Fonte: Conjur
A evolução do pensamento jurídico evidenciou que o Superior Tribunal de Justiça tinha que se libertar da função que exercia desde a Constituição de 1988, na linha das cortes supremas de correção. Porém, destituída de um filtro capaz de lhe permitir selecionar questões para exercer sua função interpretativa, a corte brasileira foi obrigada a optar por uma trilha que se mostrou equivocada.
Imerso no caldo cultural criado por uma doutrina ainda completamente presa aos fundamentos das cortes de cassação e revisão europeias, o Superior Tribunal de Justiça, especialmente diante de algumas regras do Código de Processo Civil de 2015, não teve melhor alternativa do que associar a sua função a de resolver demandas repetitivas e conviver com a confusão entre precedente e tese.
Por detrás disso, encontra-se presente, de um lado, o descuido com os verdadeiros objetivos de uma Corte de Precedentes e, de outro, a mítica ideia de que a divergência interpretativa é uma inimiga da Corte Suprema. Pouco importa afirmar que a corte deve tutelar a unidade do direito quando não há clareza a respeito do que se está dizendo ou pretendendo. Se o que se deseja alcançar é a unidade do direito interpretado, a função da corte, sempre interligada com a dos juízes e tribunais, apenas pode ser a de esclarecer e desenvolver o direito. Consequentemente, não há como imaginar que o Superior Tribunal de Justiça possa atuar como se a divergência interpretativa fosse um mal a ser eliminado, nem muito menos como se precedente fosse sinônimo de enunciado abstrato que impede os juízes de decidir.
Para exercer a sua função, a Corte Suprema não pode ignorar a importância e o significado da divergência jurisprudencial. A corte não pode, diante de um simples anúncio (um recurso) de divergência, decidir para impor a uniformidade das decisões judiciais. O Superior Tribunal de Justiça não deve se pronunciar antes de os juízes e tribunais terem dialogado em busca da melhor solução interpretativa. Quando esses não chegarem em um consenso, terão sido apresentadas as particularidades e as razões que permitirão ver as realidades dos vários cantos do país. Não há como esquecer que, mesmo em uma Corte Suprema infraconstitucional, o espaço interpretativo também é tanto mais frutífero quanto mais aberto à maioria dos intérpretes.
Isso significa que o Superior Tribunal de Justiça sempre terá que conviver com a divergência, seja porque essa constitui estímulo para o exercício da sua função, seja porque representa base de grande importância para tanto. Para além disso, não é possível imaginar que uma Corte Suprema pode editar enunciados abstratos para eliminar as dúvidas dos juízes. Isso não é possível porque a dúvida interpretativa se estabelece diante das particularidades dos vários casos concretos. A interpretação é obviamente condicionada pela realidade.
A atribuição ao Superior Tribunal de Justiça da função de resolver recursos repetitivos e firmar teses deu origem ao que se apelidou de "precedentes filhotes", voltados a dissipar as dúvidas criadas pelas próprias teses. Por detrás desses precedentes estão aqueles que, na doutrina mais sofisticada do common law, são considerados "precedentes ingênuos", ou seja, os que, por se voltarem à acomodação de questões idênticas, aplicam-se ou não, como se o juiz estivesse diante de uma hipótese de incidência. Quando isso ocorre há o que Joseph Raz chama de visão inocente (the tame view) do distinguishing, uma vez que o juiz fica privado de qualquer espaço para raciocinar diante de novos casos [1].
Quando a corte não decide para dar aos juízes e tribunais poder para raciocinar diante de outros casos obviamente não há colaboração para a aplicação do direito. Como é evidente, a impossibilidade de usar adequadamente o distinguishing contradiz a razão de ser dos precedentes e desautoriza a própria função de uma Corte Suprema, acabando por demonstrar que aquilo que se supunha precedente era outra coisa — ou seja, uma tese.
Uma corte de teses impõe soluções puramente normativas para a solução dos casos, sem qualquer preocupação com o espaço de poder dos juízes e tribunais, exercendo, assim, uma função burocrática e autoritária [2]. Portanto, a arguição de relevância é imprescindível para o Superior Tribunal de Justiça assumir a sua verdadeira função.
Diante da arguição de relevância, a solução da questão federal deve estar contextualizada ou inserida dentro de um quadro fático (que poderá ser mais ou menos complexo), indispensável para dar aos juízes e tribunais a possibilidade de raciocinar diante de casos semelhantes. Afinal, a função da Corte Suprema é delimitar os fundamentos para que os juízes possam decidir, sendo os precedentes tanto mais legítimos quanto mais universalizáveis, ou seja, capazes de ser aplicados em casos caracterizados por circunstâncias fáticas diferentes que não sejam incompatíveis com as razões de decidir (ratio decidendi).
Uma Corte Suprema deve se preocupar em decidir as questões essenciais ao esclarecimento e ao desenvolvimento de um instituto jurídico, sem se preocupar com aquelas cuja elucidação constitui uma mera "consequência". Decidir a "questão essencial", ou a base de sustentação de um instituto, é o que basta para que os juízes e os tribunais raciocinem para resolver as "questões consequentes".
Não perceber isso não só pode levar a Corte a decidir as questões consequentes antes das essenciais, como transformar a solução das questões consequentes em "precedentes filhotes", dando origem a uma corte que se assemelharia ao código de Frederico — o Grande —, instituído para ser à prova de juízes.
Com a arguição de relevância, as questões idênticas ou repetitivas — que dão origem a teses ou a precedentes ingênuos — foram devolvidas aos tribunais, local que lhes pertence. Ora, se a função de resolver os casos concretos é dos juízes e tribunais, cabe-lhes decidir as questões prejudiciais que se repetem diante dos casos que lhes são submetidos. O dever de solucionar tais questões, sejam repetidas ou não, é certamente dos tribunais e não do Superior Tribunal de Justiça. Esse apenas poderá atuar quando a questão repetitiva solucionada no tribunal mediante IRDR, especialmente diante da divergência com decisões tomadas por outros tribunais do país, constituir questão federal relevante [3].
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] Joseph Raz, The autority of law – Essays on law and morality, Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 191 e ss.
[2] Michele Taruffo, Un vertice giudiziario astratto, Il Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, nº 22, 2018, p. 87-102.
[3] Luiz Guilherme Marinoni, Arguição de Relevância, São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, no prelo (a ser publicado em janeiro de 2023).