Por Vânia Aieta
Professora adjunta de Direito Eleitoral da UERJ, advogada especializada em Direito Eleitoral, presidente da ESDEL (Escola Superior de Direito Eleitoral), membro da ABARDES e do IBRADE
Políticas públicas na seara econômica traduzem; no seu processo de elaboração, implantação e sobretudo resultados; os diferentes caminhos de exercício do poder político. Portanto, essa escolha é comprometida com uma determinada linha programática da pauta econômica que é a marca ideológica de qualquer governo, malgrado seja liberal, social-democrata ou socializante.
Crises econômicas e as insatisfações políticas com essas escolhas, assim como as reações de setores de uma sociedade com os resultados exitosos ou de revés, advindos do elemento decisional de um administrador, não podem ser ensejadores de justificação de se retirar o mandato do governante eleito, pelo voto popular, notadamente quando as regras do jogo eleitoral, o chamado “rule of the game”, para parafrasearmos a obra de Norberto Bobbio, tenha sido completamente atendido e respeitado.
Quando a democracia se vê ameaçada por tais incidentes, motivados pelo caráter pendular da Economia, notadamente em supostas excepcionalidades que se deflagram em desrespeito à Constituição e ao Ordenamento Jurídico, estaremos diante de séria lesão à soberania no plano interno ou quiçá de um golpe de Estado.
Pedidos de impeachment com inexistência de amparo jurídico para as acusações de crime de responsabilidade, em nome da busca por resultados mais exitosos na agenda econômica, que venham a atender a demandas políticas eivadas na maioria das vezes por paixões ideológicas, podem lesar direitos fundamentais assegurados na Constituição.
A soberania tem plúrimos e polêmicos significados. Mas, na sua essência estaremos sempre tratando da questão da justificação do poder político. Por isso, no núcleo central da compreensão da soberania, para parafrasearmos o eminente professor da PUC-SP Marcelo Figueiredo, está a ideia de que “quem detém o poder necessita sempre de uma justificação político-jurídica que venha a dar alicerce a essa pretensão”.
O governante sempre precisará de um poder de fato que esteja em congraçamento com o poder jurídico para o exercício de suas funções. A preocupação concreta está na afirmação definitiva da autoridade, estabelecendo a constância e a sedimentação do poder.
Enquanto a soberania externa está na manifestação legítima dos Estados no cenário internacional, no sentido de se respeitarem mutuamente, aceitando e convivendo com as demais nações, no plano interno, a ideia de soberania reside no universo ELEITORAL, notadamente no poder de império, advindo das eleições, pelo voto popular, no sentido do governante estar ungido democraticamente de autoridade, pelas eleições que respeitaram o rule of the game.
Políticas públicas são conjuntos de programas, ações e atividades desenvolvidas pelo moderno Estado Dirigente impondo, diretamente ou indiretamente, com a participação de entes públicos ou privados, certos objetivos da pauta político-programática de um governo. As políticas públicas traduzem, no seu processo de elaboração e implantação, mas sobretudo nos resultados buscados, as formas de exercício do poder político e econômico através de diretrizes, princípios norteadores, regras, procedimentos para as relações entre o poder público e a sociedade.
Contudo, há de se afirmar que a norma regula tais ações, mas não lhes dá sentido. Ela delimita o campo da liberdade do governante pelos paradigmas dos modais deônticos do Direito (proibido, obrigatório e facultado), mas a montagem constitucional do Estado não substitui a vontade individual do governante no universo da discricionariedade no momento em que o governante opta por um vetor hermenêutico em detrimento de outras possibilidades, escolhendo uma modalidade de política pública em detrimento de outra.
Trata-se da questão da decisão no universo governamental. As decisões dos governantes e mesmo a dos magistrados quando chamados a intervir jamais serão assépticas. São comprometidas pela escolha de decisões no âmbito das políticas públicas que estejam perfeitamente concatenadas com uma marca ideológica.
Enfrentar a problemática da Constituição Econômica é enfrentar o alcance e os limites do Estado Social. E Estado Social é aquela espécie de estado dirigente em que os poderes públicos não se contentam tão somente em produzir normas, mas efetivamente direcionam, com suas políticas, a sociedade para o alcance das metas pretendidas com fins de possibilitar a concretização de condições básicas para o alcance da igualdade social entre os mais diversos grupos, classes e regiões de um país.
Como o poder político implica em uma relação social que envolve muitos atores, com projetos e interesses distintos e até contraditórios, há necessidade de mediações sociais e institucionais para que um mínimo de consenso possa ser alcançado. Essa é a única forma de se obter um MÍNIMO DE CONSENSO com fins de legitimar e dar eficácia a uma determinada pauta de políticas públicas, pois elaborar uma política implica em estabelecer quem decide, por qual razão, por que meios, para alcançar quais consequências e para quem.
E é exatamente nesse momento que as decisões políticas governamentais fazem diferença, pois existem distintas formas de encarar as políticas públicas, notadamente em se tratando de MATÉRIA ECONÔMICA: visão liberal, visão social-democrata, visão mais socializante.
Obviamente, o vetor ideológico escolhido para as pautas governamentais econômicas, da educação, da saúde, da previdência e da assistência social, das questões de infraestrutura, relações de trabalho e emprego e o tipo de mediações institucionais eleitas revelarão a estratégia política e econômica de um determinado governo, fazendo com que as políticas públicas se revelem estritamente ligadas ao modelo econômico escolhido.
A América Latina tem sido palco, nas últimas décadas, da proliferação dos processos de impeachment.
Tais julgamentos penais transformaram-se em espetáculos nos quais o desejo de democracia é substituído pelo “desejo de audiência”, a partir do estímulo à dicotomia entre “bandidos e mocinhos”. Mas, com a desculpa de punir os ditos bandidos, os mocinhos também violam a Constituição e o Ordenamento Jurídico.
Os ventos democráticos que varreram as ditaduras do continente americano trouxeram a predileção pelo sistema presidencialista. No presidencialismo, as causas ensejadoras que caracterizam o crime de responsabilidade residem em hipóteses taxativas, previamente definidas na Constituição.
Este caráter de taxatividade em numerus clausus cumpre a função garantista de fazer a distinção entre atos que verdadeiramente violam a probidade administrativa, próprios dos crimes de responsabilidade, das insatisfações políticas com “má gestão” ou com as escolhas políticas do universo da discricionariedade do governante em torno das quais não existe consenso na sociedade por se deflagrarem a partir do juízo de conveniência do próprio governante.
A garantia penal da tipificação das infrações políticas tem sido reiteradamente ignorada através do recurso às interpretações alargadas sobre os conceitos jurídicos indeterminados. Torna-se difícil controlar o exercício legitimo de um processo político com imputações que desconsideram os limites da legalidade material.
Com isso, observa-se que as situações jurídicas de tutela dos direitos fundamentais não têm sido protegidas e excluídas do universo da decidibilidade, conforme a advertência acadêmica do Mestre Italiano Luigi Ferrajoli.
Promover processos de impeachment que não respeitem o devido processo legal, que se baseiam em inferências probatórias não sistêmicas, como as crenças formadas unilateralmente, e que não possuam respaldo jurídico, transparecem como golpe de Estado se não houver fato jurídico que justifique o impedimento, para parafrasearmos o excelentíssimo ministro da Suprema Corte do Brasil, Marco Aurélio Mello.
O credo democrático exige que, acima das paixões políticas e das crises econômicas, devemos sempre defender os direitos fundamentais, a ordem democrática e a Constituição. A soberania popular, fonte de legitimidade em uma democracia, está manifesta em um mandato constitucional, obtido pelo voto, nas urnas.
No Brasil, a acusação imputada à presidente da República para justificar o impedimento não aponta qualquer traço ou indício de favorecimento pessoal, ou de terceiros, nas suas condutas, o que também dificulta sobremaneira a caracterização do crime de responsabilidade.
Algumas considerações, trazidas à baila pelo professor de Direito Tributário e diretor da Faculdade de Direito da UERJ Ricardo Lodi merecem destaque no enfrentamento da matéria: a) as chamadas pedaladas fiscais, assim entendidas como o atraso do repasse para o adimplemento dos benefícios sociais pelos bancos públicos, a partir do fluxo de caixa para o suprimento de fundos estabelecidos no âmbito da relação de prestação de serviços dessas instituições financeiras e a União, não se traduzem em operações financeiras, não se enquadrando, portanto, na vedação prevista no artigo 36 da LRF; b) a violação da LRF não se confunde com a violação da lei orçamentária como permissivo para a abertura do processo de impeachment, não havendo na Constituição e na Lei nº 1.079/50 qualquer previsão de crime de responsabilidade consistente na violação da Lei de responsabilidade fiscal; c) não há na Lei do Impeachment a descrição de qualquer conduta a que, em tese, se pudessem subsumir os fatos narrados no Parecer do Tribunal de Contas da União (TCU), da denúncia ou na decisão do Presidente da Câmara dos Deputados; d) não há possibilidade de processar a Presidente da República por condutas supostamente praticadas no passado, antes do início do seu mandato, que se iniciou em 01/01/15; por isso, os fatos descritos no Parecer Prévio do TCU que sugeriu a rejeição das contas da Presidência da República em 2014, não se prestam para o processamento do processo de impeachment; e) a abertura de créditos suplementares foi autorizada pela Lei Orçamentária Anual de 2015, com a alteração da meta primária levada a efeito pela Lei de Orçamento, não havendo que se falar em abertura de créditos sem previsão legal; f) os procedimentos imputados à Presidente no ano de 2015 são amparados pela jurisprudência do TCU estabelecida até 2014, em posicionamentos aprovados pelo Congresso Nacional; g) a modificação dos critérios de interpretação das leis financeiras e dos fatos pelo TCU e pelo Congresso Nacional devem ter efeitos prospectivos, sob pena de violar a proteção à confiança legítima, a segurança jurídica e a democracia.
Portanto, resta concluir que não é qualquer violação à lei de orçamento que pode ensejar no sistema presidencialista a caracterização de crime de responsabilidade, pois, ao contrário do Parlamentarismo, o nosso sistema de governo não tem previsão do chamado voto de desconfiança.
Assim, o descontentamento político ensejador de “alquimias hermenêuticas” não constitui crime de responsabilidade sob pena de estarmos diante de um golpe de Estado.
Acesso em: 17/04/2016
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