Fonte: Globo
Um grupo de deputados de diversos partidos políticos quer postergar o prazo para que as siglas sejam punidas por descumprirem a cota mínima de recursos para candidaturas de mulheres e negros nas eleições. Ou seja, na prática, trabalham para que a anistia também valha para as eleições do ano passado.
Em abril do ano de 2022, o Congresso promulgou uma emenda constitucional para liberar de punição as siglas que não cumpriram a exigência em eleições anteriores. A redação da emenda é clara: a anistia valeria apenas para pleitos anteriores à promulgação – ou seja, até as eleições de 2020.
Agora, os parlamentares protocolaram uma nova proposta de emenda à Constituição (PEC). Desta vez, querem que a anistia também tenha validade para o descumprimento de cotas nas eleições de 2022.
O texto foi apresentado na última quarta-feira (22) e conta com 184 assinaturas. Entre os signatários, estão parlamentares de diversos espectros políticos e líderes de oito siglas na Câmara – PL, Republicanos, PSDB, PSB, PDT, PSD, Avante e Podemos –, além dos líderes do governo, José Guimarães (PT-CE), e da oposição, Carlos Jordy (PL-RJ).
Segundo a proposta, "não serão aplicadas sanções de qualquer natureza, inclusive de devolução e recolhimento de valores, multa ou suspensão", dos fundos eleitoral e partidário, aos partidos que não destinaram os valores mínimos para mulheres e negros nas eleições de 2022 e anteriores.
Argumentos
Primeiro signatário da proposta, o deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) justificou que a alteração é necessária para esclarecer um "entendimento divergente" que poderia surgir com a emenda promulgada no ano passado.
Para ele, como em 2022 era ano eleitoral, deveria prevalecer o princípio da anualidade, ou seja, que qualquer mudança nas regras eleitorais precisa ser aprovada um ano antes da eleição, para que entre em vigor.
Magalhães argumenta que muitas legendas tiveram dificuldade em se ajustar às regras.
"Não se sabia ao certo, em meio ao processo eleitoral, se a contagem da regra teria sua abrangência federal ou se deveria ser cumprida pelos partidos em âmbito nacional. Muitos partidos, agindo de boa-fé e com o maior esforço para que as regras fossem cumpridas, se viram inadequados após o período eleitoral, em virtude de muitas alterações de registro de candidatura em todo o país", disse na justificativa da proposta.
A deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) diz que "infelizmente, tem grande chance de [a proposta] prosperar".
"A anistia dos partidos que não cumpriram as cotas dificulta o combate à desigualdade de gênero no Parlamento", disse. "A determinação do uso dos 30% do fundo eleitoral para candidaturas femininas é muito recente e significou um aumento de mulheres na política, embora estejamos longe do ideal. Esta PEC é mais um retrocesso."
A advogada especialista em direito eleitoral e cofundadora da entidade "Quero você Eleita" Gabriela Rollemberg diz que a proposta subverte o conceito de anualidade eleitoral que, se fosse para ser considerado, seria justamente o contrário.
"Se fosse para a anistia valer para 2022, ela teria que ser aprovada com um ano antes", disse a advogada. "A emenda constitucional aprovada era muito clara em relação ao período que a anistia valeria, seria até a data da promulgação, em abril de 2022."
A especialista diz, ainda, que uma eventual prorrogação do prazo para os partidos seria prejudicial para a participação das mulheres e negros na política.
"Eles [partidos] não querem que se aplique a regra nunca, essa é a verdade. E não dá mais, fomos tolerantes até agora e não tem mais como."
De 2021 até agora, o grupo de trabalho Violência Política de Gênero da Vice-Procuradoria Geral Eleitoral, vinculado ao Ministério Público Federal (MPF), contabilizou 112 casos de violência política de gênero.
Desses casos, 30 são situações em que as mulheres relataram violência política econômica e estrutural – em maioria, denúncias pela divisão desigual de recursos partidários entre homens e mulheres durante a campanha eleitoral em 2022.
Como funcionam as cotas
No caso das regras para as mulheres, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu, em 2018, que os partidos devem reservar, pelo menos, 30% dos fundos eleitoral e partidário para as candidatas – mesma proporção mínima de candidatas mulheres que as siglas devem inscrever em cada eleição.
Na mesma ocasião, a Corte derrubou um teto, estabelecido pelo Congresso em 2015, de 15% nos recursos para as campanhas de mulheres.
Além de anistiar os partidos, a emenda promulgada no ano passado inseriu na Constituição o entendimento do STF de que os partidos devem destinar, ao menos, 30% dos fundos para as campanhas eleitorais femininas, respeitando a proporção de candidatas. A medida também vale para propaganda em rádio e TV.
Em 2020, o STF determinou ainda que, já a partir das eleições de 2020, deveria valer a reserva de verba e de tempo de propaganda de forma proporcional entre candidatos brancos e negros.
Recursos de empresas
Se aprovada, a PEC também permitiria que os partidos arrecadassem recursos de empresas para quitar dívidas com fornecedores contraídas até agosto de 2015. Naquele ano, o STF declarou inconstitucional as doações de empresas para campanhas eleitorais.
Assinaturas
Dois deputados que constavam na lista de signatários da PEC e foram procurados pela reportagem disseram não concordar com a proposta e que retirariam seus nomes.
O deputado Aluísio Mendes (Republicanos-MA) disse que "assinou sem saber o teor inteiro da PEC" e que não concorda em postergar a anistia.
O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) também informou que sua assinatura foi incluída na proposta de forma equivocada e já apresentou requerimento para retirá-la do sistema.
"Atuarei contra essa PEC, votando contra ela em todas as instâncias que puder", disse Alencar. "Como a maioria dos partidos deve ter tido problemas em cumprir a cota de recursos em 2022, o 'jeitinho' pode avançar."