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Afinal, o que é Direito Sancionador?

segunda-feira, 01 de agosto de 2022
Postado por Gabriela Rollemberg Advocacia

Fonte: Abradep

Por Amanda Guimarães da Cunha

Muito tem se discutido acerca do aumento do poder punitivo nas mãos do Estado e o extravasamento de condutas sancionatórias para além dos crimes em espécie, numa irreversível expansão do direito penal, como bem nomeou Silva-Sanchéz [1].

Este assunto tem suscitado importantes e crescentes debates nos mais diversos ramos do direito, principalmente no campo administrativo e no que me é motivo particular de atenção, o eleitoral [2]. Entretanto, para que toda essa discussão não se torne vazia de sentido, ou que falar em Direito Sancionador não se torne apenas um elemento de retórica, como se tem visto, há que se definir como ponto de partida, afinal, o que é uma sanção e desde já estabelecer a premissa de que não é qualquer medida restritiva de direitos.

Ora, se olharmos para os mais diversos tipos de ilícitos previstos no ordenamento jurídico, inclusive os cíveis, todos acabam por se enquadrar num conceito amplo de ato típico, ilícito e culpável. Há quem defenda, perspectiva na qual me incluo, que não haveria diferenças ontológicas entre eles, sendo apenas critério do legislador, aliado a questões de tempo e espaço, defini-los como ilícitos cíveis, administrativos ou penais. Até mesmo porque, há não muito tempo, o poder de restringir direitos e/ou punir quaisquer condutas se concentrava no poder do soberano, não havendo distinção entre atividades administrativas e judiciais.

É com o advento do Estado Liberal, com a separação dos poderes e a regulamentação e limitação do poder punitivo estatal que surge a necessidade dessa diferenciação. A restrição de direitos e imposição de sanções por conta de condutas que atentem contra o ordenamento torna-se atividade típica do Poder Judiciário, sendo o direito penal o direito sancionador por excelência e, ainda, um caráter residual, embora agora atípico, poder sancionador da Administração.

Sem largar mão de que o que diferencia, em essência, um núcleo rígido afeto ao direito penal é a exclusividade para imposição da pena privativa de liberdade, há outras medidas que também possuem natureza sancionatória.

Nesse sentido, há uma série de classificações levantadas pela doutrina e tribunais para fazer essa aproximação, bem como para estabelecer a fronteira entre os mais diversos tipos de ilícitos.

Aqui valho-me do critério que considero apto a demarcar a fronteira que aqui se propõe entre medida restritiva e sanção: o critério finalístico. É a partir da finalidade da medida imposta que se pode enxergar com nitidez esta diferença. Valendo-me do feliz trocadilho do doutor Fernando Neisser, amigo e colega de Abradep [3], que também desbravou estas searas, é preciso inverter a pergunta clássica do “por que se pune”, perquirindo “para que se pune” [4].

Para ser considerada uma sanção, a restrição aplicada deve objetivar não só o restabelecimento do status quo anterior do bem jurídico violado pela conduta, o dano a ser reparado ou um ressarcimento. É uma medida que, para além de um caráter aflitivo inerente a qualquer medida restritiva de direito que gere um ônus, busca punir o infrator ou infratora, visando desestimular esse tipo de conduta dele e dos demais.

Sem adentrar nos debates relevantes acerca das diferentes teorias da pena, que envolvem seu caráter retributivo, preventivo, ressocializador e até mesmo político (teoria agnóstica [5], pela qual tenho particular preferência), o fato é que para ser sanção deve persistir a ideia inerente de causar mal a quem que atentou contra o ordenamento. Seja para fins de castigo, seja para fins educativos. Aqui a segunda premissa.

Nesse sentido, avançam os administrativistas ao estabelecer que a sanção administrativa, em oposição às medidas restritivas do poder de polícia, são um “um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, […] como consequência de uma conduta ilegal , tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar […]” [6]. A fronteira que distingue a sanção administrativa, cujo raciocínio defendo que se estende às demais sanções, está justamente na sua finalidade punitiva, repressiva e retributiva e somente nesta condição é que se está diante do exercício do poder punitivo estatal (direito sancionador) [7].

Nesse sentido, manifestou-se o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Roberto Barroso, no Mandado de Segurança 3.220

“[…] 13. Não obstante, já há algum tempo a doutrina tem conferido tratamento específico ao poder sancionador das entidades públicas, diferenciando-o do poder de polícia. Distinguem-se, assim, as limitações impostas com base no poder administrativo de polícia — o qual possui caráter de proteção preventiva de interesses públicos — das punições decorrentes do exercício de um autêntico poder administrativo sancionador, este sim de caráter repressivo. É dizer que o poder de polícia, nesse sentido estrito, não inclui a aplicação de sanções, atividade submetida, consoante compreensão mais recente, ao regramento jurídico próprio e específico do chamado direito administrativo sancionador. […]”. (MS 32201, relator (a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 21/03/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-173  DIVULG 04-08-2017  PUBLIC 07-08-2017)

Com este mesmo raciocínio, posicionou-se o ministro quando do debate do Tema nº 897 também pelo STF, quando defendeu que a imposição de ressarcimento ao erário prevista nos ilícitos de improbidade administrativa é imprescritível, justamente porque não se trata de sanção. Sobre esse aspecto, destaca-se

Penso que é uma ação provavelmente ordinária de ressarcimento, que tem como questão prejudicial o prévio assentamento de que ocorreu um ato de improbidade com todo o direito de defesa do réu também nesta hipótese e sem que nesta ação, como me parece intuitivo, se possa pretender aplicar qualquer sanção associada à improbidade, porque o ressarcimento ao erário não é uma sanção. O ressarcimento ao erário é a reposição da situação ao status quo ante. Devolver aquilo que alguém se apropriou indevidamente não é sanção. Sanção pode ser multa, sanção pode ser reclusão, sanção pode ser perda de direito, mas devolver o que não deveria ter tomado não considero que seja uma sanção.

Pegando o gancho levantado pelo ministro, é importante delimitar esse contorno acerca do status quo ante do bem jurídico violado. Aqui recorro às valiosas lições do criminalista alemão Claus Roxin, para quem bens jurídicos são as circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida livre, pacífica e segura, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou o funcionamento de um sistema estatal [8]. Os penais, aqueles que de forma subsidiária, na busca dessa finalidade, não podem ser protegidos por meio de outras medidas menos gravosas do direito civil, administrativo ou de medidas preventivas jurídicas [9], podendo ser dotados de generalidade, como uma administração de justiça eficiente e livre de corrupção [10].

Com isso, afasta-se desde já algumas defesas persistentes de outras searas, de que suas medidas restritivas não são sanções, pois visam restabelecer os bens jurídicos, individuais ou coletivos, tutelados pelas normas. O restabelecimento dos bens jurídicos não implica, em hipótese alguma, em despir a medida restritiva, se possuir também fim punitivo, do seu caráter sancionador. Terceira premissa.

O critério punitivo e a sanção como mecanismo de coerção a demarcar o direito sancionador também é o adotado pelos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos e, especialmente utilizado de forma reiterada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos [11]. Nesse sentido, o Caso Maldonado Ordoñez vs Guatemala

“Em virtude de sua natureza sancionatória, o direito disciplinar é uma espécie de direito punitivo que se aproxima das regras do direito penal” e, por isso, “as garantias substanciais e processuais do direito sancionatório mais geral — o direito penal — são aplicáveis mutatis mutandis ao direito disciplinar, […] em razão de ambos empregarem as sanções como principal mecanismo de coerção [12].

Dessa forma, a dimensão sancionatória estende-se à demais funções investidas à persecução de outras infrações, que, embora travestidas de outras etiquetas [13], igualmente decorrem do jus puniendi estatal, que não se resume, ao menos não no desenho constitucional e legal brasileiro, ao direito penal. Bem, nem tanto constitucional em alguns aspectos, mas é assunto para outro momento.

Nas definições aqui defendidas estariam incluídos, por exemplo:  o poder disciplinar da Administração Pública e demais penalidades aplicadas por esta, como nas infrações de trânsito; os ilícitos previstos na lei anticorrupção; as infrações contra a ordem econômica no âmbito do Cade; os processos administrativos levados a cabo pela CVM; os processos de impeachment; os processos ante os Tribunais de Contas; os ilícitos de improbidade administrativa, que ganharam recentemente o reconhecimento de regime sancionador pela Lei 14.230/21; os ilícitos eleitorais; dentre outros.

A partir desse reconhecimento, pode-se clamar pela aplicação das garantias materiais e processuais do devido processo legal, notadamente aproximando-se das regras penais, que devem ser asseguradas ao cidadão em face do arbítrio estatal em qualquer esfera sancionadora. Entretanto, para que isso seja feito, há que se cuidar, reitero, com os argumentos retóricos de que tudo que carrega caráter restritivo/aflitivo é sancionador, sob pena de esvaziamento da tentativa de evolução científica do tema. Ora, se tudo é sancionador, a recíproca também pode ser verdadeira.

A dogmática afeta a cada seara deve estabelecer os contornos próprios, associados invariavelmente à gravidade das sanções respectivas. Não obstante, todos possuem o mesmo ponto de partida: a natureza sancionatória de seus ilícitos, que perpassam invariavelmente as premissas brevemente aqui delineadas.

Afinal, respondendo o questionamento que me guiou nestas linhas, é afeto ao regime de direito sancionador toda norma jurídica que busca, além de restabelecer o status quo do bem jurídico violado, imprimir um mal a quem que atentou contra o ordenamento, seja para fins de castigo, educativos ou políticos.


[1]  SILVA-SANCHÉZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades post industriales. 2ª ed. Civitas Ediciones: Madrid, 2001, p. 153-156.

[2] CUNHA, Amanda Guimarães da. BASTOS JR, Luiz Magno Pinto. Direito eleitoral sancionador: o dever de imparcialidade da autoridade judicial. 1 ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021, 186p.

[3] Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político

[4] NEISSER, Fernando Gaspar. A responsabilidade subjetiva na improbidade administrativa: Um debate pela perspectiva penal. 2018. 313fls. Tese de Doutorado — Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, p. 180

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de derecho penal. 2a. Ed. Buenos Aires: Ediar, 207, 776p.

[6] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 106-107

[7] RAMÍREZ TORRADO, Maria Lourdes. La sanción administrativa y su diferencia com otras medidas que imponen cargas a los administrados em el contexto español. Revista de Derecho, Barranquilla (Colombia), nº 27, 2007, p. 272-286.

[8] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Claus Roxin: org. e trad. André Luis Callegari, Nereu José Giacomolli — 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. 65p., p. 17-18

[9] ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2 ed./ Claus Roxin: tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 33

[10] ROXIN, 2009, op, cit, p. 18-19

[11] Vide levantamento feito em nossa obra, CUNHA, BASTOS JR, op. cit, p. 118-142

[12] Tradução livre de: “[e]n virtud de su naturaleza sancionatoria, el derecho disciplinario es una especie de derecho punitivo que se acerca a las previsiones del derecho penal”, y por ello “las garantías sustanciales y procesales del derecho sancionatorio más general –el derecho penal — son aplicables mutatis mutandis al derecho disciplinario, […] en atención a que ambos emplean las sanciones como principal mecanismo de coerción” (Caso Maldonado Ordoñez vs Guatemala, §77).

[13] Silveira e Saad-Diniz (apud Neisser, op. cit, p. 156) usam esse termo para se referirem a um caso julgado pela Corte de Cassação Italiana, em que um procedimento administrativo teria sido adotado para esconder o caráter criminal da punição, visando contornar a proibição de responsabilidade penal da pessoa jurídica no país.

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