Fonte: Conjur
Continuação da parte 1.
A coluna passada abordou os fatos envolvidos na decisão tomada pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no REsp 1.971.316[1], de que "em ação indenizatória que se origina de alegado ilícito concorrencial, uma vez verificada inexistência de decisão do Cade sobre a formação de cartel, o prazo prescricional é de três anos — artigo 206, § 3º, V, CC/2002 — e o termo inicial para sua contagem é a data da ciência do fato danoso".[2] Antes de problematizá-la, é necessário endereçar o panorama legislativo.
Até então, as regras do Código Civil (CC) e do Código de Defesa do Consumidor (CDC) eram aplicadas, subsidiariamente, para tratar da prescrição nas ações reparatórias de dano concorrencial (ARDCs), em especial o artigo 206, §3º, inciso V, e o artigo 189, do CC, para as relações cíveis, e o artigo 27, do CDC, para as relações consumeristas.
Importante ressalvar que, quanto ao termo inicial da prescrição, há duas principais teorias: a teoria objetiva (ou teoria da violação), pela qual "ocorrida a violação, surge a pretensão e, independentemente de outros fatores subjetivos, pode ela ser atingida pela prescrição", e a teoria subjetiva (ou teoria da realização), que enxerga "a prescrição como sanção à inércia do autor, [pressupondo] que este deva estar ciente da violação de seu direito e que também identifique a figura do causador da lesão". O artigo 189 do CC é exemplo da primeira; o artigo 27 do CDC, da segunda[3].
Mas mesmo a objetividade estatuída pelo artigo 189 já vinha sendo elastecida em certos contextos e situações de aparente injustiça: a jurisprudência, "segundo critério de razoabilidade, tem se afastado dos critérios objetivos para aplicar a teoria subjetiva notadamente quando a lesão tem feições extracontratuais específicas, como no caso de danos ambientais, danos que se manifestam ao longo do tempo (...)"[4].
O mesmo ocorreu no Direito Antitruste. Diante das suas particularidades, notadamente porque "é possível que o prejudicado não saiba quando foi cometida a violação ao direito, nem quem cometeu o ilícito, bem como só venha a ter conhecimento da própria existência do ilícito cometido anos depois"[5] — em especial em se tratando de práticas espúrias e sigilosas, como o cartel[6] —, desenvolveu-se o entendimento de que nas ações ajuizadas na esteira de uma decisão condenatória da autoridade concorrencial[7], a prescrição fluiria da ciência da lesão e de sua extensão, presumidamente ocorrida com a publicação da decisão final do Cade[8] (teoria subjetiva), e não exatamente da violação do direito (teoria objetiva).
Com a recentíssima inclusão do artigo 46-A à Lei 12.529/2011 (LDC) pela Lei 14.470/2022, a LDC passou a contar com regime jurídico próprio para a prescrição nas ARDCs: prazo prescricional de cinco anos; e ciência do ilícito — presumida com o julgamento final do Cade — como seu termo inicial[9]. A Lei, todavia, não estava vigente quando da decisão pelo STJ.
Finalizada essa breve digressão[10], indaga-se: a conclusão adotada no julgamento do REsp 1.971.316 foi correta?
Relembre-se: a Corte consignou estar prescrita a pretensão reparatória de produtor rural em face de empresa supostamente envolvida no "cartel do suco de laranja" com base nos seguintes fundamentos: i) quanto ao prazo prescricional aplicável, consignou que seria o trienal, das pretensões reparatórias por ilícito extracontratual, posto que a demanda não seria baseada em descumprimento contratual; ii) no que concerne ao dies a quo, assinalou que a contagem da prescrição começaria com a ciência da vítima em relação à conduta que afirma ser ilícita (coincidente com a celebração dos contratos), tendo em conta a inexistência de decisão condenatória do Cade reconhecendo o cartel e a ausência de confissão da empresa no TCC[11]. O Tribunal concluiu, então, que o produtor rural teria ciência do ilícito desde a celebração dos contratos, em 2001 e 2003, não podendo mais pleitear reparação por supostos preços cartelizados.
Sobre o primeiro ponto, a decisão andou em linha com a jurisprudência e a doutrina que vinha se consolidando em torno do posicionamento dogmático das ARDCs no domínio da responsabilidade civil extracontratual (ou aquiliana)[12]. Acertou, assim, ao aplicar o prazo trienal do inciso V, §3º, artigo 206, CC, por estar em voga relação cível, não consumerista.
Já com relação ao segundo ponto — dies a quo da prescrição — a decisão parece não ter sido a mais adequada.
A decisão transparece que se as empresas investigadas no "cartel do suco de laranja" houvessem sido condenadas pelo Cade, a prescrição teria fluído somente a partir da decisão condenatória. Como isso não ocorreu — e a decisão foi extintiva em razão do cumprimento do TCC —, o Tribunal entendeu que esse entendimento não se aplicaria.
Com efeito, é impossível às vítimas anteciparem o resultado de um inquérito ou processo administrativo. Dessa forma, se a teoria subjetiva do dies a quo considera a prescrição como uma sanção à inércia da parte — conforme ressaltado —, não se pode considerar inerte a parte que aguarda o desfecho no Cade antes de exercer sua pretensão. E esse entendimento é válido tanto para um caso findo em condenação como em outro resultado — como a extinção pelo cumprimento do TCC. A previsão expressa do caput do artigo 46-A, de que a prescrição não corre durante o curso do inquérito ou do processo administrativo, vem para corroborar essa leitura[13].
Pode-se, é verdade, discordar da premissa de que nas ARDCs a prescrição teria como termo inicial a ciência do lesado — e aqui a discussão seria outra —, mas uma vez adotado posicionamento em linha com a teoria subjetiva, não é coerente distinguir o dies a quo da prescrição em razão da natureza da decisão extintiva proferida pelo Cade, seja ela condenatória ou extintiva pelo cumprimento de TCC.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II—Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1]STJ, REsp 1.971.316, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 25/10/2022.
[2]STJ, Informativo n. 756, de 14 de novembro de 2022.
[3]CORREIA, Atalá. Prescrição: entre passado e futuro. São Paulo: Almedina, 2021, ebook.
[4]CORREIA, Atalá. Prescrição... cit.
[5]SANTOS, Marcelo Rivera. Ação privada de ressarcimento civil derivada de conduta anticoncorrencial: do termo inicial da prescrição. Revista de Defesa da Concorrência, v. 3, n. 1, p. 133-160, mai.-2015, p. 12.
[6]MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel: responsabilidade civil concorrencial. São Paulo: RT, 2021. p. 201.
[7] São as chamadas ações follow on (ou de seguimento), em oposições às chamadas ações stand alone, que buscam, por si só, e independentemente do inquérito ou processo administrativo desenvolvido perante a autoridade concorrencial, o reconhecimento da infração da ordem econômica e as reparações daí a avindas (CARAVACA, Alfonso-Luis Calvo; SUDEROW, Julia. El efecto vinculante de las resoluciones de las autoridades nacionales de competência em la aplicación del derecho antitruste. Cadernos de Derecho Transnacional, v. 7, n. 2, p. 114-157, out. 2015).
[8]Ilustrativos desse entendimento: “A prescrição trienal não tem início antes do término do processo administrativo perante o CADE ou o trânsito em julgado da ação penal instaurada contra os administradores ou empregados responsáveis para a apuração dos fatos, em conformidade com o art. 200 do Código Civil, pois somente a certeza dos fatos obriga o prejudicado a agir em juízo, não antes, para evitar-se ações infundadas – (...)” (TJSP, Apelação Cível 1076386-55.2017.8.26.0100, Rel. Des. Alcides Leopoldo, 4ª Câmara de Direito Privado, j. 10/02/2022, Dje 11/02/2022); “Termo inicial do prazo prescricional que corresponde à data da decisão final do Cade - princípio da "actio nata" – ação não prescrita – extinção do processo não cabível” (TJSP, Agravo de Instrumento 2103903-90.2018.8.26.0000, Rel. Des. Luiz Eurico, 33ª Câmara de Direito Privado, j. 18/02/2019; Dje 21/02/2019). A propósito: MAGGI, Bruno Oliveira. Cartel... cit.
[9]“Art. 46-A. Quando a ação de indenização por perdas e danos originar-se do direito previsto no art. 47 desta Lei, não correrá a prescrição durante o curso do inquérito ou do processo administrativo no âmbito do Cade; § 1º Prescreve em 5 (cinco) anos a pretensão à reparação pelos danos causados pelas infrações à ordem econômica previstas no art. 36 desta Lei, iniciando-se sua contagem a partir da ciência inequívoca do ilícito;§ 2º Considera-se ocorrida a ciência inequívoca do ilícito por ocasião da publicação do julgamento final do processo administrativo pelo Cade.”
[10]Evidentemente, a questão precisa ser mais aprofundada, especialmente diante da nova Lei, o que foge do escopo deste texto.
[11]STJ, Informativo n. 756, de 14 de novembro de 2022.
[12]SANTOS, Marcelo Rivera. Ação privada de ressarcimento civil derivada de conduta anticoncorrencial... cit.
[13]Mas a norma pode ser questionada em termos lógicos: se a ciência inequívoca estipulada pelo §1º ocorre com a publicação da decisão final do Cade (§2º), de que adianta deduzir a não-fluência do prazo prescricional se ele ainda nem começou? (GRINBERG, Mauro; CORDÃO, Catarina Lobo. A prescrição da ação de recuperação de dano concorrencial. Jota, 18/11/2018).