Por Gabriela Rollemberg
Está previsto para hoje, 3 de agosto, o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) dos Recursos Extraordinários n° 848826 e 729744, que tiveram repercussão geral reconhecida, e que podem mudar o cenário das eleições municipais deste ano. Muitos candidatos a prefeito podem ser considerados inelegíveis para a eleição de outubro se a Corte confirmar o entendimento adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a partir das eleições de 2014, no sentido de que a competencia para julgamento das contas de gestão de prefeito é do Tribunal de Contas e não da Câmara Municipal. Além disso, a decisão do STF extrapola a seara eleitoral e pode trazer fortes mudanças no sistema de controle das contas públicas municipais.
Existem dois regimes para o julgamento de contas públicas nas três esferas de governo: a) o que é exclusivo para o Chefe do Poder Executivo, que prevê a emissão de parecer prévio pelo Tribunal de Contas, o qual é posteriormente submetido ao Poder Legislativo; b) o que alcança os demais gestores ou ordenadores de despesas, em que a última palavra é dos tribunais de contas, que se pronunciam a partir de uma decisão definitiva.
Mas e quando o Chefe do Executivo desempenha funções de ordenador de despesas? A quem cabe a aprovação ou não das contas? Ao Parlamento – que faz um julgamento político – ou às Cortes de Contas que fazem, em tese, uma análise mais técnica dos números?
A definição sobre a competência para julgamento das contas está prevista na Constituição Federal, sendo que o modelo estabelecido e que vinha sendo encampado pelo Supremo Tribunal Federal em pronunciamentos mais antigos, tal como na ADI n° 849 e ADI n° 3175, é no sentido de que no que se refere aos Chefes do Poder Executivo da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, as regras de competência para exame das contas estão definidas pelos arts. 71, inciso I, 75, “caput”, e 31 e seus parágrafos 1º e 2º, todos da Carta Política.
Segundo os últimos pronunciamentos do STF sobre o tema, as contas públicas dos Chefes do Executivo devem sofrer o julgamento – final e definitivo – da instituição parlamentar, cuja atuação, no plano do controle externo da legalidade e regularidade da atividade financeira do Presidente da República, dos Governadores e dos Prefeitos Municipais, é desempenhada com uma atuação coadjuvante do Tribunal de Contas.
Portanto, a apreciação das contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo – que é a expressão visível da unidade institucional desse órgão da soberania do Estado – constituiria prerrogativa intransferível do Legislativo, que não poderia ser substituído pelo Tribunal de Contas, no desempenho de competência de matriz nitidamente constitucional.
Esse tema foi sucessivamente enfrentado pelo TSE, o qual sempre se pronunciou no sentido de que “a competência para o julgamento das contas de prefeito é da Câmara Municipal, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio, o que se aplica tanto às contas relativas ao exercício financeiro, prestadas anualmente pelo Chefe do Poder
Executivo, quanto às contas de gestão ou atinentes à função de ordenador de despesas” (TSE, RESPE n. 33.747-AgR/BA, Rel. Min. Arnaldo Versiani).
No entanto, na eleição de 2014, mais especificamente no julgamento do RO n° 401-37, da relatoria do Ministro Henrique Neves, o tema foi novamente revisitado, e por maioria apertada, o TSE passou a entender que a nova redação conferida pela Lei da Ficha Limpa à parte final do art. 1°, inciso I, alínea “g”, da LC n° 64/90, teria alterado o regime de competência para julgamento das contas dos prefeitos que também atuam como ordenadores de despesas.
Isso porque a parte final da alínea “g” do art. 1°, inciso I, com a alteração realizada pela Lei da Ficha Limpa, passou a definir que aplica¬-se “o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”.
Por sua vez, o inciso II do art. 71 da Constituição Federal define exatamente a competência do Tribunal de Contas para “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da Administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público”.
No entanto, o que sempre definiu a competência para julgamento das contas públicas, segundo a interpretação do STF, foi a natureza do cargo ocupado e não a natureza do ato praticado, aplicando-se aos prefeitos o mesmo sistema de prestação de contas definido para a Presidência da República, pois como ressaltado em diversas ocasiões, “a Constituição Federal é clara ao determinar, em seu art. 75, que as normas constitucionais que conformam o modelo federal de organização do Tribunal de Contas da União são de observância compulsória pelas Constituições dos Estados-membros. Nesse sentido, este Tribunal tem considerado que “os Estados-membros estão sujeitos, na organização e composição dos seus Tribunais de Contas, a um modelo jurídico heterônomo estabelecido pela própria Carta Federal, que lhes restringe o exercício e a extensão do poder constituinte decorrente de que se acham investidos”. Assim, “a norma consubstanciada no art. 75 do texto constitucional torna, necessariamente, extensíveis aos Estados-membros as regras nele fixadas” (STF, Reclamação n° 13.292, Rel. Min. Gilmar Mendes).
Por essa razão, o STF tem entendido que, no contexto do art. 75 da Constituição Federal, dentre as normas constitucionais de observância obrigatória pelos Estados-membros incluem-se as atinentes às competências institucionais do Tribunal de Contas da União, sendo que no modelo estabelecido na esfera federal, cabe ao Tribunal de Contas apenas apreciar, mediante parecer prévio, as contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo. Assim, a competência para julgamento das contas é do Congresso Nacional, por força do art. 49, inciso IX, da Constituição.
No entanto, a maioria que prevaleceu no âmbito do TSE nas eleições sustentou que a alteração realizada pela Lei da Ficha Limpa, por ter sido declarada constitucional no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n° 29 e 30, demonstraria uma suposta alteração de entendimento do STF quanto à competência para julgamento das contas municipais.
Esse argumento não merece prevalecer, pois isso implicaria que uma Lei Complementar, que trata de efeitos meramente secundários de uma rejeição de contas na esfera pessoal de elegibilidade de um cidadão, teria o poder de alterar todo o modelo constitucional de competência para julgamento das contas definido pela Constituição Federal.
É certo que o nosso modelo atual pode ser aprimorado de diversas formas, por exemplo: a) definindo melhores critérios para a escolha dos membros das Cortes de Contas; b) prevendo prazo certo para o pronunciamento sobre as contas pelos Tribunais de Contas e pela Câmara Municipal; c) estabelecendo um órgão de controle nacional dos Tribunais de Contas, para que se tenha uma padronização dos procedimentos e processos de contas, de modo a privilegiar a eficiência, o devido processo legal e a ampla defesa, nos mesmos moldes do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público.
No entanto, o modelo de controle das contas públicas é definido pela nossa Constituição como forma de dar equilíbrio à separação dos poderes, dando maior efetividade aos checks and balances, pois uma das funções fundamentais do Poder Legislativo é justamente fiscalizar os atos do Poder Executivo.
Sendo assim, não se pode subverter esse modelo constitucional, dando maior poder ao órgão técnico de contas, apenas para privilegiar os efeitos secundários que aquele pronunciamento terá na esfera individual de quem pretenda ser candidato.
Nem mesmo o argumento de declaração de constitucionalidade da alteração normativa pelo STF seria suficiente para sustentar a conclusão adotada pelo TSE. Isso porque, em geral, os votos apresentados no julgamento das ADC´s n° 29 e 30 e ADI n° 4578 não trataram especificamente de cada alínea. Na verdade, não houve uma padronização da sistemática dos votos, sendo que alguns Ministros dividiram as hipóteses de inelegibilidade em categorias, e outros trataram especificamente de cada inelegibilidade prevista ou alterada pela Lei da Ficha Limpa.
Em virtude disso, não é possível extrair que a mera declaração de constitucionalidade possibilitaria chegar a interpretação adotada pelo TSE na eleição de 2014. Tanto isso é verdade que alguns temas passaram a ser revisitados pelo Poder Judiciário, o que suscitou o reconhecimento da repercussão geral no RE n° 929.670, da relatoria do Presidente do STF, Ministro Ricardo Lewandowski, que trata da possibilidade de aplicação do prazo de oito anos de inelegibilidade na hipótese da alínea “d”, quando as condenações anteriores à alteração legislativa definiam na decisão condenatória que o prazo de inelegibilidade seria de apenas três anos. Naquele caso, o argumento para enfrentar o tema foi justamente a alegação de que ele não teria sido debatido com especificidade no julgamento das ADC´s n° 29 e 30.
Caso o Supremo confirme a posição do TSE, a decisão terá uma repercussão imensa nos pequenos municipios, onde é mais comum que os Prefeitos também sejam ordenadores de despesas. Afinal, muitos tribunais de contas já deram parecer pela rejeição das contas das prefeituras. Portanto, se prevalecer o entendimento do TSE para a eleição de 2014, tais pareceres serão convertidos em acórdão, passando a constituir uma decisão final sobre as contas, com possível repercussão de uma inelegibilidade de oito anos, caso estejam presentes os demais requisitos (irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa).
A simples leitura da Constituição Federal revela que os tribunais de contas foram criados para exercer um papel de órgão auxiliar do Poder Legislativo, em especial quando estamos a tratar das contas do Chefe do Executivo. O entendimento de que a decisão final sobre a aprovação ou rejeição das contas do Poder Executivo deve se dar pelas Cortes de Contas, sem a necessidade de sua apreciação final pela Câmara Municipal, significa empoderar indevidamente esses órgãos, violando o princípio da separação dos poderes.
Essa é a polêmica que precisará ser enfrentada pelo STF no julgamento marcado para agosto. Mas ainda com o risco de as eleições municipais ocorrerem em outubro sem que seja esclarecida essa dúvida que paira a respeito da responsabilidade sobre o julgamento das contas e suas implicações. Espera-se que Suprema Corte possa concluir a votação antes do prazo legal de inscrição das candidaturas.
* Gabriela Rollemberg é vice-presidente da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB e secretária-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). Autora do recém-lançado Manual do Candidato – Eleições 2016. Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB (2006) e em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB (2008). É pós-graduada em Direito Eleitoral pelo Instituto Luiz Flávio Gomes – LFG (2012).
Acesso em: 10 de agosto de 2016
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