A abertura de inquérito policial no âmbito do Supremo Tribunal Federal para apurar violações à honra de ministros da corte renovou debates sobre o uso de mídias sociais e aparatos eletrônicos como instrumento de pressão sobre magistrados e outros agentes de Estado.
Em um Estado Democrático, não há representante de Poder imune à crítica ou à fiscalização. São legitimas e bem-vindas divergências e discordâncias, amenas ou ácidas, que contribuem para o escrutínio público sobre critérios, parâmetros e valores de decisões e comportamentos. Fazem parte e consolidam um sistema participativo, em que cada cidadão tem o direito de levantar a voz para defender o que entende por correto, seja justo ou injusto, moral ou imoral, incomode a quem incomodar.
Mas a livre expressão tem consequências. Aquele que a usa para propagar o ódio contra grupos ou pessoas, para imputar a alguém crimes não cometidos ou para divulgar fatos falsos que afetem a reputação de terceiros responde por isso. A ameaça, a calúnia, a injuria e a difamação são crimes, e ninguém defende sua impunidade em prol de uma liberdade irrestrita de manifestação. A própria Procuradoria-Geral da República, no período eleitoral passado, demonstrou preocupação com o fenômeno e seu potencial para afetar o processo democrático.
Tais crimes ganham nova dimensão com o advento de instrumentos de multiplicação de notícias e mensagens por meio eletrônico, em especial através do uso de nomes fictícios ou robôs que ocultam seu autor.
Esses mecanismos, quando usados para noticiar fatos, debates, divulgação de ideias, críticas ou reprovação, são legítimos instrumentos de cidadania. Quando propalam falsidades são prejudiciais, porque as replicam, multiplicam, transformando-as em verdade pelas mil repetições. Quando ameaçam, transformam a vida do atingido ou a de seus familiares em algo próximo do inferno.
Há uma reticência em se tratar do tema, ainda mais no âmbito jurídico. Para Proust “o amor – e consequentemente o temor – da multidão constitui um dos mais poderosos impulsos em todos os homens”. Há sempre o temor de ser o próximo alvo, a próxima vítima. Cada um acalenta um incômodo silêncio, na esperança de passar incólume pela próxima tempestade.
Mas quem por ela passa, sabe das consequências.
A professora Débora Diniz, da Unb, manifestou-se publicamente a favor do aborto. Foi alvo de uma saraivada de tiros eletrônicos. As ameaças de toda a ordem — oriundas de sites instalados no exterior — fizeram com que a docente deixasse o país por algum tempo.
Jean Willys, ex-deputado federal, teve sua imagem afetada por notícias falsas que o associaram à tentativa de assassinato de Jair Bolsonaro. A repórter Constança Rezende, do O Estado de S. Paulo, foi alvo de fake newsque apontavam uma suposta intenção explícita da jornalista de arruinar a imagem de Flávio Bolsonaro. O próprio presidente da República replicou tal versão dos fatos.
As mesmas violências são praticadas contra o Judiciário.
O juiz Sergio Moro sofreu ataques de blogueiro que afirmou falsamente ter ele sido filiado ao PSDB e desviado valores da prefeitura de Maringá. Alguns ministros do STF, que decidiram a favor da criminalização da homofobia, foram alvo de violência cibernética. Grupos de WhatsApp e páginas em redes sociais foram invadidas com mensagens ofensivas ou fake news sobre sua postura. O mesmo ocorreu com integrantes da corte que reconheceram a competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes conexos.
Pode-se gostar ou não das decisões judiciais. Seu conteúdo pode e deve ser combatido, criticado, exposto com ironia ou fúria, mas seus prolatores não podem ser alvo de ameaças ou inverdades, replicadas profissionalmente ou anonimamente por meio de instrumentos eletrônicos ou outros.
Dizia Rui Barbosa que não há salvação para o juiz covarde. O magistrado não deve temer ataques ou represálias sociais por suas decisões, que têm por parâmetro apenas a lei e a consciência. Mas é preciso que essa mesma lei e essa mesma Justiça garanta que sua atividade não será alvo de ameaças ou que sua honra não será afetada pela disseminação de informações falsas sobre seus atos ou caráter. “Justice in not to be taken by storm”, para usar frase de Ruth Ginsburg, ministra da Suprema Corte Americana. A proteção à independência e à integridade do magistrado é fundamental para para assegurar a imparcialidade da Justiça.
É hora de debater com seriedade o tema. É preciso que juízes, promotores, advogados, e demais membros da sociedade civil, reconheçam o potencial das mídias sociais para o bem e para o mal. E construam mecanismos para garantir a liberdade de expressão e coibir abusos. Do contrário, as disputas judiciais deixarão os autos para ensejar uma guerra cibernética, onde argumentos jurídicos serão substituídos pela capacidade — ou incapacidade — de replicar inverdades que consolidem a versão da parte que melhor as maneje.
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