Desde que mais de duas dezenas de políticos democratas lançaram suas candidaturas para as eleições presidenciais de 2020, propostas eleitorais de todos os tipos jorraram aos borbotões. Surgiu até uma proposta impossível de ser absorvida em um país com mentalidade capitalista – a de acabar com o seguro-saúde privado no país e substituí-lo pelo sistema de saúde universal, que é seguro-saúde gratuito para todos (uma espécie de SUS). Mas uma proposta vem ganhando tração, propulsionada por parte da mídia e instituições políticas: abolir o Colégio Eleitoral para eleição do presidente.
A proposta empolga os eleitores democratas e independentes. Nem tanto os republicanos. Afinal, os republicanos ganharam seis eleições nos últimos tempos, apesar de perderem na contagem do voto popular nacionalmente. Isso decorre do fato de que os criadores do Colégio Eleitoral favoreceram estados com menor população e que são essencialmente rurais, permitindo que elegessem um número de delegados maior do que lhes caberia, se a proporção de habitantes fosse observada. São todos estados republicanos.
Essa é uma proposta que não passa antes das eleições de 2020. O Partido Republicano tem maioria no Senado e não vai abrir mão da vantagem que tem agora. Será preciso que o Partido Democrata eleja o presidente e consiga maioria na Câmara e no Senado. Para isso, terá de vencer nos chamados “swing states” – os poucos estados em que nenhum dos partidos prevalece e a vitória nas eleições pode ir para candidatos de qualquer partido.
Os democratas acham que vão ganhar as eleições e essa é a razão que o partido tem tantos candidatos: todo mundo acha que pode bater Donald Trump. Então vem a questão: substituir o Colégio Eleitoral com o quê?
Existem três possibilidades em discussão: eleição majoritária (direct popular vote), eleição com segundo turno (two-round system ou runoff voting) e eleição com segundo turno instantâneo (IRV – instant-runoff voting) – esse é o sistema que a organização New America, que se dedica à reforma política, afirma ser o melhor para os Estados Unidos, segundo um artigo publicado no site Vox. Nesse artigo, a organização descreve cada sistema:
Eleições majoritárias
Segundo a New America, a substituição do colégio eleitoral por eleições majoritárias é a primeira coisa que vem na cabeça das pessoas. Mas o sistema de pluralidade simples só é melhor que o sistema de colégio eleitoral. O sistema é ruim porque não exige que o candidato vencedor tenha a maioria dos votos. E isso abre a possibilidade de que o pior candidato, na preferência geral dos eleitores, ganhe as eleições, porque os dois favoritos tiveram de dividir a maioria dos votos.
O pior desse sistema é que ele cria a figura do “spoiler” – o candidato que estraga tudo. A melhor maneira de explicar o “spoiler” é com um exemplo. Nas eleições de 2000, o candidato republicano-conservador George Bush ganhou na Flórida a eleição que decidiu a corrida presidencial. O candidato democrata-liberal perdeu, então, por uma diferença de 537 votos. Assim, Bush ganhou mais delegados no Colégio Eleitoral.
Também concorreu à Presidência nessa eleição o candidato do Partido Verde, Ralph Nader, que era liberal e, portanto, disputou com Gore os mesmos eleitores. Nader recebeu 97.421 votos na Flórida, subtraindo, segundo os democratas que não o perdoam, mais de 96 mil votos de Gore. Sem ele, seria uma vitória tranquila do candidato democrata na Flórida e, enfim, na eleição presidencial.
Até hoje muita gente se refere a Nader como o “spoiler” oficial do país, embora isso já tenha acontecido em outras eleições. O fato é que, nas eleições presidenciais nos EUA, em que apenas dois partidos – o republicano e o democrata – imperam, não há espaço para outros partidos crescerem. Com a lição de Nader, o eleitor tem de optar pelo voto útil – e não por um candidato de partido de sua preferência. De outra maneira, ele vai ajudar a eleger o pior candidato, em sua opinião.
De qualquer maneira, as eleições majoritárias é um sistema em que todos os votos contam, à diferença do colégio eleitoral, em que milhões de votos de grandes estados são perdidos, devido ao fato de que o número de delegados atribuídos a cada estado não corresponde ao tamanho da população dos estados.
Eleições com segundo turno
Para a New America, as eleições com segundo turno certamente são melhores que as eleições majoritárias. E são adotadas por muitas democracias. Como dificilmente um candidato obtém mais de 50% dos votos e, portanto, não se configura uma maioria, esse sistema tende a produzir vencedores mais moderados – ao contrário das eleições majoritárias que podem produzir vencedores mais extremistas. Essa é a teoria. Mas se sabe que, no Brasil, não foi bem assim nas últimas eleições.
Apesar de ter defensores de peso, como o ex-procurador-geral dos EUA Eric Holder, esse sistema tem desvantagens que se contrapõem às vantagens. A organização cita como exemplo as eleições presidenciais de e 2017 na França, com segundo turno.
No primeiro turno, o centrista Emmanuel Macron obteve 24% dos votos e a candidata de extrema direita Marine Le Pen, 21%. No segundo turno, Macron obteve 66% dos votos e Marine Le Pen foi derrotada com 33%. Se diz na França que, no primeiro turno, os eleitores selecionam; no segundo, eles escolhem. Visto de uma maneira diferente: no primeiro turno os eleitores escolhem; no segundo, eliminam.
A principal vantagem das eleições francesas de 2017 foi a de que ela criou espaço para chacoalhar a estrutura partidária de longa data. A França era dominada pelos socialistas de centro-esquerda e pelos republicanos de centro-direita. Com eleições em dois turnos, um candidato centrista pôde concorrer às eleições sem correr o risco de se tornar um “spoiler”.
Mas as eleições francesas estiveram perto de deixar os eleitores franceses diante de uma escolha difícil. O quarto colocado no primeiro turno foi Jean-Luc Mélenchon, um populista de extrema esquerda, que obteve pouco menos de 20% dos votos. Se Macron tivesse obtido menos 4,5% dos votos, subtraídos por Mélenchon e outros candidatos, iria cair para terceiro lugar. Assim, os eleitores franceses teriam de escolher entre um populista de extrema esquerda e uma populista de extrema direita.
As eleições com segundo turno certamente abrem espaço para partidos de menor expressão, mas não deixa de obrigar os eleitores a considerar um voto estratégico (ou um voto útil), em candidatos que não são seus preferidos, mas que têm maiores chances de ganhar as eleições.
Além disso, a vitória de Macron com 66% dos votos válidos se deveu, em grande parte, à rejeição dos eleitores pela candidata de extrema direita. Não foi fruto da preferência total dos eleitores – o tipo de voto em que os eleitores escolhem dos males o menor.
Eleições com segundo turno instantâneo
As eleições com segundo turno instantâneo (IRV – Instant-runoff voting), que a organização chama de votação por classificação das escolhas (ranked-choice voting), é um sistema em que o eleitor classifica os candidatos na cédula de votação por ordem de (sua) preferência. Ou seja, o eleitor atribui a seu candidato a posição 1, sua segunda opção na posição 2, sua terceira opção na posição 3 e assim por diante, se houverem mais candidatos.
É um processo que, no caso de três candidatos (para facilitar a explicação), o candidato com menos votos na contagem geral é eliminado. O voto de cada eleitor no candidato que foi eliminado, por ficar em terceiro lugar, vai para o candidato que era sua segunda opção. Depois de redistribuídos os votos, nova contagem é feita. No final, um candidato deve alcançar mais de 50% dos votos.
Exemplificando, suponha que as eleições de 2020 sejam disputadas por Donald Trump, candidato do Partido Republicano à reeleição, por Joe Biden, candidato do Partido Democrata, que foi vice-presidente do governo de Barack Obama (e que é até agora o preferido dos democratas, segundo as pesquisas), e Howard Schultz, ex-CEO da Starbucks, milionário e centrista, mas com tendências que se alinham com as do Partido Democrata, embora ele goste, segundo diz, de algumas coisas do Partido Republicano.
Em eleições majoritárias, bem como no atual sistema de colégio eleitoral, Schultz será um “spoiler”: pode arruinar a candidatura democrata, tal como Nader fez em 2000. Vai ajudar a reeleger Donald Trump.
Em um sistema de eleição por ranking dos candidatos, ele tem uma grande chance de terminar o primeiro turno em segundo lugar, considerando que os eleitores republicanos vão colocar Trump na primeira posição e Biden na terceira. Inversamente, os eleitores democratas vão colocar Biden na primeira posição e Trump na terceira. Ele será segunda opção para, basicamente, todo mundo.
Shultz poderia até ganhar as eleições, a exemplo do que aconteceu com Macron na França. Ele pode ter os votos dos eleitores independentes, bem como de eleitores democratas que se sentirem incômodos com uma possível candidatura de um “socialista” (como o senador Bernie Sanders ou a senadora Kamala Harris), e de eleitores republicanos, arrependidos de terem votado em Trump em 2016.
O sistema não é novo. É adotado, em diversos níveis de governo, na Irlanda, Nova Zelândia, Canadá, Índia, República Tcheca e outros países. Nos Estados Unidos, é adotado em algumas eleições municipais, como as de São Francisco e Oakland, na Califórnia, e Minneapolis e Saint Paul, em Minnesota – e também na Premiação do Oscar, na categoria de Melhor Filme.
Uma das vantagens do sistema de ranking de candidatos, segundo a New America, é a de que esse sistema produz um vencedor mais amplamente aceito pela totalidade dos eleitores. Os candidatos competem pelo primeiro lugar, mas também competem pelo segundo. No sistema de dois turnos, os dois candidatos mais votados no primeiro turno vão disputar uma nova eleição. Mas eles não serão, necessariamente, os candidatos mais aceitos pela totalidade dos eleitores do país.
Outra vantagem é a de que o sistema de ranking de candidatos elimina a situação em que o eleitor tem de optar pelo voto útil, deixando de votar em seu candidato preferido, para votar em quem tem mais chance de ganhar e, com isso, evitar o risco de ajudar a eleger o candidato que rejeita.
Estrategistas de campanha eleitoral podem ajudar a promover candidatos que irão rachar as preferências de voto de seus adversários. No sistema de dois turnos instantâneos, essa estratégia não funciona. E os “spoilers” também deixam de exercer seu efeito devastador nas eleições, com um volume de votos que só serve para estragar tudo.
Finalmente, a eleição com segundo turno instantâneo é menos custosa para o governo. É óbvio que uma eleição custa menos do que duas. E os eleitores não têm de voltar às urnas pela segunda vez. De uma maneira geral, onde votar não é obrigatório, o comparecimento às urnas no segundo turno diminui muito, porque os eleitores desiludidos com os resultados do primeiro turno não se sentem motivados a votar.
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