Por Rodrigo Cyrineu
Fonte: Conjur
O debate sobre as candidaturas independentes, também chamadas de avulsas, se reacendeu com a convocação, pelo Ministro Roberto Barroso (Relator do tema de repercussão geral nº. 974), de audiência pública para a discussão do tema no âmbito do Supremo Tribunal Federal, marcada para dezembro de 2019.
Para longe de debater o aspecto puramente técnico-jurídico do problema, o que já está sendo feito em um grupo de trabalho criado pela ABRADEP sobre o tema, tentarei demonstrar que, do ponto de vista consequencialista, o Brasil só tem a ganhar.
Em tema de direitos políticos, parafraseando o acadêmico Luís Roberto Barroso, “ainda estamos atrasados e com pressa”[1]. No mundo, 9 (nove) em cada 10 (dez) países permitem a candidatura independente. O Brasil, portanto, faz parte dos outros 10% (dez por cento) que estão em atraso.
Consequentemente, isso implica no monopólio das candidaturas pelos partidos políticos que acabam se tornando o centro gravitacional do jogo eleitoral, quer o eleitor queira, quer não. E por óbvio, como detentoras de todo o poder político no âmbito do Congresso Nacional, as agremiações ditam as regras da disputa política da forma que bem entendem.
E quando o assunto é esse, não existe disputa ideológica entre os partidos. Esquerda, direita, liberais, conservadores, trabalhistas, ambientalistas, etc., todos, com raras exceções que jamais chegarão a se tornar maioria, são favoráveis, no tocante às regras de eleições, à manutenção do status quo, como a necessidade de filiação partidária e o crescente uso de recursos públicos no financiamento das campanhas.
O propósito, quando não é o de perder espaço, é o de aumentar a sua participação nas Casas Legislativas e/ou na formação do governo, tudo dentro deste chamado presidencialismo de coalizão à brasileira[2]. Num cenário desse, é incogitável sequer se pensar na quebra do monopólio partidário das candidaturas via ação legislativa.
Daí que a própria sociedade acaba recorrendo ao Poder Judiciário enquanto instituição neutra para corrigir algumas patologias decorrentes das disfunções do Poder Legislativo brasileiro.[3] Isto se deu em várias oportunidades: (i) entendimento de que a fraude à cota de gênero enseja a cassação de toda a chapa beneficiada pela afronta à lei (REspe nº. 193-92/PI, TSE, Rel. Min. Jorge Mussi); (ii) destinação de pelo menos 30% dos recursos do Fundo Partidário às campanhas de candidatas (STF, ADI 5.617); (iii) destinação de pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) às campanhas de candidatas (TSE, Consulta 060025218, Rel. Min. Rosa Weber); e (iv) destinação de pelo menos 30% do tempo de rádio e TV, nas eleições proporcionais, às candidaturas femininas (TSE, Consulta 060025218, Rel. Min. Rosa Weber).
Aliás, foi o próprio Judiciário que restabeleceu a ordem na conhecida panaceia decorrente do troca-troca partidário, quando reconheceu, via provocação dos próprios partidos, o dever de fidelidade partidária (TSE, Consulta 1.398; STF, MS’s 26.602, 26.603 e 26.604, impetrados respectivamente pelo PPS, PSDB e DEM).
Portanto, não é nada heterodoxa a discussão que se propôs no âmbito do ARE nº. 1.054.990/RJ, na medida em que observa a contínua linha de atuação do Judiciário em temas políticos mal balizados pelo Congresso Nacional. E em sendo a resposta positiva, o efeito será extremamente benéfico.
A quebra do monopólio partidário de candidaturas surtirá efeito imediato no problema mais agudo dos partidos políticos, qual seja, a falta de democracia interna. A partir do momento em que os partidos passam a ser apenas uma opção, e não mais condição para se candidatar, a lógica se inverte. As legendas vão ter que cativar os bons quadros, e isso envolve voz e espaço nas esferas internas de decisão, sob pena de os perder.
Deveras, essa questão da democracia interna nos partidos é tão sensível que Judiciário e Legislativo vem mantendo um diálogo institucional que mais parece uma luta (ou, na expressão do professor Oscar Vilhena, da FGV/SP, vem-se observando um jogo duro constitucional, em referência à expressão constitutional hardball cunhada por Mark Tushnet[4]).
O TSE, ao editar a Resolução nº. 23.571/2018 que disciplina a criação, organização, fusão, incorporação e extinção de agremiações partidárias, tratou do tema. Segundo o artigo 39 da norma, as anotações relativas aos órgãos provisórios têm validade de 180 dias, salvo se o estatuto partidário estabelecer prazo inferior. O prazo é contado a partir de 1º de janeiro de 2019.
Porém, em 17 de maio de 2019, foi publicada a Lei nº 13.831 que alterou a Lei nº 9096 de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos), no que diz respeito à duração das comissões provisórias dos partidos políticos. Segundo a nova lei, as comissões poderão ter vigência de até 8 (oito) anos, o que é um verdadeiro escárnio.
A nova Lei 13.831/19 veio com o intuito de conformar o §1º do artigo 17 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº. 97/2017, a qual conferiu às agremiações partidárias a autonomia para definir a “duração de seus órgãos permanentes e provisórios”.
Todavia, na sessão de julgamento do dia 5 de setembro de 2019, ao analisar a Petição nº. 18 ajuizada pelo PSL, a Corte Superior Eleitoral, seguindo o voto do Relator, Min. Sérgio Banhos, afastou a aplicação do art. 3º, §3º, da Lei nº. 13.831, asseverando que o Tribunal já havia conferido interpretação sistemática à EC nº. 97/2017 para consagrar o regime democrático no âmbito partidário.
Em janeiro deste ano, o Partido Social Liberal havia aprovado, no âmbito interno, nova redação ao parágrafo único do artigo 29 de seu estatuto, de modo a prever a possibilidade de renovações reiteradas e indefinidas das comissões provisórias. Entretanto, o TSE glosou este dispositivo, determinando sua adequação ao artigo 39 da Resolução 23.751/2018, de forma a ser observado o prazo de validade de 180 dias das comissões provisórias.
Citando precedente do próprio TSE de relatoria do Min. Henrique Neves da Silva, asseverou o Relator do recente julgado que “não há como se conceber que em uma democracia, os principais atores da representação popular não sejam igualmente democráticos”.[5]
Desse modo, evidentemente que guardadas as devidas proporções, eventual decisão da Corte Constitucional no sentido da viabilidade das candidaturas avulsas, a representar a quebra do monopólio partidário, pode ser concebida tal qual o fenômeno econômico da destruição criativa ou destruição criadora[6] sustentado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter em seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia de 1942.
Assim como as “velhas firmas e indústrias tradicionais, estejam ou não diretamente expostas à fúria dos elementos, vivem ainda assim em meio da eterna tempestade”[7] (Schumpeter se refere ao fenômeno da destruição criadora como “eterna tempestade”), não resta dúvida de que os velhos e tradicionais partidos sobreviverão frente a uma nova era política a ser inaugurada a partir do reconhecimento das candidaturas independentes.
Ao analisar as várias críticas ao seu texto “A razão sem voto”[8], o acadêmico Luís Roberto Barroso registra que “não deixa de ser curioso que a teoria constitucional tenha superado suas angústias em relação à dificuldade contramajoritária das cortes constitucionais, mas que veja maiores problemas em uma atuação representativa”.[9]
Para uma intervenção da jurisdição constitucional, Barroso entende como necessárias “condições concretas e socialmente controláveis de demanda social não atendida pelo processo político majoritário”[10], forte na linha de que “o órgão de representação popular por excelência é o Legislativo”[11]. Logo, “somente nas suas falhas mais graves é que se justifica a representação supletiva pelo Supremo”.[12]
Não há a mínima aceitação social dos partidos, dado o seu comportamento alheio aos interesses da coletividade. Hoje o cidadão não se sente representado e não tem interesse nenhum em discutir política. O assunto partido – e a política de uma forma geral – desfaz rodas de conversas, cria animosidades entre amigos e é causa de acalorados debates nas redes sociais.
Como comprova a pesquisa denominada "A Desconfiança dos Cidadãos das Instituições Democráticas", coordenada pelos cientistas políticos José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo (USP), e Rachel Meneguello, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que ouviu 2.004 mil pessoas de todas as regiões brasileiras, no que diz respeito aos partidos políticos, os índices de reprovação chegaram a 80,6% em 2006 ante 67,6% em 1993 e 57,3% em 1989. Imagine-se hoje, mais de uma década após com o aumento vertiginoso dos escândalos de toda sorte envolvendo as agremiações partidárias.[13]
Destarte, a candidatura avulsa, para longe de ser encarada apenas como uma prerrogativa pessoal ou direito subjetivo dos possíveis e futuros candidatos, deve ser sobretudo compreendida como direito ao voto e à livre manifestação política dos inúmeros eleitores desejosos do fim do monopólio de candidaturas atualmente imperante em prol dos partidos políticos.
Portanto, se o que está a observar é um constitutional hardball, parece que o Judiciário tende a realizar uma clara e contundente jogada de ataque, já contando com o apoio da Procuradoria-Geral da República que está na torcida pelo reconhecimento das avulsas.[14]
Por fim, se isso faz do Supremo uma instância representativa ou até mesmo iluminista da sociedade[15], temos que, no particular deste tema e restritos às atuais circunstâncias políticas, vale a pena experimentar, cabendo à história julgar se este será um caso de sucesso, como o célebre Brown vs Board of Education, ou ficará marcado como um dos tantos erros que as Cortes Constitucionais estão sujeitas, a exemplo do que se fala do caso Bush vs Gore.[16]
[1] BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: o Supremo, seus papéis e seus críticos. In: A razão e o voto: diálogos constitucionais com Luís Roberto Barroso. VILHENA VIEIRA, Oscar; GLEZER, Rubens (Orgs.). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 571.
[2] Dentre todos, recomendo: FERREIRA VICTOR, Sérgio Antônio. Presidencialismo de coalização: exame do atual sistema de governo brasileiro. São Paulo: Saraiva/IDP, 2015.
[3] No âmbito da teoria constitucional norte-americana, o professor John Hart Ely, refratário ao judicial review “forte”, admite a atuação da jurisdição constitucional como forma de desbloquear os canais de mudança política. No capítulo 5 (cinco) de sua obra “Democracia e Desconfiança”, intitulado “Desbloqueando os canais da mudança política”, o direito ao voto é elencando como uma das justificativas para viabilizar a jurisdição constitucional. Tanto o é que Ely adverte – verbis : “(...) o controle judicial de constitucionalidade deve ocupar-se basicamente de eliminar as obstruções ao processo democrático, e a negação do voto parece ser a mais representativa das obstruções”. ELY, John Hart. Democracia e desconfiança – Uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2016, p. 156.
[4] “Haveria uma outra forma de comportamento comum a instituições em momentos de transformação constitucional, que Mark Tushnet chama de constitutional hardball, ou jogo duro constitucional, em que prevalece uma postura de tudo ou nada, na qual a estratégia é utilizar as competências constitucionais com o objetivo de infligir o maior dano ao adversário para tomar a sua posição, ou, defensivamente, impedir ou reduzir a capacidade do adversário de desafiar quem está no poder”. (VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: Da transição democrática ou mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 41).
[5] Tribunal Superior Eleitoral. Pet nº. 18, Rel. Min Sérgio Banhos, julgado em 05/09/2019 em sessão administrativa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KnHPSGf71uI&t=643s
[6] “A destruição, afinal de contas, pode não ser a palavra mais indicada. Talvez fosse melhor substituí-la por transformação”. (SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Editado por George Allen e Unwin Ltd., traduzido por Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961, capítulo 14, página 201 do exemplar disponível no site da Universidade Federal do Rio de Janeiro em http://www.ie.ufrj.br/intranet/ie/userintranet/hpp/arquivos/100820171042_SchumpeterCapitalismoSocialismoeDemocracia.pdf.
[7] Idem, p. 117.
[8] BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In: A razão e o voto: diálogos constitucionais com Luís Roberto Barroso. VILHENA VIEIRA, Oscar; GLEZER, Rubens (Orgs.). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, pp. 25-77.
[9] BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: o Supremo, seus papéis e seus críticos. In: A razão e o voto: diálogos constitucionais com Luís Roberto Barroso. VILHENA VIEIRA, Oscar; GLEZER, Rubens (Orgs.). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017, p. 567.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] Idem.
[13] Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,populacao-desconfia-das-instituicoes-mostraestudo,20070108p26763. Acessado em: 11 de outubro de 2019.
[14] A então Procuradora-Geral da República Raquel Dodge opinou pelo direito do cidadão à se candidatar de forma avulsa.
[15] "A minha fé mais profunda é que a história é fluxo contínuo na direção do bem e do avanço civilizatório e mesmo quando a gente não percebe da superfície ela flui como um rio subterrâneo. Nosso papel é empurrar na direção certa". Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI300349,21048-Nosso+papel+e+empurrar+na+direcao+certa+afirma+Barroso+sobre+futuro
[16] TOOBIN, Jeffrey. Os Nove: por dentro do mundo secreto da Suprema Corte. Tradução de Paulo André Vieira Ramos Arantes. Cotradução e revisão técnica de Fábio Luis Furrier. São Paulo: Saraiva/IDP, 2018, capítulos 11 a 13.