Fonte: Conjur
Por João Victor Bittencourt
Com a posse recente de um novo presidente da República, no Brasil, mais do que nunca, mostra-se necessário tracejar o histórico da Lei da Ficha Limpa e o clamor popular pela higidez do processo eleitoral.
Aprioristicamente, cumpre salientar que a Constituição Federal de 1988 (CF/88) está no topo da pirâmide kelseniana, constituindo a principal fonte do direito brasileiro no que toca à garantia de direitos e responsabilidades dos cidadãos.
Em primeiro lugar, dentre os direitos fundamentais por ela garantidos, encontra-se contemplado o Princípio da Presunção de Inocência, segundo o qual é impossível que um réu em procedimento penal seja considerado culpado antes do trânsito em julgado, ou seja, antes de ser considerado culpado pelo suposto crime cometido sem que, contra ele, exista decisão judicial da qual não mais caiba recurso.
Ainda, a Carta Magna, no título concernente aos direitos fundamentais, no que tange aos direitos políticos, assegura a participação dos cidadãos brasileiros no processo de escolha dos representantes políticos, isto é, de a própria população eleger os candidatos que julgam ser aptos à carreira pública, de forma a efetivar a democracia como sistema político de nossa nação, fixando, ademais, critérios positivos e negativos que devem ser atendidos por aqueles que almejam alcançar o posto de representante do povo.
Sob esse prisma de análise, vale destacar que há uma onda crescente do anseio popular por representantes com conduta ética, enquanto ocupantes de cargos político-eletivo, que se incrementou, principalmente, com a criação do Movimento Contra Corrupção Eleitoral (MCCE), demonstrando que os brasileiros têm conhecimento, e não mais irão admitir os atos de "amizade" entre os políticos, como as trocas de favores, de votos por emendas parlamentares, sempre com o famoso "jeitinho brasileiro", típicos do já enraizado sistema eleitoral brasileiro, o presidencialismo de coalisão.
O ápice da insatisfação com o sistema representativo brasileiro resultou em projeto de lei de iniciativa popular, que após passar pelo Congresso Nacional, deu vida à Lei Complementar 135/2010.
Neste artigo, portanto, mediante a prévia observância das garantias contempladas na Constituição Federal de 1988, tratar-se-á de um tema específico concernente à importância da Lei Complementar (LC) nº 135/2010, popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa.
Aborda-se, in casu, a importância da Lei da Ficha Limpa, que foi oriunda de um projeto de iniciativa popular, consagrando a democracia e a necessidade de, cada vez mais, prezar-se pela higidez do processo eleitoral.
Antes da Lei da Ficha Limpa, havia a LC nº 64/90, que previa, entre outras regras, prazo de três anos de inelegibilidade em razão de condenação penal contados após o cumprimento da pena.
Ocorre que, prezando mais uma vez pela democracia em seu sentido mais amplo, em 2010, a Lei da Ficha Limpa aumentou esse prazo de três anos para oito anos e, no mais, determinou ainda que a inelegibilidade, em alguns casos, depende apenas da de decisão proferida por órgão judicial colegiado, ainda que caibam recursos, ou seja, antes do trânsito em julgado (artigo 2°, inciso I, alínea e, da Lei da Ficha Limpa).
A possibilidade de aplicação de referida pena antes do trânsito em julgado violaria o princípio da presunção de inocência (artigo 5°, inciso LVII, da CF/88), mas o STF, valendo-se da proporcionalidade e razoabilidade entendeu que entre esse princípio e o artigo 14, parágrafo 9°, da CF/88, deve prevalecer esse último dispositivo, que assim prescreve:
"Artigo 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
Parágrafo 9°. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta".
Definiu-se, portanto, que é constitucional, até mesmo, a criação de outras hipóteses de inelegibilidade pela Lei da Ficha Limpa, além da dispensa do trânsito em julgado de sentença condenatória que implique a inelegibilidade por oito anos.
Observa-se, dessa forma, que essa lei foi reflexo da situação social que vivenciava o país desde 2010, tendo em vista que essa situação de descrença nas instituições democráticas ainda perdura no nosso ordenamento jurídico, mas é inegável que essa lei, oriunda de um projeto de lei de iniciativa popular, ratifica como os cidadãos brasileiros estavam esgotados com as previsões normativas até então existentes.
Havia, no contexto de surgimento da Lei da Ficha Limpa uma revolta em relação a notícias de renúncia de um mandato político para não ser cassado e, dessa forma, poder concorrer às próximas eleições ou, inclusive, a aplicação do prazo de inelegibilidade por três anos, o que, na circunstância concreta, não culminava na inelegibilidade do candidato, uma vez que o mandato político é de quatro anos.
Destarte, verifica-se que o clamor popular, em 2010, decorreu na retomada da legitimidade popular no cenário da representação política brasileira.
Sabe-se da importância de exercer o direito ao voto, mas, muito mais que isso, saber em quem se está votando, analisando a vida pregressa do candidato, o que constitui uma mudança de patamar no direito eleitoral brasileiro com o surgimento da Lei da Ficha Limpa.
Afirmar, fundamentadamente, a constitucionalidade do prazo de inelegibilidade por oito anos independentemente do trânsito em julgado da sentença condenatória, a partir do estudo da ADC nº 29/DF foi o entendimento proferido pelo STF.
No mais, analisando essa hipótese de inelegibilidade criada pela Lei da Ficha Limpa, mediante uma análise da ADC nº 29/DF, houve a exposição do entendimento do STF no sentido que é constitucional a lei da ficha limpa no que faz referência à aplicação da pena de inelegibilidade por oito anos independentemente do trânsito em julgado da sentença condenatória, tendo em vista que o princípio da presunção de inocência não corresponde a uma garantia constitucional absoluta.
Esse entendimento do STF mostra-se em congruência com a legitimidade das eleições, a autenticidade da soberania popular e, por obséquio, assegura o processo de concretização do Estado democrático de Direito.
Sob o prisma do direito eleitoral, levando-se em conta as inelegibilidades, com respaldo no Princípio da Concordância Prática, deve-se fazer um sopesamento de valores entre os princípios que protegem o interesse da coletividade e aqueles que protegem o interesse privado, devendo prevalecer nesse ramo jurídico os princípios que protegem o interesse público e a população como um todo no exercício de sua cidadania.
Ademais, assevera-se ainda que aquele cidadão que opta por ser político não tem as mesmas obrigações que um cidadão comum, devendo, acima de tudo, zelar pela probidade e pelo respeito às garantias individuais do povo.
A pretensão da Lei da Ficha Limpa foi a de estabelecer um novo paradigma ético no trato com a vida pública, afastando uma cultura maléfica de reverberação da coisa pública a fim de implantar o que se designa pelo melhor exercício do direito ao voto de forma a atentar-se à vida pregressa dos candidatos.
Desta forma, com um placar de sete votos contra quatro, o pleno do Supremo Tribunal Federal consolidou a tese interpretativa de que a Lei da Ficha Limpa, ao alterar o texto da Lei Complementar 64/1990, não representa qualquer incompatibilidade com a CF/88, especificamente em relação ao artigo 2º, inciso I, alínea e, do novel diploma legal, e o princípio da presunção de inocência, sendo constitucional a execução de decisão proferida por órgão colegiado quanto à inabilitação para o exercício de qualquer mandato por oito anos antes do trânsito em julgado.
Cumpre salientar ainda que, recentemente, esteve em voga a questão do início desse prazo de oito anos de inabilitação para o exercício da função pública e ficou decidido que se mantém o teor da Lei da Ficha Limpa, computando-se o prazo de oito anos de inelegibilidade após o cumprimento da condenação.
Por conseguinte, nota-se que, no âmbito eleitoral brasileiro, deve prevalecer sempre uma interpretação que coloque a salvo o Estado Democrático de Direito e a melhor seleção de candidatos com base em princípios éticos e de probidade.