A Justiça Eleitoral está na berlinda, de novo, com a decisão do Supremo Tribunal Federal de que é ela quem deve se pronunciar sobre a atração de competência para apurar, por conexão, os crimes que ganharam a alcunha de “crimes da lava-jato”.
A fúria, permeada pelo desconhecimento do que faz e como funciona a Justiça Eleitoral, exige o fim da instituição, que seria cara, inútil e destinada a “salvar corruptos”.
Os orgulhosos de sua própria ignorância não sofrem com dúvidas, mas para quem as tiver, ofereço uma reflexão.
A competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes eleitorais e conexos a estes está prevista na lei. Desde a minha dissertação de mestrado, em 2014, defendo que a lei deve ser alterada.
A racionalidade da administração e do controle judicial das eleições, com seu enfoque nos direitos políticos e na legitimidade das eleições, é distinta da racionalidade do Direito Penal, famosa ultima ratio voltada pra inibir e punir onde tudo o mais falhar, e do processo penal, voltado (sim, apesar de nem sempre parecer) para a proteção do acusado. São duas lógicas distintas e me parece mais propício empregar todos os recursos e estratégias institucionais da Justiça Eleitoral no desempenho da primeira.
Meu argumento não passa por qualquer desprestígio aos quadros de juízes e servidores e aos órgãos investigativos que atuam na Especializada[1].
Ao contrário, destaco o que ainda passa distante da percepção da maioria das pessoas: o Direito Eleitoral é de altíssima especialização, tanto pela fundamentalidade dos direitos políticos quanto pela complexidade dos temas. E, sim, há um trabalho imenso a ser feito — um trabalho muitas vezes não percebido pela população que, digo e repito, acostumada a uma administração eleitoral de excelência em parâmetros mundiais, acaba “dando de barato” ter eleições seguras, com amplo acesso do cidadão às urnas, cadastro confiável e enfrentamento célere das questões judiciais.
Minha posição, então, é que a Justiça Eleitoral deve ficar com a competência da qual só ela cuida. E a competência penal, que outros órgãos também desempenham, não precisa ocupar a estrutura da Especializada.
Mas isso é uma sugestão para o debate em torno de uma alteração legislativa. A realidade normativa hoje é que a Justiça Eleitoral tem competência penal.
Lá atrás, forçaram os limites do artigo 350 do Código Eleitoral, crime de falsidade ideológica eleitoral, pra nele tentar fazer caber o caixa 2 de campanha. Esqueceram que a lei diz que, havendo crime conexo a crime eleitoral, a competência pra julgar todos eles passa a ser da Justiça Eleitoral.
Foi assim que colocaram, na marra, a formiguinha do artigo 350, um crime de menor gravidade, pra guinchar o elefante dos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e outros mais que constituem o foco da "lava jato".
A decisão do STF é, portanto, tecnicamente correta.
O problema está, então, na distorção semântica do artigo 350 do Código Eleitoral, que, aliás, serviu a uma interpretação mais radical da finalidade da "lava jato". Como se vê na mídia e mesmo em declarações de autoridades, a narrativa fortemente criminalizadora da política por vezes faz parecer que é melhor acabar com as eleições (aquelas que asseguram a renovação democrática dos detentores do poder) pois daí não se teria estímulo pra corromper.
A solução do impasse demanda, portanto, assumir o equívoco no alcance desmesurado do artigo 350 do Código Eleitoral. Aproveite-se pra sepultar propostas que querem ampliar a competência penal da Justiça Eleitoral, com a criação de um tipo específico para o caixa 2. Eventualmente, inverta-se a regra da atração de competência, ou se ponha fim à competência penal da Justiça Eleitoral.
Mas fujamos de sugestões falaciosas. Acabar com a Justiça Eleitoral não assegurará a punição dos ímpios. Acabar com a democracia não vai salvar a virtude.
[1] Pontos, aliás, magistralmente refutados por Fernando Neisser, neste mesmo site: https://www.conjur.com.br/2019-mar-15/neisser-justica-eleitoral-competencia-julgar-lava-jato
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