Fonte: Conjur
O governo Jair Bolsonaro, o Congresso e o Judiciário promoveram em 2020 diversas medidas para aumentar o monitoramento e controle sobre a vida dos cidadãos. É o que aponta o relatório Retrospectiva Tecnoautoritarismo 2020, elaborado pela Associação Data Privacy Brasil, Centro de Análise da Liberdade e Autoritarismo (Laut) e Comissão de Proteção de Dados Pessoais da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil.
Segundo o documento, “a ideia de tecnoautoritarismo pode ser usada para explicar os processos de expansão do poder estatal, por meio do uso de tecnologias de comunicação da informação de ponta, com o objetivo de incrementar as capacidades de vigilância e controle sobre a população, mediante violação de direitos individuais ou ampliação importante dos riscos de violação a direitos fundamentais”.
É um fenômeno mundial. No Brasil, diz o relatório, o tecnoautoritarismo se manifesta especialmente por meio de práticas como a centralização de bases de dados pessoais e sua utilização para fins de segurança pública ou atividades de inteligência; contratações e parcerias com o setor privado para aumento da capacidade de vigilância e uso compartilhado de dados pessoais dos cidadãos brasileiros (como a implementação de tecnologias de reconhecimento facial); desvios de finalidade de bases de dados com potencial lesão à Lei Geral de Proteção de Dados; e pelo desenvolvimento de novos sistemas de informação e projetos de cibersegurança, com ou sem envolvimento direto das Forças Armadas.
Entre os atos tecnoautoritários da gestão Bolsonaro estão a edição do Decreto 10.279/2020, que permite que o governo compartilhe dados pessoais sigilosos com outros órgãos públicos sem a necessidade de autorização expressa dos cidadãos; a elaboração, pelo Ministério da Justiça, de dossiê que elencou 579 pessoas identificadas como antifascistas; a contratação de empresa para produzir relatório categorizando jornalistas e formadores de opinião entre “detratores”, “neutros” e “favoráveis”, e o adiamento da entrada em vigor da LGPD para maio de 2021 — após ação do Senado, a norma passou a valer em setembro.
O Congresso Nacional, por sua vez, agiu de forma tecnoautoritária ao aprovar a Lei 14.069/2020, que criou um cadastro nacional de pessoas condenadas pelo crime de estupro. O banco de dados deverá conter informações como características físicas, impressão digital, perfil genético, fotos dos locais de moradia e trabalho dos condenados. De acordo com o relatório, especialistas apontam riscos de ofensa a direitos fundamentais e incentivo ao “vigilantismo estatal”, e criticam a falta de especificações quanto ao tipo de condenação, sobre quanto tempo ficará no cadastro e se o fornecimento do material genético é obrigatório.
Já o Judiciário praticou atos tecnoautoritários quando o Superior Tribunal de Justiça entendeu não haver quebra de sigilo na troca de dados de servidores entre órgãos da administração pública (AREsp 1.068.263) e quando a Justiça de Alagoas determinou, por liminar, o bloqueio de contas do WhatsApp que teriam feito disparos em massa de montagem em vídeo contra o deputado federal João Henrique Caldas (PSB-AL).
O Ministério Público do Rio Grande do Norte também agiu de forma abusiva ao produzir um relatório sobre 'policiais antifascistas', sob a justificativa de suposta criação de grupo 'paramilitar' no estado, destaca o documento.
Fiscalização social
Rafael Zanatta, diretor do Data Privacy Brasil e coordenador do projeto, disse à ConJur que o relatório foi elaborado como um exercício de pesquisa jurídica sobre ações e reações de condutas governamentais que impliquem o uso de dados de forma problemática.
"O objetivo inicial foi mapear condutas abusivas e contramovimentos de contestação. Esse mapeamento nos permitiu iniciar uma pesquisa jurídica sobre estratégias de argumentação perante o Judiciário e o modo de reação das cortes na intersecção entre tecnologias e bases de dados. Esse será a próxima etapa do nosso projeto de pesquisa", explicou.
A presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ, Estela Aranha, ressaltou a importância de fiscalizar os atos estatais.
"É importante acompanharmos o uso de tecnologias de comunicação e de informação pelo poder estatal para evitar o risco que se crie ou incremente ferramentas de vigilância e controle sobre a população de forma a violar os direitos individuais ou mesmo trazendo riscos para os direitos fundamentais. Esse tipo de controle pela sociedade é central em um Estado Democrático de Direito, já que a assimetria de poder do cidadão em relação ao Estado é muito grande", afirma.