“A nação anseia pela restauração da moralidade, abatida em sucessivos escândalos. As manifestações de rua são o termômetro da revolta popular. Reivindicam o respeito à ética e o combate à corrupção. Quem tiver ouvidos para o clamor do povo, e ganhar a confiança das pessoas de bem, será o próximo presidente.” Essa frase poderia ser dita hoje, mas foi publicada em 10/10/2013, no jornal O Estado de S. Paulo, em artigo sobre as eleições de 2014, de autoria do ministro Almir Pazzianotto Pinto. Ela serve bem como introdução a este texto destinado a uma análise das distorções do sistema político, eleitoral e partidário, em face dos resultados do primeiro turno.
Tenho sido bastante crítico com relação à disciplina do sistema político, eleitoral e partidário, gerada pela Constituição Federal em vigor, mas isso não me impede de reconhecer sua eficácia na manutenção da ordem institucional.
É certo que assegurou a estabilidade institucional, mas não é menos certo que levou o país à tremenda crise que estamos vivendo no momento. Quem viveu os tempos do Congresso travestido em Constituinte sabe das pressões corporativas e dos interesses espúrios que condicionaram o texto. Não é fora de propósito lembrar que até a undécima hora estava previsto o sistema parlamentarista de governo, o qual foi modificado pelo chamado "centrão", que reina soberano no Congresso Nacional até hoje. Entretanto, já que o tema é uma análise das últimas eleições, vale destacar que, paradoxalmente, o candidato do centrão, que tinha o maior tempo na propaganda eleitoral “gratuita”, o ex-governador de São Paulo Geraldo Alkmin, teve uma votação inexpressiva, perdendo até mesmo no estado que governou. Em números absolutos, o centrão, que tinha 164 deputados, perdeu 22, mas permanecendo com o significativo número de 142 deputados, o que é preocupante, pois, como é sabido, essa poderosa bancada decide apoiar, ou não, qualquer projeto, por meios nada republicanos.
O fato positivo é que pelo menos temos resolvido divergências políticas por meio das eleições periódicas. Em texto publicado na ConJur em 26 de setembro, afirmei: “Não há governo democrático sem eleições livres, com a saudável disputa entre partidos políticos, para que o povo possa escolher seus governantes. Esse ideal está muito longe de ser alcançado no Brasil. Temos eleições, mas não temos partidos políticos e a escolha que será feita em outubro será irremediavelmente fraudada”. Fraude, aqui, não significa crime, mas, sim, uma discrepância entre a expectativa e o resultado. Com efeito, não é normal, numa democracia consolidada, o resultado do pleito presidencial que coloca no segundo turno, em confronto direto, sem qualquer outra opção, o candidato de um partido nanico e o “representante” de um preso, condenado por corrupção.
O vencedor nanico tinha apenas segundos na propaganda eleitoral “gratuita” e era duramente hostilizado pela imprensa nacional e internacional. A revista The Economist, em reportagem de capa, considerou tal candidato como uma ameaça à democracia. O jornal francês Libération o qualificou como racista, homofóbico, misógino e pró-ditadura. Em compensação, nas redes sociais, ele recebeu um número enorme de apoios, que acabou se refletindo nas ruas, em manifestações que foram crescendo de intensidade, especialmente depois da não ainda esclarecida tentativa de assassinato. Por muito pouco não foi eleito diretamente no primeiro turno.
A anormalidade do pleito começou quando a legislação admitiu a existência de pré-candidatos. Essa figura teratológica, de quem é e não é ao mesmo tempo, garantiu a participação no processo eleitoral de um pré-candidato inelegível, num claro atentado à lógica. Com base nessa incoerência, o não candidato escarneceu da Justiça Eleitoral e se manteve como candidato até o último minuto da undécima hora. No âmbito do Direito Civil, não se admite a propaganda enganosa, mas, no âmbito do Direito Eleitoral, cuja finalidade é assegurar a soberania popular, passou a ser lícito mentir e enganar à vontade.
Outra aberração foi a candidatura de pessoa constitucionalmente privada dos direitos políticos. Por mais incrível que possa parecer, o TSE, por unanimidade, assegurou a candidatura da ex-presidente Dilma Rousseff, condenada exatamente à perda do mandato por crime de responsabilidade. O relator, ministro Barroso, não viu, na legislação eleitoral, qualquer causa de inelegibilidade. Segundo ele, não caberia ao TSE “rever decisão essencialmente política do Senado”. É contristador ouvir isso exatamente de um ministro que tem zelado pelo cumprimento não só da letra da Lei Maior, mas do significado das normas constitucionais, com vistas a conferir a elas o máximo de eficácia. Bastaria que o ministro Barroso tivesse aplicado diretamente o disposto no parágrafo único, do artigo 52, da CF, que, inequivocamente, dispõe que a cassação do mandato impõe, acarreta, determina, obriga, compulsoriamente, a “inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”.
Uma coisa é a decisão política do Senado, que garantiu à condenada o desfrute de todas as mordomias inerentes à condição de ex-presidente. Não há como recuperar as fortunas gastas pelo erário com viagens internacionais, feitas por ela para denegrir o Brasil e, muito especialmente, as instituições e o Poder Judiciário. Outra coisa, muito diferente, é a função da Justiça Eleitoral, que, nos termos do artigo 118 da CF, deve ser independente, autônoma e incondicionada. De nada adianta o dilúvio normativo em matéria eleitoral se o órgão encarregado da defesa da Constituição em matéria eleitoral ignora o texto constitucional explícito e inequívoco. Essa candidatura foi uma fraude, uma “corrupção legal”, uma afronta à cidadania, que vai permanecer como tal, ainda que, no final, tenha tido seus efeitos deletérios corrigidos diretamente pelos cidadãos eleitores de Minas Gerais.
Possivelmente por causa do clima de revolta (que levou o candidato nanico ao segundo turno), o índice de renovação na Câmara dos Deputados foi de 52%, o maior dos últimos 20 anos. Esse fato é auspicioso, mas ainda permite ver que, mesmo desencantado com seus supostos representantes, muitos eleitores reconduziram um considerável número deles à Câmara dos Deputados. Isso se explica (conforme foi exposto em artigo publicado na ConJur em 25 de janeiro) pela desmedida desigualdade entre os candidatos, pois a CF assegura aos parlamentares o uso de dinheiro público em suas campanhas, muito especialmente por meio das chamadas emendas parlamentares ao orçamento, destinadas, inquestionavelmente, à manutenção dos currais eleitorais e dos interesses das corporações que apoiam um determinado parlamentar. Também pesa o fato de que candidatos à reeleição podem dispor de toda a estrutura de seus gabinetes, além da cooptação, decorrente das nomeações de apaniguados para cargos e empregos, em todos os segmentos da administração pública.
Merece atenção o fato de que o PSL, partido do candidato mais votado à Presidência, elegeu apenas um deputado em 2014, mas agora passou a ser a segunda bancada na Câmara dos Deputados, com 52 deputados. O PSDB, que quase elegeu o presidente em 2014, minguou, passando a ter o 10º lugar em número de deputados (29). A bancada mais numerosa é a do PT, com 56 deputados. Esse partido, embora tenha perdido votos na maioria dos estados, se manteve majoritário graças a uma votação regionalizada, como se passa a comentar.
Merece também atenção, nestas eleições, a distribuição geográfica das preferências eleitorais. Isso já acontecia anteriormente, mas, agora, ficou mais acentuada, pois, como destaca a imprensa em geral, a necessidade de realização de um segundo turno de votação decorre da votação obtida, pelo classificado em segundo lugar, nos estados do Nordeste brasileiro. Existe algo errado, não se pode tomar como “normal” o fato de que um candidato repudiado pelos brasileiros em geral tenha obtido a preferência numa determinada região, caracterizada pela pobreza, pelo baixo nível de escolaridade e, consequentemente, pelo anacronismo da vida política, com a sobrevivência dos antigos “coronéis”. Dependência gera submissão, que alimenta o caciquismo, que tem todo interesse em manter dependência; mas esse círculo vicioso precisa ser quebrado. Alguma coisa precisa mudar, para que os mais necessitados possam ser melhor governados.
Certamente outras observações sobre a inadequação da disciplina jurídica das eleições poderiam ser feitas. Entretanto, de imediato, para encerrar estes comentários, cabe destacar um aspecto que chega às raias do ridículo. Em São Paulo, o então governador do estado, Geraldo Alkmin, teve que se afastar do cargo para se desincompatibilizar, como candidato à Presidência da República. Entretanto, o vice-governador, Márcio França, assumiu o cargo de governador e não precisou se desincompatibilizar, como candidato à reeleição, podendo, sim, se valer de toda a estrutura e das verbas orçamentárias do governo do estado em sua campanha para governador. Note-se que, rigorosamente, ele não seria candidato à reeleição, pois não havia sido eleito governador. Mas o pior de tudo é a disparidade de tratamento entre postulantes ao voto popular. Se a desincompatibilização é justificada pela necessidade de assegurar a lisura dos pleitos e a livre manifestação dos eleitores, não faz sentido algum dispensar da desincompatibilização um candidato que, evidentemente, pode dispor de meios para viciar o resultado do pleito.
Registre-se, entretanto, que a menção ao nome do candidato Márcio França foi apenas exemplificativa, sem nenhuma crítica pessoal ao candidato, o qual apenas se comportou da maneira prescrita pela absurda legislação vigente. É inaceitável a disciplina normativa que beneficia os candidatos à reeleição em geral, para qualquer mandato, executivo ou legislativo. Essa particularidade serve apenas para demonstrar, mais uma vez, que os “constituintes” de 1988 e os legisladores dos anos seguintes legislaram para si mesmos, em seu benefício particular, e nunca para o aprimoramento das instituições.
Alguma melhoria haverá de vir com as normas estabelecidas pela Emenda Constitucional 97, de 4/10/2017, que altera a Constituição para vedar as coligações partidárias nas eleições proporcionais e estabelecer normas sobre acesso dos partidos políticos aos recursos do Fundo Partidário e ao tempo de rádio e televisão. Tais dispositivos, entretanto, serão implantados gradativamente, a partir de 2020, completando-se apenas em 2030. O fato auspicioso é que o absurdo número de 28 partidos com representação no Congresso Nacional será reduzido, pois mais de uma dezena das conhecidas legendas de aluguel tendem a desaparecer.
Em síntese, a experiência adquirida com as eleições agora realizadas pode contribuir para o aperfeiçoamento da democracia. O Estado Democrático de Direito e a soberania popular, nos termos do artigo 1º da Constituição, não podem ser uma quimera, uma simples aspiração, mas deve ser algo concreto, exequível.
Voltando ao ponto inicial, cabe reafirmar que não é possível haver democracia sem partidos políticos realmente representativos de correntes ou segmentos da sociedade. A polarização, que levará certamente a uma verdadeira guerra no segundo turno, pode e deve ser evitada. Resta a esperança de que o considerável índice de renovação no Congresso Nacional (Câmara e Senado) permita o aperfeiçoamento da lastimável legislação política, eleitoral e partidária atualmente em vigor.
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