Por Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega
Fonte: www.conjur.com.br
Tema recorrente que cerca as discussões sobre a Lei de Improbidade Administrativa (8.429/1992) reside no caráter aberto de seus dispositivos.
Pudera! A impressão primeira é a de que a natureza sancionadora do diploma deveria contrastar com tipos abertos, discriminando claramente elementos objetivos e subjetivos a atrair a sanção sobre os faltosos.
Parece ter sido opção legislativa, nada obstante, recorrer a conceitos abertos de modo a que as normas alcançassem, com todo o seu âmbito de vigência material, o máximo de condutas que afrontassem tudo aquilo para o que afinal o diploma convergiu: proteção da coisa pública.
Essa escolha, não foi nenhuma surpresa, não se deu sem críticas ou efeitos colaterais, assentando a doutrina que os dispositivos da lei revelariam verdadeira norma sancionadora em branco, isto é, “de conteúdo incompleto, e cujo aperfeiçoamento só é alcançado mediante reenvio a outro diploma normativo, já existente ou a ser futuramente editado”[1] — também chamadas de “normas jurídicas não autônomas”[2] ou “proposições jurídicas incompletas”[3].
Daí o dilema a aturdir os curiosos do tema: de um lado, a inesgotável criatividade humana, a produzir sem intervalos um manancial de variações de condutas que vilipendiam o patrimônio público sem encontrar na lei capacidade de discriminá-las pari passu; de outro, a necessidade de previsibilidade e segurança a prevenir, notadamente a sociedade, sobre os exatos contornos dos comportamentos censuráveis.
O debate ganha em relevância quando as projeções das consequências da ausência descritiva dos núcleos dos tipos reputados ímprobos acabam por se materializar, redundando em decisões as mais variadas a preencher de significado significantes normativos tão amplos.
O Direito, aliado à língua portuguesa, fornece um ferramental robusto que não apenas viabiliza a discricionariedade como ponte entre espírito e realidade, mas que em certo sentido a catalisa: a facilidade propiciada pela facilidade em se encaixar aquilo que se tem pessoalmente como ímprobo no conceito normativo de improbidade favorece o subjetivismo. Pré-compreensões, preconceitos, desejos, resistências, aspirações etc. escoam com desenvoltura por conceitos abertos, aterrando comodamente nos diversos significados possíveis que os comportam — e a “discricionariedade” judicial fornece um locus amplo a acomodá-los.
Perspectiva diversa foi explorada por Gilson Dipp e Rafael Araripe Carneiro, enfocando não o Judiciário, mas o Ministério Público ao alertar para os perniciosos riscos da banalização da improbidade: “(...) a partir dos conceitos abertos trazidos pela Lei 8.429/1992, como ‘ofensa aos princípios da administração Pública” ou “qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida’, tem-se visto exageros na utilização do instituto da improbidade administrativa”. Isso é algo “prejudicial à própria sociedade, pois se perde o referencial de má-fé dos atos efetivamente ímprobos, em diferença às irregularidades sem gravidade. Improbidade não é qualquer ilegalidade”[4].
Essa mesma preocupação frequentou a doutrina de Mauro Mattos, a assinalar que a falta de definição de conteúdo jurídico “permitiu ao intérprete uma utilização ampla da ação de improbidade administrativa, gerando grandes equívocos, pois possibilitou que atos administrativos ilegais, instituídos sem má-fé, ou sem prejuízo ao ente público fossem confundidos com os tipos previstos na presente lei (enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e violação aos bons princípios da Administração Pública)”[5].
De fato, não há de modo expresso na Lei 8.429/1992 nem em nenhuma outra “um critério ou conceito geral de improbidade administrativa que permita balizar, com maior segurança, a aplicação dos seus arts. 9º, 10 e 11, até porque as leis não costumam fornecer conceitos jurídicos. Ocorre que tampouco há na legislação elementos seguros para a literatura jurídica, à qual compete a construção de conceitos jurídicos, formule um critério ou conceito geral de improbidade administrativa, que teria de ser abrangente para abarcar as condutas previstas (...) e, ao mesmo tempo, excludente daquelas condutas de menor gravidade”[6].
Indiferente à discussão, os fatos se impuseram e confrontaram o Judiciário, desafiando-o a, pouco a pouco, estabelecer parâmetros para uma aplicação em alguma medida previsível do diploma.
Um primeiro entendimento firmado, digno de registro, se deu com relação à indispensabilidade de dolo para os tipos abertos elencados pelos artigos 9º e 11[7] — enriquecimento ilícito e violação aos princípios da Administração Pública — e de culpa grave para as condutas enunciadas pelo artigo 10[8] — prejuízo ao erário. O problema é que, quanto à exigência de culpa grave, o mesmo Superior Tribunal de Justiça que estabelecera o critério nem sempre o tem prestigiado, como ilustram os recentes arestos da Segunda Turma no AREsp 654.406/SE.
Mais recentemente, sobreveio a Lei 13.655/2018, que incluiu o artigo 28 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro para dispor que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”, qualificando a culpa necessária à responsabilização do indivíduo.
Essas questões naturalmente ressoaram impactando o Projeto de Lei 10.887/2018, atualmente em curso perante a Câmara dos Deputados como resultado dos trabalhos de comissão de juristas presidida pelo ministro Mauro Campbell Marques. Um dos pontos merecedores de nota, e já abordado neste espaço, foi a exigência de a petição inicial da ação de improbidade não apenas ser instruída com documentos e detalhamentos capazes de acenar para o cometimento, ainda que indiciário, de um dos atos apenados pelo diploma, mas também para a autoria, com discriminação pormenorizada e individualizada das condutas. Com isso, inequivocamente, reforçou-se a importância do elemento subjetivo, mais bem delimitando o tipo.
Adicionalmente, sem embargo, a proposição legislativa em discussão repisou os dois grandes grupos de condutas recriminadas — ineficiência funcional e desonestidade — e, embora haja mantido tipos em alguma medida amplos de modo a alcançar variados comportamentos, foi bem mais além para eliminar a culpa como elemento subjetivo, exigindo-se sempre o dolo. O ponto foi explorado pelo deputado Roberto de Lucena, encampador da proposição, em sua justificativa:
Bastante significativa é a supressão do ato de improbidade praticado mediante culpa. De um atento exame do texto, par e passo da observação da realidade, conclui-se que não é dogmaticamente razoável compreender como ato de improbidade o equívoco, o erro ou a omissão decorrente de uma negligência, uma imprudência ou uma imperícia. Evidentemente tais situações não deixam de poder se caracterizar como ilícitos administrativos que se submetem a sanções daquela natureza e, acaso haja danos ao erário, às consequências da lei civil quanto ao ressarcimento.
O que se compreende neste anteprojeto é que tais atos desbordam do conceito de improbidade administrativa e não devem ser fundamento de fato para sanções com base neste diploma e nem devem se submeter à simbologia da improbidade, atribuída exclusivamente a atos dolosamente praticados. Neste sentido, a estrutura e a abrangência dos artigos 9º e 10º da LIA permanecem em essência inalterados, subtraindo-se a possibilidade da ocorrência de improbidade administrativa por atos culposos. Quanto à aplicabilidade do art. 11 deste diploma legal, compreendeu-se — desde uma franca observação da realidade — que inúmeras alegações de improbidade são impingidas a agentes públicos e privados que praticaram atos protegidos por interpretações razoáveis, quer da doutrina, quer do próprio Poder Judiciário. Não são incomuns ações civis públicas por atos de improbidade administrativa ajuizadas em razão de o autor legitimado possuir uma interpretação acerca de princípios e regras destoante da jurisprudência dominante ou em desconformidade com outra interpretação igualmente razoável, quer seja dos setores de controles internos da administração, quer dos Tribunais de Contas.
A proposta é verdadeiramente revolucionária, remetendo virtual sanção por deslizes ou equívocos funcionais à seara disciplinar, o diploma, consciente normativamente da gravidade das sanções de que dispõe, segrega condutas não apenas a partir de dosimetria da pena, mas, mesmo antes, entre atos merecedores de pesada punição e outros não justificadores do acionamento da seara sancionadora.
Em verdade, a proposição em comento parece pretender combater o que em muitos casos tem sido um desserviço prestado pela Lei de Improbidade atual: a insegurança funcional na assinatura de quaisquer documentos, interposição de recursos judiciais protelatórios, não celebração de transações, licitações atravancadas e que se arrastam etc.
Eis o paradoxo: o atual diploma, seja pela só sombra de ameaça que dele emana, seja pela desoneração argumentativa, facilidade e desenvoltura que dá lugar à propositura desmedida da ação nele prevista, não raro pune (ainda que sem punir) mesmo os agentes honestos — e, via de consequência, os próprios administrados —, já que, para quem é correto, a mera possibilidade ou ajuizamento de demanda contra si, independentemente de futura improcedência, já é pena severamente suficiente. É esse tipo de ilógica que o projeto em curso buscar tentar remediar.
[1] COMPARATO, Fábio Konder. Lei Penal em Branco: Inconstitucionalidade de sua Integração por Norma de Novel Infra-Legal – Os Crimes de Perigo são Crimes de Resultado. In: Direito Público, Estudos e Pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 269.
[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Porto Alegre: Martins Fontes, 1987, p. 60.
[3] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 305.
[4] DIPP, Gilson; CARNEIRO, Rafael Araripe. Banalização do conceito de improbidade administrativa é prejudicial a todos. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-mar-19/banalizacao-conceito-improbidade-prejudicial-todos.
[5] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Os vinte anos da lei de improbidade administrativa. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-dez-06/mauro-mattos-vinte-anos-lei-improbidade-administrativa.
[6] BARBOZA, Márcia Noll (coord.). Cem Perguntas e Respostas sobre Improbidade Administrativa Incidência e aplicação da Lei n. 8.429/1992. 2ª ed. rev. e atual. Brasília: ESMPU, 2013, p. 16-17.
[7] AgRg no REsp 1500812/SE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/05/2015, DJe 28/05/2015; AgRg no REsp 968447/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/04/2015, DJe 18/05/2015; REsp 1238301/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/03/2015, DJe 04/05/2015; AgRg no AREsp 597359/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/04/2015, DJe 22/04/2015; REsp 1478274/MT, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/03/2015, DJe 31/03/2015; AgRg no REsp 1397590/CE, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/02/2015, DJe 05/03/2015; AgRg no AREsp 560613/ES, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/11/2014, DJe 09/12/2014; REsp 1237583/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/04/2014, DJe 02/09/2014.
[8] “Conforme pacífico entendimento jurisprudencial desta Corte Superior, improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente, sendo "indispensável para a caracterização de improbidade que a conduta do agente seja dolosa para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/1992, ou, pelo menos, eivada de culpa grave nas do artigo 10". AIA 30/AM, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, DJe 28/09/2011.