"Ciclotrama 43 (Impregnação)", de 2016 |
Depois de vivermos, entre 1995 e 2012, o período mais estável da história política brasileira, com resultados econômicos e sociais relevantes para exibir, iniciamos a campanha eleitoral deste ano num quadro francamente preocupante.
Com a economia estagnada já há alguns anos e a elite política quase inteiramente ameaçada por uma interminável investigação judicial publicamente imbuída do propósito ingênuo de "passar o país a limpo", o Congresso Nacional, sob a batuta de um inimigo do governo, derivou ao longo de 2015 (e depois obstinou-se em 2016) rumo à consumação de um impeachment presidencial profundamente contestado, que aguçou de maneira dramática uma polarização política que já vinha se agravando lentamente desde 2006.
Neste momento, as perspectivas são de incerteza não só quanto à dinâmica eleitoral no curto prazo mas também quanto ao vigor da eventual recuperação econômica no futuro próximo, quanto à recomposição de alguma clivagem política estável, quanto à capacidade do sistema partidário prosseguir como fiador eleitoral e organizador do jogo parlamentar e, de maneira mais remota, até mesmo quanto à própria sobrevivência da ordem constitucional vigente.
Como viemos parar aqui? A narrativa predominante parece apontar o dedo para os vícios de uma elite política corrupta, propensa a uma relação predatória com uma sociedade que, passiva, a sustenta com seus impostos, e, desinformada, com seus votos.
Nesse relato, a existência desses políticos parece saída do nada, talvez de alguma propensão atávica dos brasileiros para a vigarice. Ocorre, porém, que as estratégias dos políticos não são exógenas ao sistema institucional. Afinal, toda a elite política é rotineiramente selecionada em eleições periódicas, e, sendo assim, suas características, bem como os traços básicos do quadro partidário, não apenas decorrem das regras das eleições, mas são continuamente reforçadas por sua reiteração a cada ciclo. Os vencedores de ontem têm influência reforçada na seleção dos candidatos (e dos vencedores) de amanhã; os métodos que os elegeram ontem serão aprimorados amanhã etc. Insistir na tese da crise moral é antes sintoma de perplexidade intelectual, e nos condena à resignação, ajudando a eternizar nossos males.
Já há uns 20 anos a ciência política brasileira tem mostrado que, apesar do grande número de partidos representados, o sistema político brasileiro seria relativamente funcional na operação do Congresso Nacional, com plenários predizíveis a partir de alinhamentos partidários, maiorias viáveis construídas com os recursos institucionalmente disponíveis para a Presidência da República e uma rede de instituições de controle cada vez mais apta a vigiar a conduta dos protagonistas.
Contra certa ortodoxia vigente até ali, o caso brasileiro mostrou, pelo menos por duas décadas, que um regime presidencialista multipartidário pode, em princípio, ser viável, ainda que isso talvez exija uma concentração excepcional de responsabilidades na Presidência da República. Por mais que nosso presidencialismo de coalizão possa mostrar-se operacional em vários aspectos, porém, é preciso admitir que nosso sistema eleitoral é de fato atípico, pela presença de uma conjunção bastante específica de características, e não por acaso termina por ocupar o cerne da face mais estrutural da crise.
Em primeiro lugar, adotamos um sistema proporcional com listas partidárias não ordenadas em distritos de grande magnitude (distritos únicos nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais, e bancadas estaduais de até 70 membros na Câmara dos Deputados). São raros os países com representação proporcional que não ordenam previamente (ainda que de maneira flexível) suas listas partidárias. Quando o fazem, ou têm distritos pequenos (como o Chile, que acaba de elevar a magnitude média de seus distritos de 2 cadeiras para próximo de 5) ou são países de população pequena (como a Finlândia, que tem 5 milhões de habitantes e ainda distribui a representação em 15 distritos com 6 a 21 deputados, exceto Helsinque, com 35).
Assim, a experiência de nossas eleições para câmaras e assembleias legislativas, disputadas por centenas ou mesmo milhares de candidaturas individuais, em distritos com milhões de eleitores, é peculiar ao Brasil. Esse já é, por si só, um cenário precariamente governável pelos tribunais eleitorais, que serão forçados a exercer controles das contas das campanhas (individuais, centenas delas) apenas por amostragem ou denúncia.
Mas a natureza atípica do nosso sistema eleitoral se completa com uma grave anomalia na regra do financiamento das campanhas: só no Brasil o teto para o doador é um percentual de sua renda.
TETO
Cerca de 40% dos países impõe algum teto às doações. Nesses casos, ou o teto é um valor nominal (em moeda sonante ou unidades fiscais), ou ele é um percentual (tipicamente baixo, de 2 a 5%) do teto nominal de gastos autorizados na eleição. Em ambas as modalidades há um valor nominal para o teto vigente em cada eleição, o que impõe uma pulverização significativa das fontes de recursos.
Já nossos tetos percentuais tendem de fato a concentrar as fontes –pois acabam incidindo, concretamente, sobre o pequeno doador. Dinheiro importa em qualquer eleição, claro. Mas, em nosso peculiar cenário de candidaturas individuais pulverizadas, seu peso é magnificado.
Na massa anônima de candidaturas individuais semi-invisíveis, o candidato que já não tiver um reduto (social ou geográfico) prévio, ou que não seja uma celebridade exterior à política, vai precisar basicamente de muito, mas muito dinheiro para operar a saturação publicitária necessária para fazer do seu número um "top of mind" entre os eleitores na hora de votar.
Gui Gomes | ||
"Labirintos Rizomáticos Série II C - Vermelho" (2015) |
Se nesse sistema hiperpovoado de candidaturas ainda concentramos as fontes viáveis de financiamento relevante, terminamos por produzir um fenômeno muito atípico: tomamos um quadro em que a experiência internacional tende a exibir meia dúzia de candidatos disputando milhares de doadores, e produzimos um quadro, único, em que milhares de candidatos disputam meia dúzia de doadores potencialmente relevantes. Pulverizamos a demanda e concentramos a oferta de financiamento.
Além da vantagem até mnemônica que a lista aberta em distritos grandes por si só concede à candidatura com mais dinheiro, ainda acrescentamos sobre isso uma forte concentração de influência política em poucos, grandes financiadores. Damos uma vantagem insuperável a quem conta com financiadores poderosos (ou a candidatos que já sejam milionários), num sistema precariamente governável pelos tribunais eleitorais e fortemente inflacionário pela competição entre centenas de candidaturas individuais.
Só por milagre não produziríamos um jogo cada vez mais corrupto. Mas, nesse enquadramento, a corrupção resultante não é um atributo intrínseco aos políticos, como se eles fossem marcianos que do nada se materializassem a cada quatro anos em nossos mandatos eletivos. Se considerarmos que a seleção da elite parlamentar é endógena ao sistema político, vemos que, mais que proteger a sociedade contra políticos bandidos, precisamos mesmo é blindar o sistema político contra a face mais bruta –e monetizada– do conflito de interesses na sociedade.
Diferentes regras eleitorais vão, como se sabe, produzir diferentes vencedores. E nosso sistema tem um viés de seleção adverso, peculiarmente sensível ao gasto de campanha, que favorece o poder de candidatos ricos ou de grandes financiadores, induzindo a ascensão de candidaturas dóceis a esses interesses. Ou corrompidos, se quisermos alargar o sentido do termo para além de sua tipificação legal.
Infelizmente, a proibição recente das doações por pessoas jurídicas deixou de tocar no cerne de nosso problema.
Mesmo sem as empresas, nossas superpovoadas eleições de deputados e vereadores continuam a ser concursos de "top of mind", profundamente dependentes de saturação publicitária (e portanto de dinheiro), precariamente fiscalizáveis, politicamente ininteligíveis e –ainda– fatalmente capturáveis por grandes financiadores, mesmo que sejam pessoas físicas. E continuarão assim enquanto o sistema eleitoral tiver candidaturas individuais em distritos de tamanha magnitude e população, e enquanto a origem das doações estiver concentrada pelo infame teto brasileiro –um percentual da renda do doador.
Com a exclusão das empresas, os gastos agora vão diminuir, mas não há muitas razões para esperar que diminua a relação entre gasto e voto, favorecida por nosso intocado sistema eleitoral. E, mais que o volume de gastos, essa relação é o que importa, pois indica o peso do dinheiro na definição do resultado eleitoral. Mas há outros motivos de preocupação, talvez mais graves. A coincidência entre a supressão das doações por empresas, que está produzindo considerável escassez de recursos nas campanhas, e o enfraquecimento (pela Lava Jato) do peso da identificação partidária na indução do voto tende a produzir um cenário de baixa identificação partidária, favorecendo aventureiros milionários e, pior ainda, o crime organizado estritamente considerado: o tráfico de drogas e de armas, milícias, bicheiros etc.
Isso sequer dependeria de esses atores perceberem ou não uma oportunidade na atual conjuntura. Esse submundo sempre está presente, em escala mais ou menos reduzida, nos bastidores de algumas campanhas, nas franjas do sistema de representação.
Num contexto, porém, em que mesmo doações legais foram tomadas como prova de crime, a retração dos doadores tende a ir além da proibição das empresas, e muitos doadores tradicionais evitarão correr esse risco, mesmo como pessoas físicas. Se o dinheiro subitamente se torna escasso, mas não há razões para esperar que ele se torne menos importante para o resultado, quem restar na cena como fonte de dinheiro tenderá a ter sua influência aumentada. E quem será temerário o bastante para aceitar o risco de ir para a cadeia por corrupção ativa? Infelizmente, talvez quem já esteja implicado em crimes mais graves, como homicídio ou tráfico.
TIPOLOGIA
Como partidos são organizações, e têm incorrido em práticas ilícitas no financiamento de suas campanhas eleitorais, nossos procuradores, juízes e a imprensa têm recorrido à expressão crime organizado, me parece, com excessiva liberalidade para se referir aos implicados na Lava Jato. Pelas razões expostas no parágrafo anterior, porém, penso haver matizes importantes a serem observados neste artigo, e sugiro distinguir os políticos em cinco categorias no que diz respeito à sua relação com a moralidade, a lei e, ocasionalmente, práticas criminosas.
1. Os incorruptíveis, que não apenas seguem a lei, mas se recusam até mesmo a se permitir conveniências como indicações legais de aliados para empregos e favorecimentos diversos. Operam apenas no plano do embate de ideias e, aristocraticamente, desprezam clientelismos e fisiologismos. Improvável que pareça, essas pessoas existem. De um ponto de vista democrático, porém, chegam a ser indesejáveis, pois nenhum eleitorado pode controlá-las, já que são desapegadas do poder, e terminam por serem maus representantes da vontade alheia, já que só fazem o que elas mesmas acham certo. Seja como for, perdem eleições. Poderemos ignorar essa categoria sem muito risco de comprometermos a tipologia.
2. Atores politicamente engajados, partidários, estrategicamente atuantes em favor de seu partido ou sua causa, mas nos limites estritos da lei. Promoverão os interesses de aliados, ocasionalmente bancarão indicações para cargos e empregos. Aceitarão, em suma, o jogo fisiológico se for preciso, mas não incorrerão em ilegalidades. Jogam o jogo, mas seu limite é a lei. Nunca é demais lembrar: fisiologismo não é igual a corrupção.
3. Categoria média, tipo médio e, com toda probabilidade, predominante. Joga o jogo com realismo cru, e trata de ganhar. Lança mão, para isso, do que for preciso. Admite, para tanto, recorrer a ilegalidades. Compactua com atos ilícitos, e vez por outra incorre neles pessoalmente. Mas sua prioridade ainda é política: está na luta, comprometida com ela, e quer vencer. Talvez nem se lembre mais exatamente qual era sua causa no início de tudo. Mas profissionalizou-se, sabe seu lado, reconhece e cumpre seus compromissos, promove seus aliados, e luta pelo poder. Tipicamente, um conservador –senão na plataforma, no estilo: acima de tudo, sua prioridade é preservar sua posição no sistema político a longo prazo, se possível para a vida toda. Acomodatício, cultiva aliados e evita riscos desnecessários.
4. O larápio. Originariamente um político, mas quer ficar rico, e se utiliza do poder para faturar. Não perde uma chance de embolsar, admitindo até mesmo o risco de arcar com algum prejuízo político, algum desgaste na reputação, se a grana compensar. O arquétipo do corrupto.
5. O testa de ferro do crime organizado. Sua preocupação não é, talvez jamais tenha sido, prioritariamente política. Não é um político que eventualmente se corrompeu. É um criminoso (ou um cúmplice de criminosos) que foi à política para promover os interesses da atividade criminosa. Seus compromissos residem antes na organização criminosa que no partido. Tem inimigos, mais que adversários, e os confronta com destemor peculiar. Agressivo, aceita riscos políticos maiores que os demais, porque sua rede de proteção reside fora da política. Preocupa-se pouco com a segurança de sua posição a longo prazo. Tende a ser corrosivo para o sistema político, ocasionalmente desestabilizador.
Os tipos 3,4 e 5 praticam crimes. Talvez organizadamente. Mas, representante do crime organizado, propriamente dito, com todo seu potencial destrutivo para a ordem política e social, é o último. Todos eles devem ser contidos e, caso processados e condenados, devem ser punidos, na forma da lei.
Devemos apenas cuidar de evitar que, ao enchermos as cadeias com 3, terminemos por encher os plenários legislativos com 5. O 2 é, em princípio, um cumpridor da lei, embora ultimamente corra certo risco de ver seu critério de definição de legalidade reinterpretado ("ex post") por algum procurador ou juiz especialmente obstinado. Pode acabar por descobrir-se confundido com 3 ou 4 –ou mesmo 5.
Também por tudo isso, pode-se dizer que a condução da barganha parlamentar, mesmo a dita fisiológica (e dentro dos limites de sua presumível legalidade) é uma responsabilidade da chefia do governo. Se deixar esse mercado correr solto, a Presidência abre o campo para algum aventureiro (talvez do pior tipo) se imiscuir e constituir-se como fonte alternativa –e predatória– de patronato político.
Além do erro de julgar-se acima dos efeitos da Lava Jato e da condução temerária da economia, Dilma Rousseff foi derrubada também por sua relutância em compreender, aceitar, respeitar e, assim, qualificar-se a conduzir esse jogo. A certa altura, viu-se em posição vulnerável em todos os flancos: na economia, na opinião pública e também no Congresso. Ficou ao sabor das tempestades. Sua debilidade encorajou seus adversários (sobretudo os internos) a irem em busca de uma oportunidade de se livrarem dela. E subitamente nos vimos de novo lançados num velho Brasil onde a interrupção de mandatos era antes a regra que a exceção.
A queda da presidente é o evento mais espetacular da crise. Do ponto de vista de um diagnóstico, porém, o impeachment é o aspecto mais fortuito, intrinsecamente imprevisível com antecedência, e em princípio atribuível a uma vasta convergência de circunstâncias relativamente independentes entre si. Nesse enquadramento, ele é antes um grave subproduto da crise mais estrutural, com a qual convivemos já há alguns anos, e que tem na Lava Jato sua principal manifestação: um choque duradouro, potencialmente catastrófico, entre o paulatino fortalecimento das instituições de controle desde 1988, de um lado, e as práticas induzidas pelo sistema eleitoral, do outro. E é preciso o devido senso de perspectiva no exame desse choque.
SEM VITÓRIA
Sim, o combate permanente à corrupção é um traço indispensável ao Estado de Direito. Mas, justamente por isso, é preciso ter em mente que ele não se presta a vitórias cabais, pois –embora possa sempre ser reduzida– a corrupção não pode ser erradicada. Pois a lei deve arbitrar nossas disputas, e sempre haverá interessados que estarão dispostos a burlar a lei para evitar eventuais derrotas. Assim como não há programa antivírus que possa erradicar todo vírus de computador, tampouco haverá legislação ou procedimento aptos a erradicar a corrupção.
O combate à corrupção é tarefa permanente do Estado, e a longo prazo seu sucesso decorrerá de contínuo e paciente aperfeiçoamento burocrático, com a fixação de rotinas de controle e a permanente detecção de novas práticas ilícitas.
Operações ambiciosas de limpeza abrupta tenderão antes a se mostrar contraproducentes a longo prazo, pela fixação de precedentes talvez insustentáveis, pela insegurança jurídica decorrente e, no limite, pela própria desestabilização política eventualmente induzida. Pois é a vigilância mútua produzida pela competição partidária, corrupta que seja, que ironicamente constitui a base sobre a qual se assenta a cristalização institucional e a consequente autonomização burocrática hoje exibidas pelas instituições de controle.
Petistas vigiando tucanos e tucanos vigiando petistas constituem um lastro político fundamental para as instituições de controle. Nossos bravos procuradores, juízes e delegados, ao buscarem limpar o sistema, zerar o jogo, inspirados pelo combate à máfia (de onde se importou a metodologia da delação premiada), estão serrando o próprio galho político-institucional sobre o qual se apoiam. E, em caso de desestabilização mais aguda da disputa política, é quase certo que o sistema saia pior na outra ponta. Logo, seria importante evitar o naufrágio ao tentarmos consertar o navio.
Para tanto, é muito importante a preservação de um quadro de referências partidárias minimamente estável. Por mais difícil que seja a constituição das maiorias necessárias, sistemas eleitorais se mudam numa penada, por votação no Congresso. Sistemas partidários, porém, não se criam por decreto, antes decantam ao longo de décadas –se tudo der certo. E constituem um lastro social fundamental da estabilidade de uma democracia, na medida em que organizam a competição eleitoral e propiciam uma elite política interessada na manutenção do regime. O nosso, com seus vinte e tantos partidos no Congresso, já não é uma maravilha, mas é o que temos.
O traço mais preocupante do cenário atual reside no fato de que hoje a maioria da população ficaria feliz em mandar todos embora, e que uma vasta fatia dos melhores e mais preparados quadros de nossas agências de controle esteja cotidianamente empenhada, de modo metódico, disciplinado, sincero e patriótico, em produzir, inadvertidamente, o pior resultado possível.
BRUNO P. W. REIS, 51, é professor de ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais.
JANAINA MELLO LANDINI, 41, arquiteta e artista plástica, está em cartaz na coletiva "Intervenções Urbanas Bradesco ArtRio", no Museu da República, no Rio, até 2/10.
Acesso em: 19/09/2016
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