Fonte: Infonet
Por Rodolfo Siqueira Pinto
A pandemia do coronavírus trouxe para o Brasil, além de diversos embates no campo médico, discussões de ordem econômica e política. Nesse contexto caótico, inseriu-se a demanda de parte da sociedade para que sejam adiadas as eleições municipais previstas para outubro, com o consequente redirecionamento das verbas que seriam utilizadas no processo eleitoral para o combate à crise provocada pela COVID-19.
Na medida que o pânico toma conta da sociedade, elevam-se também os discursos contra o uso de recursos em uma eleição. Há, dentre as bandeiras levantadas por alguns setores, propostas no sentido de se unificarem as eleições gerais e municipais, as quais deveriam ocorrer em 2022, fim do fundo especial de financiamento de campanha, apelidado de “fundão eleitoral”, adiamento por apenas alguns meses, mas mantendo-se as eleições municipais neste marcante ano, enfim, toda ordem de reclames que se intensifica em período de crise.
É aí que mora o perigo. Em tempos de forte turbulência, como o que estamos enfrentando, surge todo tipo de solução, desde aquela pouco pensada, até a mais oportunista. É preciso, então, enxergar além, ver o que está escrito nas entrelinhas, ou, nas letras miúdas, onde geralmente constam as informações mais importantes.
É justamente por isso que a profunda reflexão, parcimônia e temperamento devem nos acompanhar durante a crise. Há que se separar o joio do trigo, o oportuno do oportunista, o discurso caronista, que busca satisfazer interesses próprios, da efetiva defesa de políticas públicas capazes de eliminar ou arrefecer o problema. Até mesmo o remédio certo pode se tornar veneno se aplicado incorretamente, o que dizer, então, do remédio errado.
Eis que surge a primeira reflexão, é o momento de fazermos grandes mudanças no nosso sistema? De sacudirmos por completo a estrutura, quando nossa atenção está toda centrada nesse terrível inimigo invisível a olhos nus?
Notem que esses temas – unificação das eleições, fim dos fundos eleitoral e partidário, etc – sempre circularam pelo Congresso, mas não são aprovados (até o momento) mesmo após muita maturação e em condições normais de temperatura e pressão. Será, então, em meio a uma pandemia, a toque de caixa e repique de sino, que iremos fazer uma incursão em cláusulas pétreas, discutir direitos fundamentais, esticar mandatos?
Nesse cenário, precisamos ter atenção redobrada, principalmente em virtude das consequências não previstas. A propósito, vale ler o texto de Stephen J. Dubner e Steven D. Levitt publicado na The New York Times Magazine, que me foi indicado pelo amigo Victor Riccely, Ex-Procurador Regional Eleitoral do Amazonas, cujo título é Unintended Consequences.
Nele, os autores narram uma série de medidas tomadas com objetivos positivos, e que, no entanto, acabam tendo consequências não pensadas e, por vezes, indesejadas. Citam como exemplo o sistema de proteção adotado por um órgão americano para preservar o pica-pau de barba vermelha, espécie ameaçada. Com o objetivo de proteger o ciclo reprodutivo das aves, os americanos passaram a promover uma espécie de tombamento nas terras que continham árvores utilizadas pelos pica-paus para reprodução. O Resultado: sempre que os proprietários das terras verificavam a presença dos animais, cortavam imediatamente as árvores, impedindo assim, seu ciclo reprodutivo.
Feito o parêntese, precisamos saber: quais são as consequências de se unificar as eleições? Já paramos para pensar nelas? Afinal, ao concentrarmos um processo custoso, obrigatório e chato para muitos, numa única oportunidade, teríamos assegurados o direito de voto, a periodicidade e maior economia de recursos públicos.
Mas isso geraria um necessário distanciamento dos debates sobre as necessidades locais de cada municipalidade, que seriam ofuscadas por questões macro, políticas nacionais de economia, bandeiras partidárias mais bem delineadas, ou mesmo pelo dualismo tão intenso como o de hoje. É possível assumir que o contrário também seja verdadeiro. O certo é que, em alguma medida, certas questões serão esquecidas ou diminuídas em um pleito eleitoral único.
Como lembra Leonardo Bruno Pereira de Moraes¹, várias democracias presidencialistas (ou semipresidencialistas), separam as eleições municipais das gerais, como manifestam as élections municipales (França), as eleições autárquicas em Portugal e as mayoral elections nos Estados Unidos, com o objetivo de evitar o reducionismo eleitoral, isto é, uma menor participação da sociedade nos debates políticos, via de consequência, um menor empoderamento dos cidadãos.
Em uma ilustração que certa vez ouvi de um amigo: “se estou em um avião, quero saber quem são os pilotos, e, se possível, trocá-los”.
Por detrás desses dados, em análise comparada, revela-se a seguinte questão: No Brasil, é hora de nos distanciarmos do debate político ou nos aproximarmos cada vez mais?
Em outro ponto, o comumente chamado “fundão eleitoral” também é alvo de diversas propostas de modificação/supressão. Antipatizado desde sua origem, o financiamento público de campanhas surgiu como alternativa à proibição, pelo Supremo Tribunal Federal, acerca dos financiamentos eleitorais por pessoas jurídicas (o que pode ser visto como um exemplo das mencionadas consequências não pensadas), frente aos diversos casos de corrupção instrumentalizados por aquela forma de custeio de candidaturas.
Mas, então, como pensar na realização de um pleito eleitoral em um universo absolutamente atípico, em que são impedidas aglomerações, contatos próximos, etc?
Como disse o Min. Roberto Barroso, futuro Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, é de fato muito cedo para cravar como o mundo estará daqui a alguns meses, admitindo-se a hipótese de adiarmos, por um ou dois meses a realização do pleito (desde que, é claro, existam condições sanitárias para isso).
Ao fim, é importante ter em mente que o farol do debate deve ser sempre a saúde da população e que o adiamento das eleições (não falo em cancelamento) é medida excepcionalíssima, sob pena de rompermos o núcleo mínimo: o exercício do poder através do voto. Nesse contexto, nunca é demais lembrar que “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais.”(W. Churchill)
O presente texto, propositadamente em tom retórico, visa objetivamente estimular reflexões diante de tantos debates que estamos presenciando. Não é tempo nem lugar de enfrentarmos questões cujo pano de fundo não esteja bem claro. É hora de lutarmos por nós, pelos nossos, por todos.
Fiquem bem.
1 - https://www.conjur.com.br/2020-mar-27/leonardo-moraes-unificar-eleicoes-prejudicaria-democracia