PRESIDENTE (Marconi Perillo. PSDB – GO) – Eu vou encerrar a votação e, logo após, continuo a discussão.
Encerrada a discussão, encerro a votação.
Solicito à Mesa que proclame o resultado.
(Procede-se à apuração.)
O SR. PRESIDENTE (Marconi Perillo. PSDB – GO) – Votaram SIM 70 Srs. Senadores.
Não houve voto NÃO e não houve abstenção.
Total: 70 votos.
A emenda de redação foi aprovada.
(Diário do Senado Federal, edição 74, de 20.5.2010, p. 22052/22059)
O Plenário aprovou a emenda por 70 votos. Em seguida, no dia 25 de maio de 2010, o Senado enviou[17]o projeto ao presidente da República[18], que o sancionou sem vetos. Na edição de 7 de junho de 2010, o Diário Oficial da União publicou a Lei da Ficha Limpa, a Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010.
8) Emenda. Volta à Casa iniciadora. Comando imperativo
O art. 65, parágrafo único, da Constituição dispõe que, uma vez emendado na Casa revisora, o projeto voltará à Casa iniciadora:
Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar.
Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.
O Senado Federal emendou o projeto da Ficha Limpa. Com os votos de 70 senadores, a Casa revisora aprovou a emenda que alterou o tempo verbal de cinco alíneas. Fica então a questão: se o projeto foi emendado, por que não voltou à Câmara dos Deputados (Casa iniciadora)? Porque os senadores consideraram que a emenda do senador Francisco Dornelles era apenas uma emenda de redação. Tinha “apenas o objetivo de dar harmonia ao texto”, como esclareceu em Plenário o senador Demóstenes Torres.
Porém, o art. 65, parágrafo único, da Constituição não prevê exceções. Não diz que “Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora, a não ser que seja uma emenda de redação”. Não há essa exceção. E não há porque o Constituinte de 1988 não fez nenhuma distinção entre as emendas – como é próprio do bicameralismo brasileiro.
Seja a emenda supressiva, aglutinativa, substitutiva, modificativa, aditiva, global ou de redação, pouco importa o seu nome, a Constituição é imperativa. Uma vez emendado na Casa revisora, seja qual for a emenda, o projeto deve voltar à Casa iniciadora. É o que se defende neste artigo.
A ausência de exceções no art. 65 da Constituição nos leva a uma segunda questão: quando da formação da Ficha Limpa, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal amparava o entendimento do Senado Federal?
A resposta é não, três vezes não!
9) ADC 3. Âmbito temporal. Inconstitucionalidade
No julgamento da ADC 3, ao interpretar o art. 65 da Constituição, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o projeto emendado só retorna à Casa iniciadora se a emenda tiver alterado o sentido da proposição. “Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada”, como indicou o ministro Nelson Jobim (relator):
O retorno do projeto emendado à Casa iniciadora não decorre do fato de ter sido simplesmente emendado.
Só retornará se, e somente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na proposição jurídica.
Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada.
Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações em qualquer um dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial.
Não basta a simples modificação do enunciado pela qual se expressa a proposição jurídica.
O comando jurídico – a proposição – tem que ter sofrido alteração.
O conceito de emenda de redação é: modifica-se o enunciado, sem alterar a proposição.
(STF, ADC 3, Rel. Min. Nelson Jobim, DJe 9.5.2003. Voto do relator)
Uma leitura desatenta pode levar à conclusão de que a ADC 3, julgada em 2 de dezembro de 1999, justificaria o entendimento do Senado Federal de não devolver o projeto da Ficha Limpa à Câmara dos Deputados.
Contudo, é preciso analisar com atenção o voto do ministro Nelson Jobim. Embora afirme que, para retornar à Casa iniciadora, a emenda deve modificar o sentido da proposição, o relator da ADC 3 elenca quatro hipóteses em que ocorre a alteração de sentido. Para o ministro Jobim, há mudança de sentido quando a emenda produz “alterações em qualquer um dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial”.
Ora, é o que ocorreu na tramitação do projeto da Ficha Limpa. A emenda do Senado Federal alterou o tempo verbal de cinco alíneas. E uma vez alterado o tempo verbal, alterou-se o âmbito temporal das alíneas. Desse modo, a Casa revisora modificou o sentido dos dispositivos, condição exigida no acórdão da ADC 3 para devolução do projeto à Casa iniciadora.
Como escreveu Dad Squarisi, há uma diferença significativa entre o texto da Câmara – que usou o verbo no tempo do pretério perfeito composto – e o texto da emenda do Senado – que recorreu ao verbo no tempo do futuro do subjuntivo. No texto da Casa iniciadora, os tempos compostos se referem a ação passada. “O falante se coloca no presente. E traz à tona fato ido e vivido”. No texto da Casa revisora, o tempo no futuro do subjuntivo diz tudo: porvir. “A partir do presente, olha-se para o que pode ocorrer na frente”:
Sem inocência
O texto da Câmara diz que são inelegíveis para qualquer cargo “os que tenham sido condenados”. O do Senado, “os que forem condenados”. Qual a diferença? Como diz o esquartejador, vamos por partes.
O verbo de “os que tenham sido condenados” está no pretérito perfeito composto. Os tempos compostos se referem sempre a ação passada. No caso, o falante se coloca no presente. E traz à tona fato ido e vivido. Veja: Ele espera que o Brasil tenha cumprido as metas. Você duvida que ele tenha feito o trabalho? Consta que ele tenha discutido com o superior hierárquico.
O 1º texto, “são inelegíveis os que tenham sido condenados”, o autor se põe no presente (são inelegíveis) e fala de fato que deveria ter ocorrido no passado (tenham sido condenados).
A emenda
Em “são inelegíveis os que forem condenados”, recorre-se ao futuro do subjuntivo. O nome diz tudo: é porvir. A partir do presente, olha-se para o que pode ocorrer na frente.
Resumo da ópera: o Senado, ao passar a borracha no passado, promoveu anistia ampla, geral e irrestrita. Traiu o eleitor. Mas salvou os sujões.
(SQUARISI, Dad. Me engana que eu gosto. Blog da Dad. 21 mai. 2010. Disponível em <http://blogs.correiobraziliense.com.br/dad/me_engana_que_eu_gosto>)
A mudança de sentido das cinco alíneas, a partir da alteração do âmbito temporal, não foi discutida na questão de ordem do RE 630.147. Aliás, até o presente momento, nenhum julgamento do Supremo Tribunal Federal – ou mesmo do Tribunal Superior Eleitoral[19] – submeteu a Lei da Ficha Limpa aos parâmetros de controle fixados no acórdão da ADC 3 – ou mesmo aos parâmetros das ADIs 2.182 MC e 2.182, como se verá adiante.
Por essas razões, havendo alteração no âmbito temporal (critério estabelecido na ADC 3), o projeto emendado deveria ter retornado à Casa iniciadora. Como não voltou, a Ficha Limpa é inconstitucional, por violação ao art. 65, parágrafo único, da Constituição.
Era da Câmara a palavra final. E de ninguém mais.
10) Emenda. Retroatividade. “Isso volta ao passado”
No julgamento do RE 630.147, acolhendo informações recebidas da CCJ do Senado Federal, os ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Joaquim e Ricardo Lewandowski disseram que alteração do tempo verbal se deu em cumprimento ao art. 11, I, “d”, da Lei Complementar 95/1998, que dispõe:
Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
I – para a obtenção de clareza:
d) buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente;
Com a devida vênia, mas o art. 11 da LC 95/1998 não foi o motivo da emenda do senador Francisco Dornelles. Como revelam as notas taquigráficas da reunião da CCJ que discutiu e votou o projeto da Ficha Limpa, o senador Francisco Dornelles estava preocupado com o passado. Ou seja, com a possibilidade da Ficha Limpa de alcançar atos anteriores a sua vigência.
“Existe retroatividade?”, indagou o senador Dornelles na reunião da CCJ. O questionamento era sobre as causas de inelegibilidade com a expressão “tenham sido”. O senador Demóstenes Torres (relator) respondeu que era complicada a existência de duas expressões no projeto. Que tais expressões – “tenham sido” e “os que forem” – poderiam gerar “interpretação dúbia”. E que uma emenda poderia harmonizar o texto. O senador Francisco Dornelles então replicou: “Isso volta ao passado. Eu acho que nesse caso nós teríamos que fazer essa correção, ‘os que forem’”. E apresentou a emenda, que foi aprovada na CCJ e depois no Plenário do Senado. Confiram-se as notas taquigráficas:
SENADOR FRANCISCO DORNELLES (PP-RJ): Senador, eu pediria que fosse dada a palavra. Eu gostaria que alguns pontos…
PRESIDENTE SENADOR JARBAS VASCONCELOS (PMDB-PE): A palavra está com Senador Francisco Dornelles.
SENADOR FRANCISCO DORNELLES (PP-RJ): Eu gostaria que o Senador Demóstenes explicasse alguns tópicos, até para ficar nos anais para interpretação futura do Poder Judiciário.
[…]
PRESIDENTE SENADOR JARBAS VASCONCELOS (PMDB-PE):
Senador Francisco Dornelles e depois o Senador Renan Calheiros.
SENADOR FRANCISCO DORNELLES (PP-RJ): Sr. Presidente, Senador Demóstenes Torres.
Senador Demóstenes, eu gostaria de dizer ao Presidente e a V. Exa. que o Partido Progressista vai votar favoravelmente ao seu relatório e ao projeto, mas eu gostaria de ouvir algumas explicações de V. Exa..
Eu vou o art. 1º… O art. 2º da lei que trata do art. 1º da Lei Complementar 64. Em algumas situações V. Exa. mencionou, com muita propriedade, que se usa o seguinte termo: os que forem condenados, os que forem declarados, os que tiverem suas contas… Que é, como V. Exa. explicou, que não tem sentido retroativo. Mas existem alguns casos que falam o contrário: os que tenham sido condenados, os que tenham sido excluídos da administração, os que tenham sido demitidos, os que tenham sido aposentados… Então nós veremos que em algumas situações joga para o futuro, os que tiverem. Como V. Exa. mostrou, que não tem sentido retroativo.
Agora, como V. Exa. vê essas situações que se referem aos que “tenham sido”? Existe retroatividade nesses casos? É a primeira questão.
A segunda que queria levantar a V. Exa. é que estabelece crimes contra a economia e estabelece que forem condenados por sentença transitada em julgado por órgão colegiado. V. Exa. entende que isso só se aplica a órgãos do Judiciário, ou seja, isso não pegaria decisões da CVM, por acaso, do Conselho de Recursos Financeiros do Banco Central, do CADE? Se essa condenação se aplica apenas no caso de órgãos judiciais.
E terceiro, eu perguntaria a V. Exa., como V. Exa. vê a constitucionalidade do § 1º do art. 26, e que nós estabelecemos regras para o Poder Judiciário. É proibido, é vedado ao Judiciário deixar de cumprir qualquer prazo previsto nessa lei. Se nós podemos estabelecer essas regras para o Poder Judiciário, para o Ministério Público?
Mas o que eu gostaria mesmo que V. Exa. explicasse é a situação dos que tiverem, dos que tenham sido, se existe algum caso de retroatividade dos casos em que ficou mencionado dos que “tenham sido”, dos que “foram”, voltando ao passado, se isso não é caso de retroatividade na lei.
Muito obrigado. Meu apoio, meu voto favoravelmente ao parecer de V. Exa..
[…]
SENADOR DEMÓSTENES TORRES (DEM-GO): …Srs. Senadores.
[…]
O Senador Dornelles também fala de uma incongruência de expressões: “os que forem” ou “os que tenham sido”. Na realidade, é a mesma coisa, só que impropriedade. É o que eu digo, se nós tivéssemos a oportunidade de poder trabalhar essa lei, nós iríamos colocar uma única expressão, porque pode realmente gerar interpretação dúbia, não é?
SENADOR DEMÓSTENES TORRES (DEM-GO): Pode ser feita emenda de redação, para colocar só os que forem. Pode apresentar emenda de redação, que eu acolho, que isso aí é bem… Para a harmonização desse texto. E nós vamos colocar os que forem. Mas não há defeito nenhum. Isso, em direito, é assim mesmo. Várias leis falam “os que forem” e várias leis falam “os que tenham sido”. Agora, na mesma lei, realmente é complicado. É uma observação… Como não implica em volta para…
SENADOR FRANCISCO DORNELLES (PP-RJ): Sr. Presidente, os que tenham sido excluídos do exercício da profissão, os que tenham sido demitidos do serviço, dá impressão de… Os magistrados e membros que tenham sido aposentados, isso volta ao passado. Eu acho que nesse caso nós teríamos que fazer essa correção, “os que forem”.
SENADOR DEMÓSTENES TORRES (DEM-GO): Pode corrigir, que eu aceito a emenda de redação, dizendo que é para a harmonização do texto, para ficar em consonância com as expressões tais. Pode pedir sua assessoria, que nós fazemos…
PRESIDENTE SENADOR JARBAS VASCONCELOS (PMDB-PE): Está bem assim, senador?
SENADOR FRANCISCO DORNELLES (PP-RJ): Muito obrigado.
[…]
SENADOR DEMÓSTENES TORRES (DEM-GO): Nós temos aqui as emendas por escrito, está certo? Então, para evitar que lá no Plenário isso venha à tona, alguém… Então vamos cumprir o regimento. O que é o regimento? Não tem um pedido de retirada. Meu parecer é pela rejeição, é a mesma coisa, só que não vai lá para o Plenário as emendas, elas estão rejeitadas, a não ser que ele apresente de novo.
PRESIDENTE SENADOR JARBAS VASCONCELOS (PMDB-PE): É uma questão apenas formal.
SENADOR DEMÓSTENES TORRES (DEM-GO): Não tenho aqui o requerimento de retirada das emendas. Então, o parecer contrário às Emendas de nº 1 a 9, do Senador Romero Jucá.
SENADOR RENATO CASAGRANDE (PSB-ES): O senhor fez alguma emenda de redação?
SENADOR DEMÓSTENES TORRES (DEM-GO): Não, agora eu vou acatar, conforme combinado, a emenda de redação do Senador Francisco Dornelles, que está vazado nos seguintes termos: “altera o art. 2º do PLC 58, de 2010, para dar às alíneas ‘h’, ‘j’, ‘m’, ‘o’ e ‘q’, do art. 1º, da Lei Complementar nº 64 a seguinte redação:
‘h’- “os detentores de cargo na administração direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado”, tal.
‘j’- “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado.”
‘m’- “os que forem excluídos do exercício”, tal.
‘o’- “os que forem demitidos do serviço público.”
‘q’- “os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados, etc.”
Então, para quê? Para guardar consonância com as expressões das outras alíneas, porque senão alguém aí pode dar interpretação diversa, porque está escrito de maneira diferente. Então, a emenda é típica de redação, não volta para a Câmara. Meu parecer é favorável.
PRESIDENTE SENADOR JARBAS VASCONCELOS (PMDB-PE): Muito bem, encerrada a discussão. Os Srs. e Sras. Senadores que aprovam a matéria queiram permanecer como se encontram. Aprovado por unanimidade.
(Senado Federal, reunião da CCJ de 19.9.2010, notas taquigráficas. Disponível em <http://www.osconstitucionalistas.com.br/20100519ro021> Grifos no original)
Em entrevista à Folha de São Paulo, logo depois da emenda ser aprovada no Plenário da Casa revisora, o senador Francisco Dornelles confirmou que a emenda tinha a finalidade de evitar a retroatividade da Ficha Limpa. Questionado por que não havia unificado os verbos no passado, o senador Dornelles respondeu: “Isso não tem nenhuma base jurídica. Unificar para o retroativo? A lei não pode ser retroativa”:
FOLHA – Por que o sr. não fez a unificação com os verbos no passado ao invés de no futuro, evitando a polêmica sobre a abrangência da lei?
FRANCISCO DORNELLES – Isso não tem nenhuma base jurídica. Unificar para o retroativo? A lei não pode ser retroativa. Se fizesse isso, estaria prejudicando pessoas. Mas a minha opinião independe da emenda. O problema do projeto é que precisava de uma unificação.
(MENEZES, Noeli. “Não sou malufista”, diz autor de mudança. Folha de São Paulo, 21 set. 2010. Íntegra da entrevista disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2105201004.htm>)
Impedir a retroatividade, a “volta ao passado”. Esse foi o propósito da emenda do senador Dornelles. E não cumprir o art. 11 da LC 95/1998. Daí a alteração do tempo verbal das alíneas para o futuro subjuntivo. “A partir do presente, olha-se para o que pode ocorrer na frente”, registrou Dad Squarisi.
Seja pela alteração do âmbito temporal (parâmetro de controle reclamado pela ADC 3), seja pelo objetivo da emenda de evitar a retroatividade da lei (como evidenciam as notas taquigráficas da CCJ), a última palavra era da Casa iniciadora, nos termos do art. 65, parágrafo único, da Constituição.
11) Bicameralismo. Vontade da Casa iniciadora. Nulidade
“É inútil discutir a emenda do Senado. O STF já decidiu que a Ficha Limpa apanha atos do passado”. É, essa é uma crítica que pode ser feita ao presente artigo. Porém, é uma crítica que não merece acolhimento.
Nenhuma lei dispõe de usucapião de constitucionalidade. E não dispõe porque nenhuma lei pode se sobrepor à Constituição. A observância irrestrita às normas da Constituição – Lei Fundamental – é o preço módico que se paga por viver em um Estado Democrático de Direito.
“A inobservância dos esquemas rituais rigidamente impostos pela Carta Magna da República gera a invalidade formal dos atos legislativos editados pelo Poder Legislativo e permite que sobre essa eminente atividade jurídica do Parlamento possa instaurar-se o controle jurisdicional”, advertiu o ministro Celso de Mello ao interpretar o art. 65 da Constituição:
O processo legislativo constitui estrutura formal em cujo âmbito o Congresso Nacional exerce as funções institucionais que lhe foram cometidas pelo ordenamento constitucional.
O processo da formação das leis, em nosso sistema de direito constitucional positivo, submete-se ao princípio da bicameralidade (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 2, pág. 3, 1992, Saraiva). Por isso mesmo, a Lei Fundamental, ao definir a disciplina ritual do processo legislativo, dispõe que, verbis:
“Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar.
Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.”
Essa norma rege, pois, no âmbito do procedimento de formação das espécies legislativas, as relações intercamerais que se estabelecem entre a Casa iniciadora e a Casa revisora.
A definição constitucional do iter formativo das leis evidencia, nesse processo de positivação da vontade estatal, a existência de fases insuprimíveis, que se sucedem dentro de uma rígida ordem de vinculação causal. Nesse contexto, torna-se juridicamente impossível a atuação per saltum do legislador, que também não poderá, sob pena de viciar o processo legislativo, suprimir momentos procedimentais de observância compulsória.
Daí o magistério de CAIO TÁCITO, verbis:
[…]
O Congresso Nacional, na elaboração dos atos legislativos, está necessariamente vinculado, pois, ao modelo jurídico que, fundado no texto constitucional, condiciona a atividade legiferante desse órgão da soberania do Estado. Em tema de processo de formação das leis, pois, não há espaço para o arbítrio institucional do Poder Legislativo.
A inobservância dos esquemas rituais rigidamente impostos pela Carta Magna da República gera a invalidade formal dos atos legislativos editados pelo Poder Legislativo e permite que sobre essa eminente atividade jurídica do Parlamento possa instaurar-se o controle jurisdicional:
[…]
O comportamento institucional imputado ao Senado da República reveste-se de inquestionável gravidade, pois, ao suprimir uma indisponível fase procedimental de observância obrigatória – retorno à Casa iniciadora de proposição legislativa por ele emendada –, incidiu por inobservância da determinação imposta pela Constituição (art. 65, parágrafo único), em vício formal inquinador de nulidade do próprio processo de formação da lei ora impugnada.
(STF, ADI 574, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 11.3.1994. Voto do ministro Celso de Mello. Grifos no original)
Não há espaço para arbítrios. É grave a decisão do Senado Federal. Quando não devolveu o projeto emendado, a Casa revisora não só suprimiu fase procedimental de observância obrigatória, como usurpou a palavra final da Câmara dos Deputados. A desobediência ao bicameralismo gera consequências inafastáveis. O Senado violou o art. 65, parágrafo único, da Constituição. Esse vício formal inquina de nulidade o processo de feitura da Ficha Limpa.
Além disso, o STF não pode suprir ou substituir a vontade da Casa iniciadora. Sendo obrigatório o retorno, a aprovação do projeto só poderia ocorrer com a concordância da maioria absoluta dos deputados. Ou seja, voltando à Casa iniciadora, o projeto, para ser aprovado em caráter definitivo, teria que obter no mínimo 257 votos, como dispõe o art. 69 da Constituição.
Na volta do projeto, a Casa iniciadora poderia aprovar a emenda, total ou parcialmente. Ou rejeitá-la por completo, mantendo o texto aprovado do PLP 168/1993. Os deputados poderiam declarar ainda, em interpretação autêntica, que a Lei da Ficha Limpa não poderia atingir atos anteriores a sua vigência. Poderiam também inovar, recorrendo a fundamentos não discutidos nas ADCs 29, 30 e 4.578, ou mesmo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Como, por exemplo, que a retroatividade é um problema de liberdade.
A Câmara dos Deputados é também intérprete da Constituição. E sua vontade na formação das leis não pode ser usurpada, suprida ou substituída.
12) Retroatividade. Um problema de liberdade
Nas ADCs 29, 30 e ADI 4.578, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, e nos termos do voto do ministro Luiz Fux (relator), decidiu que a Ficha Limpa não viola o princípio da irretroatividade das leis, podendo atingir atos praticados antes de sua vigência:
Primeiramente, é bem de ver que a aplicação da Lei Complementar nº 135/10 com a consideração de fatos anteriores não viola o princípio constitucional da irretroatividade das leis. De modo a permitir a compreensão do que ora se afirma, confira-se a lição de J. J. GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5. edição. Coimbra: Almedina, 2001, p. 261-262), em textual:
“[…] Retroactividade consiste basicamente numa ficção: (1) decretar a validade e vigência de uma norma a partir de um marco temporal (data) anterior à data da sua entrada em vigor; (2) ligar os efeitos jurídicos de uma norma a situações de facto existentes antes de sua entrada em vigor. […]” (Os grifos são do original.)
O mestre de Coimbra, sob a influência do direito alemão, faz a distinção entre:
(i) a retroatividade autêntica: a norma possui eficácia ex tunc, gerando efeito sobre situações pretéritas, ou, apesar de pretensamente possuir eficácia meramente ex nunc, atinge, na verdade, situações, direitos ou relações jurídicas estabelecidas no passado; e
(ii) a retroatividade inautêntica (ou retrospectividade): a norma jurídica atribui efeitos futuros a situações ou relações jurídicas já existentes, tendo-se, como exemplos clássicos, as modificações dos estatutos funcionais ou de regras de previdência dos servidores públicos (v. ADI 3105 e 3128, Rel. para o acórdão Min. CEZAR PELUSO).
Como se sabe, a retroatividade autêntica é vedada pela Constituição da República, como já muitas vezes reconhecido na jurisprudência deste Tribunal. O mesmo não se dá com a retrospectividade, que, apesar de semelhante, não se confunde com o conceito de retroatividade mínima defendido por MATOS PEIXOTO e referido no voto do eminente Ministro MOREIRA ALVES proferido no julgamento da ADI 493 (j. 25.06.1992): enquanto nesta são alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente – consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato –, naquela a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente. Repita-se: foi o que se deu com a promulgação da Emenda Constitucional nº 41/03, que atribuiu regimes previdenciários diferentes aos servidores conforme as respectivas datas de ingresso no serviço público, mesmo que anteriores ao início de sua vigência, e recebeu a chancela desta Corte.
A aplicabilidade da Lei Complementar n.º 135/10 a processo eleitoral posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra, uma hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao estabelecer limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de concorrer a cargos eletivos) com base em fatos já ocorridos. A situação jurídica do indivíduo – condenação por colegiado ou perda de cargo público, por exemplo – estabeleceu-se em momento anterior, mas seus efeitos perdurarão no tempo. Esta, portanto, a primeira consideração importante: ainda que se considere haver atribuição de efeitos, por lei, a fatos pretéritos, cuida-se de hipótese de retrospectividade, já admitida na jurisprudência desta Corte.
Demais disso, é sabido que o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal preserva o direito adquirido da incidência da lei nova. Mas não parece correto nem razoável afirmar que um indivíduo tenha o direito adquirido de candidatar-se, na medida em que, na lição de GABBA (Teoria dela Retroattività delle Leggi. 3. edição. Torino: Unione Tipografico-Editore, 1981, v. 1, p. 1), é adquirido aquele direito
“[…] que é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo em virtude da lei vigente ao tempo que se efetuou, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação da lei nova, e que, sob o império da lei vigente ao tempo em que se deu o fato, passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu.” (Tradução livre do italiano)
Em outras palavras, a elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo eleitoral, consubstanciada no não preenchimento de requisitos “negativos” (as inelegibilidades). Vale dizer, o indivíduo que tenciona concorrer a cargo eletivo deve aderir ao estatuto jurídico eleitoral. Portanto, a sua adequação a esse estatuto não ingressa no respectivo patrimônio jurídico, antes se traduzindo numa relação ex lege dinâmica.
(STF, ADCs 29, 30 e ADI 4.578, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 29.6.2012. Voto do relator. Grifos no original)
Com todo respeito, mas o ponto de partida, para análise da retroatividade, deve ser modificado. O problema da retroatividade não é mais um problema de relacionamento de normas no tempo (Direito Intertemporal). Como anota Humberto Ávila, a retroatividade é “um problema de não-restrição arbitrária de direitos fundamentais e de atuação estatal leal e justificada.”[20]
No seu livro Teoria da segurança jurídica, Humberto Ávila sustenta que uma lei retroativa viola os direitos fundamentais da liberdade, da dignidade e da igualdade. “Por atuar sobre uma escolha já feita e incapaz de ser mudada, a lei retroativa apresenta uma escolha forçada ao homem, impedindo-o de exercer aquilo que o distingue com ser humano: a sua autonomia”:
(…) é preciso não perder de vista o imbricamento da proibição de retroatividade com outros princípios. Uma lei retroativa, porque modifica os efeitos depois que a conduta foi praticada, viola o direito fundamental da liberdade, pois impede a livre escolha individual, já que atinge conduta já exercida e, portanto, imodificável; viola o direito à dignidade humana, pois trata o homem como objeto, em vez de tratá-lo como ser capaz de livremente plasmar o seu futuro; viola o direito fundamental igualdade, pois diferencia as pessoas unicamente em razão do momento em que a ação foi praticada, atribuindo efeitos iguais para quem sabia da regra e para quem a desconhecia; viola a própria exigência de generalidade inerente à regra da legalidade e ao princípio da igualdade, pois, em vez de atingir um número indeterminado e desconhecido de situações e de pessoas e abarcar uma classe de casos hipotéticos, atinge um número determinado e desconhecido de situações e pessoas, englobando, assim, casos escolhidos e concretos. Enfim, toda irretroatividade – e um grande número de retrospectividade – não é apenas uma violação à garantia de irretroatividade; é também uma violação aos direitos fundamentais de liberdade, de dignidade e de igualdade. Por atuar sobre uma escolha já feita e incapaz de ser mudada, a lei retroativa apresenta uma escolha forçada ao homem, impedindo-o de exercer aquilo que o distingue com ser humano: a sua autonomia.
(ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2016, 4ª ed., p. 461/462. Grifos no original)
Por alcançar atos que ocorreram antes da sua vigência, a Lei da Ficha Limpa modifica os efeitos do ato depois que ele (ato) foi praticado. Desse modo, a LC 135/2010 tem caráter retroativo porque impede a livre escolha individual, uma vez que atinge conduta já exercida e, portanto, imodificável.
A retroatividade da Ficha Limpa impede ao homem de exercer aquilo que o distingue como ser humano: a sua autonomia. Não há autonomia se, no momento da prática do ato, o homem não pode calcular as consequências desse ato. Só é livre quem pode medir as consequências de suas ações. O homem deve ter liberdade para fazer escolhas conscientes. Seja para seguir em frente e praticar o ato. Seja para reagir, desistir e não praticar o ato que pensara cometer.
Como argumenta Humberto Ávila, “quando uma norma N2 é editada em um momento, T2, e produz efeitos relativamente a uma período anterior à sua edição, T1, no qual vigia outra norma, N1, no momento da prática do ato, em T1, o destinatário não tinha como saber da existência, da vigência ou do conteúdoda norma N2, nem podia calcular as consequências a serem impostas caso o ato nela descrito fosse praticado.”[21]
O homem que é atingido por uma lei retroativa fica sem qualquer capacidade de reação. “Por isso”, destaca Humberto Ávila, “a retroatividade envolve um problema de liberdade: quem é atingido por um lei retroativa não pode fazer nada porque a sua ação já foi praticada. O homem age no presente, não no futuro”. A lei retroativa elimina a possibilidade de decisão individual a respeito de comportamentos alternativos, impondo uma consequência normativa sem permitir a livre escolha individual. Confira-se:
(…) pode-se afirmar que no caso da eficácia retroativa das leis há tanto um problema de cognoscibilidade quanto um problema de calculabilidade do Direito; o destinatário da norma modificadora, N2, não sabe da sua existência, nem consegue calcular o seu conteúdo e a sua eficácia. De modo singelo: em T2, o destinatário é surpreendido com uma norma cuja existência e vigência, em T1, totalmente ignorava, e com base nela não podia dispor, ficando, com a sua aplicação também para o seu caso, sem qualquer capacidade de reação. Por isso, a retroatividade envolve um problema de liberdade: quem é atingido por uma lei retroativa não pode fazer nada porque a sua ação já foi praticada. O homem age no presente, não no futuro. O seu poder de configuração da realidade, dentro dos limites do Direito, é reconfigurado depois que sua liberdade foi exercida. Não por outro motivo que Fuller, com sua linguagem afiada, mencionava o “brutal absurdo de mandar alguém hoje fazer alguma coisa ontem”. Esse absurdo decorre precisamente do fato de a norma retroativa não permitir o exercício da liberdade: como a ação já foi praticada, a atuação da norma retroativa é contrária à autonomia individual, pois elimina a possibilidade de decisão individual a respeito de comportamentos alternativos, visto que impõe uma consequência normativa sem permitir a livre escolha individual.
(ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2016, 4ª ed., p. 495/496. Grifos no original)
A retroatividade da Ficha Limpa envolve um problema de liberdade. Quem é atingido pela LC 135/2010, por ato cometido antes de sua vigência, não pode fazer nada porque sua ação não pode mais ser mudada. Não há possibilidade de reação. Não há possibilidade de comportamentos alternativos. A Ficha Limpa aniquila o direito fundamental à liberdade.
13) ADI 2182. Casa iniciadora. Prevalência. Última palavra
Nas ADIs 2.182 MC[22] e 2.182[23], o Supremo Tribunal Federal reconheceu a prevalência da Casa iniciadora como mecanismo de solução de conflitos entre as Casas do Parlamento. Com base em nova interpretação do art. 65, parágrafo único, da Constituição, o Tribunal decidiu que é da Casa iniciadora a última palavra no processo de formação das leis.
“Há sempre uma prevalência da Casa iniciadora”, afirmou o ministro Nelson Jobim. Em especial da Câmara dos Deputados, que detém a primazia. Sendo a Casa onde se iniciam os projetos de iniciativa popular, do presidente da República, do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores, da Procuradoria-Geral da República, etc, “a Câmara fica com o poder revisor final, com a palavra final”, concluiu Jobim:
O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM: (…) há duas modalidades de votação nos sistemas bicamerais, o sistema semibicameral brasileiro, que é o tipo de sistema bicameral da maioria, e o Sistema Bicameral alemão, que prevê exatamente essas discordâncias entre as duas Casas.
No sistema alemão, se “Bundstag”, que é a Câmara dos Deputados, vota determinada lei que também deva ser revista pelo “Bundshat”, que seria o nosso Senado, e o “Bundshat” diverge dos conteúdos da lei, é criada uma comissão mista de membros do “Bundstag” e do “Bundshat” para conciliar as duas posições das duas Casas. Essa comissão mista, chegando a um acordo, acaba procedendo à lei que vai à sanção do Presidente da República.
No sistema brasileiro não temos esse mecanismo de comissão mista intermediária; então, o procedimento que se tem e é tradicional desde o início do Senado, desde o início do bicameralismo brasileiro, ou seja, vem inclusive do Império essa situação, aprovado o texto do projeto de lei na Câmara, vai ao Senado. O Senado recebe esse projeto como mero projeto de lei, este projeto de lei da Câmara é publicado no Diário do Senado e submetido à emenda.
São oferecidas emendas ao projeto de lei aprovado na Câmara; o conjunto das emendas é atribuído a uma comissão na qual é nomeado um relator, o qual examina o projeto de lei oriundo da Câmara e as emendas oferecidas pelos senadores, e ele tem duas possibilidades, são duas alternativas que cabem ao relator ou mesmo à comissão – ou aprova as emendas oferecidas pelos senadores, ou, ainda, oferece o que se chama, na técnica do Regimento Interno do Senado, de subemendas do relator, e vai ao Plenário o projeto de lei da Câmara e as emendas aprovadas pelo relator. Essa é uma das técnicas.
A segunda, que é a mais utilizada no processo legislativo brasileiro é a seguinte: o projeto de lei da Câmara, a ele o relator acresce, trabalha com as emendas oferecidas pelos senadores e elabora um substitutivo que, nesse caso, nada mais é do que a soma do projeto de lei da Câmara com as emendas aprovadas pelos senadores e com as subemendas por eles introduzidas, nascendo, então, o substitutivo da comissão.
Ao Plenário do Senado vão os dois instrumentos, o projeto de lei puro da Câmara tal qual veio e o substitutivo oferecido pelo relator, que, na verdade, já é um substitutivo da comissão temática respectiva. Lá no Senado é votado, preferencialmente, o substitutivo da comissão, em relação ao projeto de lei puro da Câmara.
Aprovado que seja, ressalvados os destaques, o substitutivo do Relator ou da comissão, tem-se como prejudicado o substitutivo ao texto do projeto, já que temos um mecanismo de aprovação. Após essa aprovação do substitutivo, votam?se os destaques dos senadores que são de emendas que tenham sido rejeitadas pelo Relator, destaques de textos da Câmara que não tenham sido incorporados no substitutivo do relator, destaques de votação em separado de textos do substitutivo do relator, e destaques supressivos de textos do substitutivo do relator.
Aprovado este material e votado no Senado, volta à Câmara dos Deputados, aí, surge na Câmara o momento do retorno do texto. Daí por que se diz, e aqui observo a curiosidade, é que, na verdade, no sistema bicameral modelo brasileiro, que é a maioria dos modelos dos sistemas bicamerais do mundo, há sempre uma prevalência da Casa iniciadora.
[…]
Só se inicia no Senado Federal os projetos de autoria do Senado; os projetos de autoria do Presidente da República, de iniciativa popular, de outros Poderes, da Procuradoria da República, do Poder Judiciário, etc., todos se iniciam na Câmara. A Câmara fica, então, com o poder revisor final, com a palavra final. A razão pela qual se estabelece dessa forma é porque, na Câmara, a representação é da população, e, no Senado, a representação é dos Estados federados. Deixa?se, portanto, a última voz do processo legislativo brasileiro à população brasileira, representada, integralmente, pela Câmara dos Deputados.
(STF, ADI 2.182 MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 19.3.2004. Voto do ministro Nelson Jobim)
Interessante destacar que, ao assentar a prevalência da Câmara dos Deputados, que “fica com o poder revisor final, com a palavra final”, o ministro Nelson Jobim superou o voto que proferiu como relator da ADC 3.
O ministro Nelson Jobim da ADI 2.182 MC retoma o entendimento do Nelson Jobim que, em 1993, como deputado federal, defendeu que a última palavra era da Casa iniciadora. Em questão de ordem no PL 2248/1991, o deputado Jobim asseverou: “a Constituição determina que todo projeto iniciado na Câmara dos Deputados e emendado no Senado Federal, em revisão, deve voltar a esta Casa, porque a Casa iniciadora tem a última manifestação”[24].
O ministro Sepúlveda Pertence também concordou com a prevalência da Câmara dos Deputados. Por ser a Casa de origem da maioria dos projetos, Pertence anotou que foi a partir da Constituição de 1946 que a hegemonia da Câmara se exacerbou, ficando indiscutível:
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE: (…)
É curioso notar, e o Ministro Nelson Jobim na sua segunda “sessão de nostalgia”, que tanto nos agrada ouvir, já o recordou, que a partir da Constituição de 1946 essa hegemonia da Câmara se exacerbou para corrigir os impasses provocados pelos textos anteriores, nos quais, no entanto, ela, em termos, já existia.
A Constituição do Império adotava um mecanismo que talvez seja similar ao do sistema alemão, a que se referiu o Ministro Nelson Jobim, e que é curioso. Dizia o art. 61:
[…]
Era, assim, uma sessão conjunta de conciliação por iniciativa da Casa revisora que, embora rejeitando a proposição da outra, entendesse que era conveniente buscar uma fórmula conciliadora; mais ou menos o que se faz hoje na emenda aglutinativa.
A Constituição de 1934 permite à casa revisora maior resistência, mas por um quorum altamente qualificado. Lê-se no art. 44:
[…]
Ainda aqui, dado que a Câmara dos Deputados é a casa de origem da maioria dos projetos, a predominância já era da Câmara dos Deputados.
Foi assim com a Constituição de 1946, que, a meu ver, data venia, a predominância da câmara se exacerbou e ficou indiscutível. Não há nela mecanismo que permita opor-se a câmara revisora à predominância da votação final da câmara de origem. A única opção é a rejeição completa e a iniciativa de outro projeto, por iniciativa do Senador, na sessão legislativa subsequente. Mas veja V. Exa. que, politicamente, a hegemonia da iniciativa governamental nos projetos de lei nem esse alvitre deixa ao Senado, quando sejam projetos de iniciativa privativa do presidente da República.
O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM: A discussão na Constituição de 1946, era no sentido de dar prevalência à Câmara, estava na experiência histórica confirmada até hoje, que os chefes do Poder Executivo dos Estados se tornassem senadores. Então o Executivo estadual controlava a manifestação popular que viesse pela Câmara.
Foi o que aconteceu em 1946, a maioria dos interventores de Getúlio ou se transformavam em governadores dos Estados ou iam para o Senado. E hoje basta ver o Senado, verificando ser ele todo composto de governadores.
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE: De tal modo, Sr. Presidente, que nada teria a acrescentar aos votos dos Ministros Maurício Corrêa, Nelson Jobim e Celso de Mello; apenas me deixei seduzir pela reminiscência do meu aprendizado escolar. Peço vênia ao eminente Ministro Marco Aurélio para acompanhar o Ministro Maurício Corrêa.
(STF, ADI 2.182 MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 19.3.2004. Voto do ministro Sepúlveda Pertence. Grifos no original)
No julgamento de mérito da ADI 2.182, o Tribunal reiterou o entendimento de prevalência da Casa iniciadora. “A Casa onde se inicia o processo, evidentemente, tem uma certa prevalência”, declarou a ministra Cármen Lúcia, que ficou designada como redatora do acórdão:
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA: Senhor Presidente, o brilhantíssimo voto do Ministro Marco Aurélio, como sempre, fala muito fundo pelos argumentos, porém estudei, inclusive, todos os debates em 2000, quando houve a discussão sobre o pedido de deferimento de cautelar, e me convenci de que, apesar do que acaba de lembrar o Ministro Marco Aurélio e dos termos do art. 65 da Constituição, o que se teve, no caso, foi basicamente uma modificação processada no Senado, pelo esmiuçamento, pela pormenorização e pela adoção de uma técnica legislativa, alterando o conteúdo no sentido muito mais formal do que material, razão pela qual, como disse naquela ocasião, tanto o então Relator Ministro Maurício Corrêa quanto o Ministro Nelson Jobim, diante do que eles chamaram de bicameralismo imperfeito, a Casa onde se inicia o processo, evidentemente, tem uma certa prevalência.
E, quando voltou esse projeto – como bem lembrou o Ministro Marco Aurélio – como substitutivo, como se fosse um novo, mas substitutivo muito mais na forma esmiuçada – como eu já disse –, na verdade, a Câmara reexaminou fundamentalmente o conteúdo daquilo que foi alterado.
Tenho o maior apreço realmente pelo cumprimento do processo legislativo, mas penso aceitável o processo que foi adotado sem que se possa configurar, neste caso, a inconstitucionalidade formal, e, com a presunção de constitucionalidade, peço vênia ao nobre Ministro Marco Aurélio, para divergir e julgar improcedente a ação.
(STF, ADI 2.182, Red. p/acórdão Min. Cármen Lúcia, DJ 10.9.2010. Voto da redatora, ministra Cármen Lúcia)
Pode-se alegar que, nas ADIs 2.182 MC e 2.182, a emenda era substitutiva. E na ADC 3, a emenda era de redação. Essa distinção, no entanto, pouco importa. A Constituição é imperativa. Uma vez emendado na Casa revisora, seja qual for a emenda, o projeto deve voltar à Casa iniciadora.
“O poder de decisão final sobre o projeto de lei elaborado, uma vez não arquivado pela Casa revisora, cabe à Casa iniciadora”, declarou o Procurador-Geral da República no parecer ofertado na ADI 2.182:
Não há como prosperar o pleito.
A despeito da estruturação bicameral do processo legislativo pátrio, o próprio texto constitucional, em alguns dispositivos, impõe limites ao sistema por ele delineado. Assim, por exemplo, a norma invocada como violada pelo requerente (art. 65), verbis;
“Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar.
Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.”
Da leitura do dispositivo supratranscrito, tem-se, à evidência, que o poder de decisão final sobre o projeto de lei elaborado, uma vez não arquivado pela Casa revisora, cabe à Casa iniciadora, seja esta a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal. Assim se conclui em vista, especialmente, da determinação do parágrafo único do dispositivo e do preceito seguinte, que ordena – sem qualquer previsão de que o projeto emendado retorne, após a análise pela Casa iniciadora, à Casa revisora responsável pelas emendas – que “a Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará”.
Não deixou o constituinte espaço, como visto, ao prolongamento indefinido ou à eternização do trâmite legislativo, com idas e vindas a cada nova emenda apresentada e votada.
(STF, ADI 2.182. Parecer do Procurador-Geral da República. Grifos no original)
Com o reconhecimento da prevalência da Casa iniciadora, o Supremo Tribunal Federal acolheu uma técnica[25] de solução de conflitos entre a Casa iniciadora e a Casa revisora. É a mesma técnica defendida por José Afonso da Silva no seu livro Processo constitucional de formação das leis.
“A última palavra cabe à Casa iniciadora”, afirma José Afonso da Silva. É da tradição do constitucionalismo brasileiro norma como a do art. 65, parágrafo único, da Constituição em vigor. Se na fase de revisão “o projeto sofrer alteração, volverá à Câmara iniciadora, para apreciação das alterações”. E conclui o mestre paulista: “se não se proceder desse modo, comete-se inconstitucionalidade, em face do disposto nos arts. 65 e 66 da CF”:
Sábia, a nosso ver, é a solução do Constitucionalismo brasileiro, pois é de sua tradição norma como a seguinte, que constava do art. 69 da Constituição de 1946 e consta do art. 65 e seu parágrafo único da CF em vigor: se o projeto de uma Câmara for emendado na outra, volverá à primeira pra que se pronuncie acerca da modificação, aprovando-a ou não. Vale dizer: a última palavra cabe à Casa iniciadora no caso de entendimento diverso a respeito de uma proposição emendada. Praticamente, não se estabelece conflito. Fugiu, sem dúvida alguma, à rigidez do princípio de que no bicameralismo os projetos só se consideram aprovados, definitivamente se passarem por ambas as Câmaras em idênticas forma – no que se fez bem.
[…]
Já discorremos sobre o bicameralismo brasileiro, e vimos que o sistema aqui adotado é o bicameralismo igualitário, que consiste na igualdade básica das duas Casas do Congresso Nacional, ainda que, no que tange à formação das leis, a Câmara dos Deputados tenha alguma primazia referentemente à iniciativa do seu processo; por isso, quase sempre funciona como Câmara iniciadora, enquanto o Senado Federal desempenha especialmente a função de Câmara revisora. Em qualquer caso, contudo, exige-se, para a validade da lei, que ambas as Casas participem do procedimento de sua formação, na forma como já examinamos no Capítulo V, repetindo-se no procedimento de revisão as exigências de quórum, Ordem do Dia, discussão e votação nas Comissões, discussão e votação no Plenário. Se a votação na fase de revisão concluir pela rejeição do projeto, este estará definitivamente rejeitado, e não terá que volver à Câmara iniciadora, porque em relação a tal projeto seu ofício terminou. Se na fase de revisão for aprovado, sem alteração, também não voltará à Câmara iniciadora, porque aí o projeto ficou definitivamente aprovado, devendo a própria Câmara revisora remetê-lo à sanção presidencial. Se, porém, na fase de revisão, o projeto sofrer alteração, volverá à Câmara iniciadora, para apreciação das alterações, que consistirá exclusivamente na aprovação ou rejeição do que foi alterado. Vale dizer: se não se proceder desse modo comete-se inconstitucionalidade, em face do disposto nos arts. 65 e 66 da CF, que estatuem:
“Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar.
Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.”
“Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará.”
(SILVA, José Afonso da. Processo constitucional na formação das leis. São Paulo: Malheiros, 3ª ed., 2017, p. 301 e 361/362. Grifos no original)
No mesmo sentido é o magistério de Raul Machado Horta, invocado no voto do ministro Maurício Corrêa, relator da ADI 2.182 MC. Horta descreve que, desde a Constituição de 1946, é da Câmara de iniciativa ou de discussão inicial do projeto de lei “a competência conclusiva para decidir a respeito do projeto emendado na Câmara de revisão”:
Ora, completado o ciclo da elaboração legislativa na Câmara Iniciadora, diga-se Câmara dos Deputados, não poderia mesmo o projeto voltar à Câmara Revisora, no caso o Senado Federal, porque já concluído o procedimento final do processo legislativo. Do contrário, dar?se?ia repetição interminável de idas e vindas de uma Casa Legislativa para outra, o que tornaria sem fim o processo legislativo. Por isso mesmo, correta a afirmação de Raul Machado Horta, ao comentar preceito similar ao da atual Carta Federal da Constituição de 1946, segundo a qual “a Constituição Federal de 1946 simplificou a revisão legislativa, reduzindo suas fases. Eliminou a tramitação bicameral em quatro etapas e deu à Câmara de iniciativa ou de discussão inicial do projeto de lei competência conclusiva para decidir a respeito do projeto emendado na Câmara de revisão (art. 69, parágrafo único). A arbitragem legislativa da Câmara iniciadora ou de discussão inicial é técnica de abreviamento do processo legislativo, e concorre para suprimir uma das causas da lentidão deliberativa” (“O Processo Legislativo nas Constituições Federais Brasileiras, Revista de Informação Legislativa nº 101, Brasília, jan./mar. 1989).
(ADI 2.182 MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJe 19.3.2004. Voto do relator. Grifos no original)
Era da Câmara dos Deputados a palavra final. Era da Câmara o poder revisor final. Era da Câmara a última voz. Era da Câmara a competência conclusiva. Era da Câmara a última palavra no processo de formação da Ficha Limpa. E essa última palavra não pode ser usurpada, suprida ou substituída.
Por não observar o devido processo legislativo, a Lei da Ficha Limpa é inconstitucional, por violação aos arts. 65 e 66 da Constituição.
14) Muitas vezes a decisão correta é a decisão impopular
Não se desconhece o surgimento de uma “nova ordem” no Supremo Tribunal Federal. Não há mais “conservadores” e “garantistas”. Os conceitos mudaram. O Tribunal está hoje dividido em “iluministas” e “ainda garantistas”.
Contudo, mesmo para “empurrar a história”[26], o Supremo Tribunal Federal deve obediência à Constituição. Se não há direitos absolutos, também não existem leis soberanas, imunes ao controle de constitucionalidade.
Questionar a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa não significa querer voltar ao passado. Ou ser conivente com a corrupção. Ou não desejar o sucesso do Brasil. Pelo contrário. É no embate das diferentes razões, por diferentes autores, em diferentes momentos, que se renova a Constituição, que se garantem os direitos fundamentais e se legitima a jurisdição constitucional, sobretudo o seu caráter contramajoritário.
Nenhuma lei dispõe de usucapião de constitucionalidade. E não dispõe porque nenhuma lei pode se sobrepor à Constituição. A observância irrestrita às normas da Constituição – Lei Fundamental – é o preço módico que se paga por viver em um Estado Democrático de Direito.
Nas palavras do ministro Celso de Mello, “a inobservância dos esquemas rituais rigidamente impostos pela Carta Magna da República gera a invalidade formal dos atos legislativos editados pelo Poder Legislativo e permite que sobre essa eminente atividade jurídica do Parlamento possa instaurar-se o controle jurisdicional” (ADI 574, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 11.3.1994).
No mesmo sentido, a seguinte decisão do ministro Barroso: “o Supremo Tribunal Federal somente deve intervir em procedimentos legislativos para assegurar o cumprimento da Constituição, proteger direitos fundamentais e resguardar os pressupostos de funcionamento da democracia e das instituições republicanas” (STF, MS 34.907, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJe 23.6.2017).
Como guardião de uma Constituição prestes a completar 30 anos, o Supremo Tribunal Federal não pode ser uma Corte populista. E não pode porque “muitas vezes a decisão correta é a decisão impopular”[27], como assinalou, em 2010, o ministro Luís Roberto Barroso.
15) Conclusões
O Supremo Tribunal Federal nunca julgou a inconstitucionalidade formal da Ficha Limpa. Não há como o Tribunal impor efeito vinculante a algo que não foi decidido. Desse modo, juízes e tribunais – inclusive o próprio STF – podem declarar a inconstitucionalidade formal da Lei da Ficha Limpa. A questão está aberta na jurisdição constitucional.
Normas regimentais não podem ditar parâmetros de interpretação da Constituição (STF, MS 24.041, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 11.4.2003).
Não há exceções no art. 65 da Constituição. Seja a emenda supressiva, aglutinativa, substitutiva, modificativa, aditiva, global ou de redação, pouco importa o seu nome, a Constituição é imperativa. Uma vez emendado na Casa revisora, seja qual for a emenda, o projeto deve voltar à Casa iniciadora.
A retroatividade da Ficha Limpa envolve um problema de liberdade. Quem é atingido pela LC 135/2010, por ato praticado antes de sua vigência, não pode fazer nada porque sua ação não pode mais ser mudada. Não há possibilidade de reação. Não há possibilidade de comportamentos alternativos. A Ficha Limpa aniquila o direito fundamental à liberdade.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal comprova a inconstitucionalidade formal da Ficha Limpa. Seja nos termos da ADC 3 (alteração do âmbito temporal), ou das ADIs 2.182 MC e 2.182 (prevalência da Casa iniciadora), era da Câmara dos Deputados a última palavra no processo de formação da Lei da Ficha Limpa.
A Câmara dos Deputados é também intérprete da Constituição. E sua vontade na formação das leis não pode ser usurpada, suprida ou substituída.
Era da Câmara dos Deputados o poder revisor final, a última voz, a competência conclusiva, a palavra final no processo de formação da Lei da Ficha Limpa. Era também da Câmara, após concluída a votação da emenda do Senado Federal, a prerrogativa de enviar o projeto à sanção.
A Lei da Ficha Limpa é inconstitucional. Por contrariar o devido processo legislativo constitucional, a LC 135/2010 viola os arts. 65, parágrafo único, e 66, caput, da Constituição de 1988.
Era da Câmara a última palavra. De ninguém mais.
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Israel Nonato é editor e membro fundador do Os Constitucionalistas.
Foto: Nelson Jr./SCO/STF.
Notas:
[1] O artigo é uma versão condensada das ideias, dados e anotações do projeto de monografia que o autor idealizara para a conclusão do curso de pós-graduação em Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). A revisitação a esse projeto se tornou mais forte com a releitura do livro Teoria da segurança jurídica, de Humberto Ávila. Suas ideias sobre retroatividade da lei, além de inovadoras, são fundamentais no presente artigo.
[2] BRÍGIDO, Carolina. FERNANDES, Letícia. ‘Ficha suja está fora do jogo democrático’, diz Fux ao tomar posse no TSE. O Globo, 6 fev. 2018. Disponível em <https://oglobo.globo.com/brasil/ficha-suja-esta-fora-do-jogo-democratico-diz-fux-ao-tomar-posse-no-tse-22372264>.
[3] “Creio que exista também um problema de lógica por trás do projeto [da Ficha Limpa]. Pelo menos de acordo com o ideal racionalista clássico, numa democracia representativa é função do eleitor – e de mais ninguém – selecionar o candidato no qual depositará sua confiança. É claro que o mundo não funciona exatamente como preconizavam os filósofos iluministas. Mas, mesmo assim, tendo a desconfiar de soluções que procurem ‘corrigir’ o cidadão. E o pressuposto do Ficha Limpa, vamos admiti-lo, é o de que o eleitor é incapaz até mesmo de distinguir bandidos de pessoas honestas” (SCHWARTSMAN, Hélio. Ficha Limpa, entre o inócuo e o ilógico. Folha de São Paulo. 19 mai. 2010. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u737659.shtml>).
[4] Em artigo publicado em 26.7.2010, o autor e Rodrigo Lago indicaram, como controvérsia relevante, a constitucionalidade formal da LC 135/2010: “a Câmara dos Deputados não apreciou a emenda do Senado que alterou o tempo verbal de cinco dispositivos do projeto aprovado na Casa iniciadora, desprezando o princípio do bicameralismo, disposto no artigo 65 da Constituição” (LAGO, Rodrigo Pires Ferreira. NONATO, Israel. Ficha Limpa e o devido processo eleitoral. Os Constitucionalistas, 26 jul. 2010. Disponível em <http://www.osconstitucionalistas.com.br/ficha-limpa-e-o-devido-processo-eleitoral>).
[5] “A questão levantada por Peluso causou uma discussão intensa entre os ministros. Ayres Britto e Ricardo Lewandowski se mostraram inconformados pelo fato de o presidente propor essa discussão em um Recurso Extraordinário, sem pedido expresso da defesa do candidato” (HAIDAR, Rodrigo. STF discutirá se derruba Ficha Limpa por completo. Consultor Jurídico, 22 set. 2010. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2010-set-22/supremo-declarar-inconstitucional-lei-ficha-limpa>).
[6] TSE, RO 1616-60, Rel. Min. Arnaldo Versiani, PSESS 31.8.2010.
[7] “Seis Ministros se recusaram a discutir a constitucionalidade formal da lei. Por isso, minha conclusão quanto à inconstitucionalidade formal caiu por terra. Seis Ministros recusaram-se a discutir, sequer discutir, a inconstitucionalidade da lei! (…) Cito os Ministros: o relator, Carlos Ayres Britto, a Ministra Cármen Lúcia, o Ministro Joaquim Barbosa, o Ministro Ricardo Lewandowski, a Ministra Ellen Gracie e o Ministro Celso de Mello, também” (STF, RE 630.147, manifestação do ministro Marco Aurélio).
[8] No artigo “Ficha Limpa e o devido processo eleitoral”, o autor e Rodrigo Lago sustentaram a não aplicabilidade da Ficha Limpa nas eleições de 2010. “Como altera o processo eleitoral, influenciando a escolha, registro e votação de candidatos, a Ficha Limpa não pode ser aplicada às eleições de 2010. Do contrário, violar-se-á o artigo 16 da Constituição, tornando-o letra morta para futuras alterações do processo eleitoral” (LAGO, Rodrigo Pires Ferreira. NONATO, Israel. Ficha Limpa e o devido processo eleitoral. Os Constitucionalistas, 26 jul. 2010. Disponível em <http://www.osconstitucionalistas.com.br/ficha-limpa-e-o-devido-processo-eleitoral>).
[9] O art. 14, III, da Lei 9.868/1999 dispõe que a petição inicial da ação declaratória de constitucionalidade (ADC) indicará “a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória”.
[10] “Vê-se que o pedido formulado na ADC 30 é de declaração de constitucionalidade “da Lei Complementar nº 135/10”, o que poderia sugerir que se pretende atingir a totalidade do diploma legal em comento. No entanto, não foram declinados na peça vestibular da ADC 30 os fundamentos jurídicos do pedido de declaração de constitucionalidade de outros dispositivos da Lei Complementar nº 135/10 que não dizem respeito especificamente à previsão de novas hipóteses de inelegibilidades, com o que, relativamente a estes, não foi atendido o disposto no art. 14, I, da Lei nº 9.868/99. Portanto, considerada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não se há de conhecer da questão concernente à constitucionalidade dos demais dispositivos da Lei Complementar nº 135/10” (STF, ADC 30, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 29.6.2012. Voto do relator).
[11] “XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam” – inciso XVI do art. 22 da LC 64/1990. Incluído pela LC 135/2010.
[12] “Art. 26-C. O órgão colegiado do tribunal ao qual couber a apreciação do recurso contra as decisões colegiadas a que se referem as alíneas d, e, h, j, l e n do inciso I do art. 1o poderá, em caráter cautelar, suspender a inelegibilidade sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal e desde que a providência tenha sido expressamente requerida, sob pena de preclusão, por ocasião da interposição do recurso” – art. 26-C da LC 64/1990. Incluído pela LC 135/2010.
[13] “Art. 3º. Os recursos interpostos antes da vigência desta Lei Complementar poderão ser aditados para o fim a que se refere o caput do art. 26-C da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, introduzido por esta Lei Complementar” – art. 3º da LC 135/2010.
[14] Para saber os nomes dos 33 deputados, é só consultar os dados do PLP 518/2009. Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=452953>.
[15] Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). MCCE. Disponível em <http://www.mcce.org.br/leis/lei-complementar-1352010-lei-da-ficha-limpa>.
[16] BARCELLOS, Ana Paula de. Direitos fundamentais e direito à justificativa: devido procedimento na elaboração normativa. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 270.
[17] Ofício 905/10-SF, de 19.5.2010, à Ministra Chefe da Casa Civil, encaminhando a Mensagem 79/10-SF, ao Senhor Presidente da República, submetendo à sanção presidencial autógrafos. Disponível em <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/96850>.
[18] “A Ficha Limpa vai causar vítimas em todos os partidos. É uma roleta russa com todas as balas no revólver”, profetizou em 2012 o ministro Gilmar Mendes (RECONDO, Felipe. ‘Ficha limpa é uma roleta russa. Fará vítimas para todo lado’, diz Gilmar Mendes. O Estado de São Paulo. 4 mar. 2012. Disponível em <https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,ficha-limpa-e-uma-roleta-russa-fara-vitimas-para-todo-lado-diz-gilmar-mendes-imp-,843835>). Hoje, por ironia do destino, o maior exemplo dessa roleta russa é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi Lula quem, em 2010, sancionou o projeto da Ficha Limpa. Condenado em segundo grau pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro (TRF da 4ª Região), Lula tenta reverter a condenação para concorrer à presidência da República nas eleições de 2018.
[19] Consulta 1147-09, Rel. Min. Arnaldo Versiani, DJe 24.9.2010; RO 1616-60, Rel. Min. Arnaldo Versiani, PSESS 31.8.2010; RO 645-80, Rel. Min. Arnaldo Versiani, PSESS 1º.9.2010; RO 4137-21, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, PSESS 14.9.2010; AgR-RO 168-63, Rel. Min. Arnaldo Versiani, PSESS 29.9.2010; ED-RO 624-13, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, PSESS 16.12.2010; AgR-R0 4090-47, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJe 14.3.2011.
[20] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Malheiros, 2016, 4ª ed., p. 459.
[21] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. Obra citada, p. 495. Grifos no original.
[22] ADI 2.182 MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 19.3.2004. Julgada em 31.5.2000.
[23] ADI 2.182, Red. p/acórdão Min. Cármen Lúcia, DJe 10.9.2010. Julgada em 12.5.2010.
[24] Câmara dos Deputados. Questão de Ordem 10430/1993. Publicada no Diário da Câmara dos Deputados, edição 6.5.1993. O PL 2248/1991 é de iniciativa do presidente da República. Como também é o projeto da Ficha Limpa, o PLP 168/1993, como esclarecido neste artigo.
[25] O art. 65, parágrafo único, da Constituição só vale para projetos de lei (ordinários, complementares ou de conversão de medida provisória). Não há prevalência da Casa iniciadora quando os impasses entre as Casas se referem a propostas de emenda constitucional. Nas PECs, só se considera defitivamente aprovado o texto que for aprovado de modo idêntico em ambas as Casas. Se isso não ocorrer, recorre-se à técnica do “pingue-pongue” até que Senado e Câmara, em consenso, aprovem o mesmo texto.
[26] “(…) em situações excepcionais, com grande autocontenção e parcimônia, cortes constitucionais devem desempenhar um papel iluminista. Vale dizer: devem promover, em nome de valores racionais, certos avanços civilizatórios e empurrar a história” (BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: o Supremo, seus papéis e seus críticos. Os Constitucionalistas. 5 abr. 2017. Disponível em <http://www.osconstitucionalistas.com.br/contramajoritario-representativo-e-iluminista-o-supremo-seus-papeis-e-seus-criticos>).
[27] Conversas acadêmicas: Luís Roberto Barroso (I). Os Constitucionalistas. 24 mai. 2010. Disponível em <http://www.osconstitucionalistas.com.br/conversas-academicas-luis-roberto-barroso-i>.
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