Ao inserir o artigo 10-A na Lei 10.522/2002, a Lei 13.043/2014 criou parcelamento especial para os tributos devidos à União pelas empresas em crise financeira. A inovação foi valorizada até em excesso pelo STJ, que então — olvidando que aquelas têm dívidas também perante os Fiscos estaduais e municipais — entendeu atendidas as condições de aplicabilidade do artigo 191-A do CTN, segundo o qual a apresentação de certidões com efeitos negativos é requisito para o deferimento da recuperação judicial[1].
Ocorre que o comando, não bastasse ser avaro em concessões — apenas 24 meses a mais do que o parcelamento ordinário, manutenção de várias restrições à inclusão de tributos[2] e nenhuma redução de multas, juros, custas, encargos e honorários —, ainda esconde uma armadilha ao investir o parcelamento especial de uma vis attractivaquase absoluta. De fato — com a exceção única daqueles incluídos em outros parcelamentos —, devem ser nele consolidados todos os débitos em aberto do contribuinte, ainda que garantidos em juízo ou atingidos por alguma causa de suspensão da exigibilidade (artigo 10-A, parágrafos 1º e 2º).
Ora, é sabido que os Fiscos brasileiros cobram muitos tributos indevidos: fundados em leis inconstitucionais ou contrárias às normas gerais, ou em decretos ilegais; resultantes da aplicação analógica ou da interpretação voluntarista das regras instituidoras; extintos por prescrição ou decadência; já pagos ou compensados; entre outras razões bem conhecidas dos que atuam no contencioso tributário.
Nesse contexto, exigir do contribuinte que desista de contestar dívidas que entende indevidas para ter o direito de parcelar outras cuja procedência reconhece é uma manifesta injustiça. É, mais do que isso, uma clara ofensa ao direito de acesso ao Judiciário — de imediato para os débitos definitivamente constituídos, no futuro para aqueles em fase de discussão administrativa —, direito cuja renúncia não pode ser imposta nem sequer por lei (Constituição, artigo 5º, inciso XXXV).
Como registra Cássio Scarpinella Bueno, “qualquer lei (...) que pretenda subtrair da apreciação do Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito é irremediavelmente inconstitucional”[3]. Qualificando o inciso XXXV do artigo 5º como “o parágrafo régio do Estado Democrático de Direito”, o STF alerta que, “onde inexista a possibilidade do amparo judicial, haverá, sempre, a realidade opressiva e intolerável do arbítrio do Estado”[4]. Tratando de tema similar ao desta coluna, a corte invalidou regras legais que condicionavam a prática de atos da vida civil e empresarial à apresentação de certidão de regularidade fiscal, “na medida em que ignoram sumariamente o direito do contribuinte de rever em âmbito judicial ou administrativo a validade de créditos tributários”[5].
A atribuição de força atrativa ao parcelamento especial é, ademais, uma manifesta violação ao artigo 164, inciso I, do CTN, que autoriza o contribuinte a ajuizar ação consignatória no caso de subordinação do recebimento de um crédito tributário ao prévio pagamento de outro. Como há muito temos sustentado, o comando “reconhece ao devedor o direito de eleger, dentre o conjunto de seus débitos tributários vencidos em face de um mesmo Fisco, aquele que efetivamente satisfará em cada momento”[6].
Objetar-se-á que o parcelamento é benefício fiscal, e que este se subordina às condições impostas por quem graciosamente o outorga. A alegação não procede. A uma porque a instituição de parcelamento especial para as empresas em recuperação judicial não é uma decisão livre dos entes políticos, sendo-lhes ao contrário imposta pelo artigo 155-A, parágrafo 3º, do CTN[7]. E a duas porque mesmo os benefícios fiscais devem obediência à Constituição e ao CTN, os quais — como visto — garantem ao contribuinte o direito de escolher os débitos que deseja quitar e os que pretende discutir.
A atribuição de força atrativa ao parcelamento especial é, ainda, uma frontal violação aos artigos 151 e 206 do CTN, no que concerne aos débitos com exigibilidade suspensa ou garantidos por penhora — pois nem estes são poupados pela draconiana regra em exame. Deveras, os primeiros não podem ser considerados devidos para qualquer fim, revelando-se descabida a exigência de sua quitação precoce. E os segundos, embora não suspensos, têm o seu pagamento assegurado se e quando rejeitada a defesa do contribuinte, não ensejando a imposição de restrições a este último.
Se todos os pontos acima são verdadeiros para as empresas em geral, são-no ainda mais para aquelas em recuperação judicial, instituto que “tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (Lei 11.101/2002, artigo 47). Ora, é incompatível com esses nobres e árduos fins a imposição do pagamento de tributos potencialmente indevidos, que golpeia de forma desnecessária o já combalido caixa da empresa, dificultando ainda mais o seu reerguimento e prejudicando os detentores de créditos com melhor respaldo jurídico.
Não se trata de violar a ordem do artigo 186 do CTN, seja porque crédito indevido não é apto a entrar em gradação nenhuma, seja principalmente porque a regra alude apenas à falência, não havendo falar em hierarquização de dívidas na recuperação judicial. E vale reiterar que a não inclusão de certas dívidas no parcelamento não lhes atribui tratamento beneficiado. Tem-se antes o contrário: elas continuarão no estado em que se encontravam, sujeitando-se a cobrança forçada por parte do Fisco — desde logo ou, para as suspensas, se e quando revertida a causa de suspensão.
A atribuição de força atrativa ao parcelamento especial das empresas em recuperação judicial, considerando-se que o critério não vigora nos parcelamentos especiais (os vários Refis) e nem sequer no parcelamento ordinário das empresas em geral, viola ainda o princípio da razoabilidade, na acepção de um dever de harmonização das normas com as suas condições externas de aplicação: “relação congruente entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada”[8]. Ora, o critério de diferenciação adotado pela regra em exame (estar o contribuinte em recuperação judicial) não é congruente com a medida por ela adotada (obrigá-lo a pagar tributos possivelmente indevidos). Pelo contrário, agrava a situação deste e dificulta, para os demais credores (inclusive os outros Fiscos), o recebimento de créditos de melhor qualidade jurídica, merecendo a tradicional censura do STF contra as leis arbitrárias[9].
Em suma, o contribuinte em recuperação judicial tem o direito de livre escolha dos débitos que incluirá no parcelamento especial, seguindo a orientação dos seus advogados e assumindo os riscos das suas decisões. Nenhum critério o constrange, além da própria vontade. A conclusão é ratificada pelo TRF da 4ª Região, o único que se debruçou sobre o tema até agora. Como lucidamente anota o desembargador federal Jorge Antonio Maurique, “a lei define que o parcelamento se aplica à totalidade dos débitos do contribuinte, mas não diz que deverá o contribuinte parcelar todos de uma vez”. E arremata: “o dispositivo estabelece apenas que não há qualquer ressalva quanto aos débitos que poderão ser parcelados; poderá o contribuinte parcelar o débito que bem entender, ainda que discutido na esfera administrativa ou judicial”[10].
A tese está consolidada também nas varas especializadas em recuperação judicial. Para o juiz e professor Daniel Carnio Costa, “viola o princípio do acesso à Justiça a exigência de que a empresa aderente tenha que desistir e/ou renunciar a qualquer possibilidade de contestação judicial dos tributos”[11]. O também juiz e professor Marcelo Barbosa Sacramone vai além na censura, afirmando que “o estabelecimento do prazo de 84 meses e ainda a exigência de renúncia à pretensão deduzida em juízo questionando o tributo criam tratamento desigual entre os diversos credores e afrontam os dispositivos constitucionais, de modo que devem ter a incidência afastada”[12].
Sempre é tempo de predicar respeito às cláusulas pétreas.
[1] STJ, Corte Especial, REsp. 1.187.404/MT, relator ministro Luís Felipe Salomão, DJe 21/8/2013; STJ, 2ª Turma, AgRg no AREsp. 543.380/PE, relator ministro Herman Benjamin, DJe 10/9/2015.
[2] Das muitas vedações aplicáveis ao parcelamento ordinário (Lei 10.522/2002, art. 14), apenas umas poucas são afastadas pelo parágrafo 7º do artigo 10-A.
[3] Manual de Direito Processual Civil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 48.
[4] STF, Pleno, AgR na Rcl 6.534/MA, relator ministro Celso de Mello, DJe 17/10/2008.
[5] STF, Pleno, ADI 173, relator ministro Joaquim Barbosa, DJe 20/3/2009.
[6] Inconstitucionalidade da imputação do pagamento e da compensação de ofício no Direito Tributário brasileiro. In Segurança Jurídica: Irretroatividade das Decisões Judiciais Prejudiciais aos Contribuintes. Coordenação Sacha Calmon Navarro Coêlho. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 505-516.
[7] “Art. 155-A, § 3º. Lei específica disporá sobre as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial. (...)”
[8] Humberto Ávila. Teoria dos Princípios: da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 163.
[9] STF, Pleno, ADI 1.076-MC/DF, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJ 7/12/2000.
[10] TRF da 4ª Região, 1ª Turma, Apelação 5009861-45.2016.4.04.7200, relator desembargador federal Jorge Antonio Maurique, j 22/6/2017. No mesmo sentido, também da 1ª Turma do TRF da 4ª Região: Agravo de Instrumento 5029217-92.2016.4.04.0000/SC, relator desembargador federal Jorge Antonio Maurique, j. 17/8/2016; e Apelação 5080371-92.2016.4.04.7100/RS, relator desembargador federal Roger Raupp Rios, j. 11/4/2018.
[11] 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, Processo 0088007-66.2017.8.26.0100, j. 8/5/2018.
[12] 2ª Vara de Falências e Recuperações judiciais de São Paulo, Processo 1007989-75.2016.8.26.0100, j. 5/5/2017.
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