Viver em um país que constantemente debate a reforma de seu sistema político-eleitoral tem suas vantagens. A maior delas, talvez, o gradual aumento da quantidade de informação que circula na sociedade sobre as alternativas que se colocam sobre a mesa e suas possíveis consequências.
Nos últimos meses, felizmente, tornou-se senso comum afirmar que não existe um modelo perfeito de sistema eleitoral. Aparentemente, estamos deixando para trás a ilusão de que é possível encontrar a Shangri-La, o El Dorado dos modelos, que nos traria o paraíso terreno e redimiria todos os vícios de nossa classe política.
De fato, as escolhas que se colocam à disposição do Congresso Nacional são como ferramentas. Não se pode discutir em abstrato o que é melhor, um martelo ou uma chave de fenda, nem qual a ferramenta perfeita. Cada qual serve a uma finalidade, sendo necessário antes de tudo eleger aonde se quer chegar.
Assim, se aproximar eleitores de eleitos é o objetivo primordial, o sistema distrital será uma alternativa interessante; enquanto o sistema proporcional seria o escolhido caso o diagnóstico de momento fosse a necessidade de aumentar a representatividade das minorias.
Outra característica desta caixa de ferramentas, que parece ainda merecer atenção, é o fato de que parte de suas peças só pode ser útil se combinada com outra. Um martelo é de pouca serventia sem um prego, tão inútil quanto uma chave de fenda sem parafuso.
A metáfora vem a calhar quando se percebe um movimento, reforçado e confirmado por inúmeras declarações nos últimos dias, tendente à adoção da lista fechada para a escolha de deputados e vereadores, aliada ao financiamento exclusivamente público das campanhas.
Ora, pode perguntar o leitor, mas não era esse o modelo defendido por tantos cientistas políticos? Não é deste modo que se consegue, a um só tempo, fortalecer a coesão dos partidos políticos e permitir uma condição mais igualitária de disputa, afastando a nefasta influência do poder econômico nas eleições?
A resposta não é tão singela. Afinal, como disse Mencken, “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.
O sistema de lista fechada é aquele no qual o partido escolhe a ordem na qual os seus candidatos irão figurar. O eleitor vota apenas na legenda e, ao final das eleições, verifica-se quantas cadeiras aquela chapa tem direito a preencher. Entram no parlamento os primeiros da lista, até o número de candidatos eleitos pela chapa.
A ideia é excelente, barateando as campanhas na medida em que os candidatos não pedem votos individualmente, mas para a chapa como um todo. Desparece aquele desfile de nomes e números que se sucedem no horário eleitoral, dando lugar à propaganda do partido.
Ao reduzir os valores envolvidos nas campanhas, permite-se que o custeio seja feito com recursos públicos. Como vemos há pouco mais de quinhentos anos e à saciedade nos últimos três, com a Lava Jato, “dinheiro” e “política” são elementos que produzem reações explosivas e malcheirosas em dadas proporções e sob certas circunstâncias.
Seria perfeito, não houvesse dois graves problemas. Corremos o risco de estarmos escolhendo o martelo e a chave de fenda e deixando no fundo da caixa, bem escondidos, os pregos e parafusos.
O sistema de lista fechada concentra todo o poder nas cúpulas partidárias. São elas, na verdade, quem escolhem os candidatos e ordenam as listas. Mais do que isso, a elas a lei atribui a tarefa de receber os recursos do fundo partidário e dividi-los, como bem entenderem, entre as campanhas.
Em nossa metáfora, pregos e parafusos são a necessária democratização das estruturas dos partidos e das regras de divisão de recursos públicos.
Não é possível admitir que a estas cúpulas – fechadas, autoritárias, opacas e machistas – seja dado ainda mais poder do que já dispõem. Que a elas, enclausuradas à sociedade e aos próprios filiados, atribua-se a tarefa de distribuir ainda mais dinheiro dos cofres públicos.
Circulando pelos corredores do Congresso Nacional, contudo, não se ouve qualquer menção a esta necessária abertura. Ao contrário, a cada vez que o Tribunal Superior Eleitoral fecha o cerco sobre os partidos – especialmente quanto às suas prestações de contas – a reação vem firme, rápida e com capacidade de unir situação e oposição.
Não se fala em proibir as eternas reeleições – em nome próprio ou de parentes – para os cargos de chefia dos partidos, criando dinastias que dariam inveja aos Grimaldi de Mônaco.
Não se cogita instituir paridade nos órgãos decisórios, dando às mulheres – mais de metade da nossa população – capacidade para influir na pauta das agremiações.
Não se debate a necessidade de realizar eleições diretas nos partidos e prévias obrigatórias, forçando partidos a buscarem em suas bases a legitimidade que o tempo e suas próprias atitudes corroeram.
Não se admite a necessária extinção das comissões provisórias, órgãos que envergonham nossos cientistas políticos quando precisam explicá-los nos congressos internacionais, que se prestam apenas a manter o poder nos caciques nacionais e regionais.
Não se reconhece a premência de repensar a divisão do bolo do fundo partidário, dando aos eleitores, a cada ano, a capacidade de indicar a quais partidos preferem que sejam destinados, novamente exigindo dos partidos que a eles recorram para dialogar e justificar a sua necessidade de recursos.
O que se vê no Congresso Nacional é apenas a mais rasteira e imediatista preocupação em chegar a 2018 e superá-lo com um mandato em mãos. Nada mais, nada menos. Nem que seja à força de marteladas no vazio.
*Fernando Neisser
Advogado, mestre e doutorando pela USP. Presidente da Comissão de Estudos de Direito Eleitoral do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo) e membro fundador da ABRADEP (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político)
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Estadão
http://politica.estadao.com.br
Acesso em 28/03/2017