Fonte: Conjur
*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2022, lançado na última quinta-feira na TV ConJur. A publicação está disponível gratuitamente na versão online (clique aqui para ler) e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa (clique aqui para comprar).
Com três décadas de funcionamento e depois de vencer seu maior desafio – uma crise sanitária marcada, também, por ataques institucionais –, o Superior Tribunal de Justiça agora vive um momento definidor. É preciso garantir pessoas capacitadas e comprometidas com o trabalho na corte, investir em modernização tecnológica e assegurar os recursos financeiros para agilizar a prestação jurisdicional, consolidar o sistema de precedentes qualificados e prevenir litígios. Só assim vai promover a cidadania e fortalecer a própria imagem perante a sociedade.
Consolidar e uniformizar são os objetivos declarados no Plano Estratégico aprovado para o período entre 2021 e 2026. Não que o STJ não tenha outras preocupações. O mesmo documento, produzido a partir de um diagnóstico feito por ministros e servidores, traz uma necessária autocrítica que passa por imaturidade em governança (é preciso planos menos engessados), inadequação de processos de trabalho e problemas para a melhor ocupação das funções críticas. Há ainda ameaças: interferências políticas na gestão, restrições orçamentárias impostas pelo governo e o constante desrespeito à sua jurisprudência. Se a última palavra na interpretação do direito infraconstitucional não é respeitada, perde sua razão de ser.
Na análise dos próprios ministros, o STJ precisa deixar de atuar como terceira instância revisora para se tornar uma corte uniformizadora, ou seja, um tribunal que gera precedentes. E isso precisa acontecer já. Nesse sentido, a criação de filtros mais aprimorados para a tramitação de recursos nunca esteve tão próxima.
Em novembro de 2021, o Senado aprovou a PEC 10/2017, chamada de PEC da Relevância, segundo a qual a tramitação de recursos no STJ dependerá da comprovação de relevância da questão de Direito federal. Como teve alterações, o texto voltará à Câmara dos Deputados. Trata-se de uma vitória do tribunal, que investiu muitos esforços para sensibilizar o Poder Legislativo sobre a necessidade de racionalizar o processo no mesmo modelo que a Emenda Constitucional 45 fez com o Supremo Tribunal Federal, quando criou a repercussão geral, em 2004.
A Corte, agora, começa a lidar com a desconfiança que o assunto traz. Há setores da advocacia críticos da PEC da Relevância: dizem que institucionaliza a jurisprudência defensiva do STJ (a criação de entraves e requisitos para impedir o conhecimento de recursos) e faz dar as costas ao cidadão, especialmente os mais vulneráveis. O filtro prevê que tramitem ações penais, de improbidade administrativa, ações que possam gerar inelegibilidade, contrariedade à jurisprudência e causas com valor superior a 500 salários mínimos.
E o resto? “O STJ saberá identificar os temas federais sensíveis em todos os segmentos da sociedade”, garante o ministro Humberto Martins, presidente no biênio 2020-2022, que se encerra em agosto. Inclusive porque a PEC prevê que outras hipóteses de relevância possam ser acrescidas pelo legislador.
Enquanto isso, a máquina de formar precedentes continua a todo vapor. A Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas, da qual o ministro Paulo de Tarso Sanseverino sempre esteve à frente, nunca trabalhou tanto na sugestão de afetação de novos temas para recursos repetitivos. Em 2021, o tribunal levantou 128 controvérsias – assuntos sobre os quais poderá se debruçar para fixar tese de observância obrigatória pelas instâncias ordinárias –, número 4,5 vezes maior do que o registrado há cinco anos, em 2017.
Como apenas julgar não basta, a corte aumentou os esforços de divulgação e de contato com os tribunais de segundo grau e com o próprio Supremo Tribunal Federal. Em 2021, foram cinco eventos virtuais nos quais ministros palestraram para sensibilizar a importância desse sistema de precedentes. “Do mesmo modo que a gente investe aqui no repetitivo, eles têm que investir no IRDR”, diz a ministra Assusete Magalhães, que também integra a comissão, em referência ao incidente de resolução de demandas repetitivas. Até 20 de maio de 2022, o STJ somava 1.140 temas de repetitivos afetados, com 1.057 julgados e 83 pendentes.
Quando respeitada, a jurisprudência do STJ tem impacto sistêmico. A tese fixada pela Corte Especial que refutou a fixação pelos juízes de honorários de sucumbência pelo método da equidade quando os valores da causa forem muito altos acrescenta fator de risco ao processo e incentiva o litígio eficiente, principalmente por parte da Fazenda Pública, responsável pelo maior gargalo do Judiciário brasileiro: as execuções fiscais.
Na 2ª Seção, acórdãos de Direito Empresarial têm moldado a condução das recuperações judiciais, uma realidade bem brasileira após anos de crises político-econômico-sanitárias. O mesmo vale para os embates travados na saúde privada, em que o mais preocupante hoje é a taxatividade do rol de procedimentos, definido e atualizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em junho, o colegiado decidiu que ele é taxativo, mas pode ser superado em situações excepcionais. A a decisão dos ministros irá impactar o mercado de planos de saúde, responsável por quase 50 milhões de beneficiários.
Nenhuma posição jurisprudencial foi tão incisivamente firmada no STJ recentemente quanto as da 3ª Seção. Hoje, a 5ª e a 6ª Turmas trabalham num alinhamento responsável por impor mudanças estruturais na forma como as forças de segurança agem: ficou mais difícil invadir a casa de alguém, por exemplo, uma exigência condizente com o Estado Democrático de Direito e a Constituição Federal. Foram inúmeros precedentes. Recentemente, o STJ corrigiu os rumos do reconhecimento pessoal de suspeitos e da invasão de domicílio sem autorização judicial. Mexeu com a apuração e o combate aos dois crimes que mais geram recursos: roubo e tráfico de drogas. E, com isso, vem pagando um preço: a 3ª Seção é a que mais recebe e julga recursos, sendo que cada um de seus integrantes recebeu, em 2021, em média 78 mil Habeas Corpus, ou 21 por dia. A consequência, segundo o ministro Sebastião Reis Júnior, é um incremento das decisões monocráticas, “senão você não dá conta”. O ministro Rogerio Schietti reconhece que foram abertas portas muito grandes, porém necessárias para a revisão de casos. “Não há outra maneira de se mudar essa cultura que vinha causando de violações a direitos humanos”, reflete.
Atenta a esses precedentes, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro reviu sua forma de atuar e passou a figurar entre os dez maiores litigantes no STJ em 2021. O defensor público Pedro Carrielo explica que, de uns anos para cá, o órgão tem defensores diariamente no STJ para melhorar a litigância estratégica, apresentando memoriais, visitando ministros e fazendo sustentações orais, coisas que antes somente escritórios particulares faziam.
“Há uma cultura de serem divulgadas decisões para que ingressem com HCs e REsps e REs em caso de descumprimento reiterado pelo tribunal local”, conta. Ele cita como exemplo a “banalidade” que o TJ-RJ faz ao combinar o artigo 33 da Lei de Drogas com o artigo 35 (associação) sem exigir provas. A Defensoria também tem inserindo nas peças dados sociais de vulneráveis, por vezes produzidos pela própria Defensoria, mostrando o impacto das decisões.
Até que a relevância seja pré-requisito para o caso chegar ao STJ, simplesmente julgar mais não é interessante para o tribunal. Fomentar a resolução negociada de conflitos e adotar ações de desjudicialização estão entre os objetivos definidos no Plano Estratégico. Ambas as medidas ganharam destaque recentemente. Um único acordo de cooperação com a Advocacia-Geral da União evitou 468 mil recursos entre junho de 2020 e dezembro de 2021, segundo os cálculos da corte. O número de agravos em recursos especiais da AGU caiu 11%. Em 2022, o STJ estendeu o acordo à Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, que está entre os 10 maiores litigantes, e à Procuradoria-Geral do DF.
Muito importante, também, foi o acordo de cooperação assinado com o STF para racionalizar a atuação nas questões jurídicas repetitivas comuns, com ganhos em celeridade processual e segurança jurídica. Na prática, toda vez que um tema chega em recurso ao STJ e entra na mira do STF, o STJ decide esperar, para acabar com a chance de decisões conflitantes. As cortes prometem estar afinadas quanto a isso.
O manejo processual no STJ passa inevitavelmente pela construção de saídas tecnológicas. Por isso, as últimas administrações da corte tornaram a tecnologia um dos eixos estratégicos de atuação. Hoje, o tribunal pega carona no florescimento das soluções em inteligência artificial. A principal delas é o sistema Athos, cuja finalidade é identificar documentos que, apesar de escritos de forma diferente, tratam do mesmo assunto. É usado, principalmente, para a triagem de matérias repetitivas e para monitoramento e agrupamento de feitos, visando à identificação de temas com potencial aplicação da sistemática dos recursos repetitivos. Há previsão de a inteligência artificial ajudar, inclusive, na gestão de precatórios, que foi profundamente impactada em 2021 pela aprovação da Emenda Constitucional 113, que estabeleceu um novo regime de pagamentos.
Se a urgência da crise sanitária fez o Poder Judiciário reagir para se manter ativo, o arrefecimento das restrições agora permite que se dedique, efetivamente, a aprimorar seu funcionamento. A partir de abril de 2022, o tribunal voltou a operar em modo presencial, mas sem abrir mão totalmente do modelo híbrido, que é aprovado pela maioria dos ministros e por advogados. Mesmo os ministros que preferem contato pessoal com os servidores no gabinete entendem que é interessante permitir que advogados risquem os custos com passagens aéreas e pernoites para vindas a Brasília para audiências que são perfeitamente possíveis por videoconferência ou telefone.
“O tribunal hoje está plenamente adequado para o teletrabalho de servidores e para a realização de sessões de julgamento por videoconferência ou híbridas, com parte dos ministros, advogados e membros do Ministério Público podendo participar presencialmente ou por videoconferência”, comemora o ministro Humberto Martins. Em agosto, encerra-se seu biênio à frente do STJ, uma presidência participativa e agregadora, que deu voz também àqueles que se relacionam diariamente com o tribunal – outros poderes da República, a OAB, o MP, os órgãos de representação de classes e o cidadão brasileiro.
Pelos próximos dois anos, o STJ será comandado por uma ex-advogada de carreira destacada nos dois lados do balcão. Maria Thereza de Assis Moura deixará a Corregedoria Nacional de Justiça para se tornar a presidente da corte, com a missão de manter a evolução que ela própria testemunhou.
Em 2006, ano em que foi nomeada pelo então presidente Lula, o tribunal encerrou o ano com 251 mil processos recebidos e 222 mil julgados. Quinze anos depois, esses números mais ou menos dobraram: 412,5 mil recebidos e 560 mil julgados. Para ela, as diferenças impressionam, mas, ao mesmo tempo, dão a exata medida da dedicação dos ministros e servidores da casa, que souberam se reinventar a cada ano.
Em breve, o STJ terá dois novos integrantes, desembargadores de Tribunais Regionais Federais que serão escolhidos pelo presidente da República para suprir as aposentadorias dos ministros Napoleão Nunes Marques e Nefi Cordeiro. São quatro candidatos, escolhidos pelos ministros da corte: Messod Azulay Neto (TRF-2), Ney Bello (TRF-1), Paulo Sérgio Domingues (TRF-3) e Fernando Quadros da Silva (TRF-4).
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Anuário da Justiça Brasil 2022
ISSN: 2179981-4
Edição: 2022
Número de páginas: 288
Editora ConJur
Versão impressa: R$ 40, exclusivamente na Livraria ConJur (clique aqui)
Versão digital: acesse gratuitamente pelo site http://anuario.conjur.com.br e pelo app Anuário da Justiça
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