O Projeto de Lei Complementar (PLP) 192/2023, caso seja sancionado na sua versão atual, abrirá margem para uma revisão da inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), segundo advogados especializados em Direito Eleitoral ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Essa avaliação, no entanto, não é unânime.
Entre outras mudanças na legislação eleitoral, o texto prevê que a alínea “d” do artigo 1º da Lei Complementar 64/1.990, que estabelece a inelegibilidade de pessoas condenadas por abuso de poder político — caso do ex-presidente —, passará a exigir a ocorrência de “comportamentos graves aptos a implicar a cassação”. É aí que mora a controvérsia, uma vez que Bolsonaro não foi cassado.
A proposta foi aprovada na Câmara no ano passado e ganhou recentemente urgência para tramitar no Plenário do Senado.
Bolsonaro elegível?
A redação atual da LC 64/90 reconhece como inelegível, na alínea sujeita a mudança, quem tenha contra si uma “representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados” e nos oito anos seguintes.
Com a sanção do PLP, no entanto, a mesma alínea passaria a prever como inelegíveis as pessoas condenadas “por comportamentos graves aptos a implicar a cassação de registros, de diplomas ou de mandatos, pela prática de abuso do poder econômico ou político”.
Na decisão do Tribunal Superior Eleitoral que tornou Bolsonaro inelegível, o ministro Benedito Gonçalves, acompanhado por unanimidade pelos pares, destacou que não seria aplicada a “cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita”.
Para Márlon Reis, um dos autores da Lei da Ficha Limpa, a redação atual do PLP 192/23 abrirá uma margem clara para Bolsonaro solicitar a reconquista da elegibilidade, uma vez que o ex-presidente não foi cassado.
“No julgamento que o afetou, o acórdão focou exclusivamente na configuração do abuso de poder, uma vez que não se tratava de uma ação capaz de gerar a cassação de diplomas ou mandatos. Com a nova redação, o argumento de que a inelegibilidade só deve incidir quando houver efetiva cassação poderia ser explorado pela defesa, visando a reverter a situação de inelegibilidade”, afirmou Reis, para quem a derrota eleitoral não pode servir como anistia.
“Nesse ponto, acredito que a redação não está adequada ao processo constitucional eleitoral, considerando o sistema eleitoral em si, que não pode ser analisado em tiras, mas de uma forma sistêmica”, comentou a advogada. Ela reforça a ideia de que o novo texto (desde que aprovado como está) abrirá espaço para o questionamento da inelegibilidade de Bolsonaro: “Gera um constrangimento, tendo em vista que é uma decisão da Justiça Eleitoral, e não faz sentido que ela não surta efeitos”.
Já Fernando Neisser, também confudador da Abradep e professor de Direito Eleitoral da Fundação Getulio Vargas, entende que o texto não afetaria a condição do ex-presidente, uma vez que o voto do ministro Benedito deixou claro que se trata de um caso de cassação, que só não se consumou porque Bolsonaro não foi reeleito.
“Aqui a mudança é para tratar de situações em que a pessoa tenha respondido por abuso e conduta vedada, e a corte tenha entendido que o fato não era tão grave para cassar e só tenha aplicado a multa da conduta vedada. E, nesse caso, de fato, não faz sentido imaginar que aquilo deva deixar inelegível se não foi grave nem para cassar um registro de candidatura. Então, me parece que só se corrigiu um defeito (na lei).”
“Hoje a única pena do artigo 22 é a cassação. Não cabe multa. Se é grave, cassa. Se não é, se julga improcedente. Essa mudança, na prática, já acontece nos julgamentos. O ideal seria modificar para permitir a multa nos casos menos graves, porque, às vezes, não cabe cassação, mas caberia multa. Hoje, nesses casos, não há pena alguma.”
Um outro ponto do projeto de lei complementar foi elogiado pela maioria dos eleitoralistas ouvidos pela ConJur: aquele que corrige um desequilíbrio na contagem do prazo de inelegibilidade.
A norma hoje prevê, para senadores, deputados, vereadores, governadores e prefeitos cassados, que eles são considerados inelegíveis “para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subsequentes ao término da legislatura”. Com o novo texto, a punição duraria apenas “nos oito anos subsequentes à data da decisão que decretar a perda do cargo eletivo”.
“Às vezes, a mesma conduta traz hoje a implicação da inelegibilidade por prazos muitos diferentes, e o texto agora tentar trazer alguma isonomia, equilíbrio e proporcionalidade”, disse Gabriela Rollemberg.
“Ficar oito anos fora da política já é uma pena bastante grave e, repito, suficiente”, comentou Rollo.
Retrocesso na Ficha Limpa
Márlon Reis, porém, entende que essas mudanças seriam um retrocesso para a moralização do processo eleitoral e para o combate à corrupção, objetivos que, segundo ele, nortearam a Lei da Ficha Limpa.
O ex-parlamentar foi cassado em 2016. Pela contagem atual do prazo de inelegibilidade, ele continuará fora das urnas até 2026. Caso seja aprovado o PLP em sua versão atual, inclusive com a previsão de surtir efeito sobre condenações e fatos anteriores à sua sanção, Cunha estaria inelegível apenas até este ano de 2024 e, portanto, poderia concorrer no próximo pleito.