A legislação eleitoral disciplina o processo de prestação de contas decorrente de campanhas eleitorais na Lei 9.504/97, sendo que o Tribunal Superior Eleitoral, para cada eleição, regulamenta por resolução eleitoral a arrecadação e os gastos de recursos por partidos e candidatos para campanhas, através da Resolução 23.463/15, enquanto que, no caso dos recursos obtidos pelos partidos que não estejam vinculados as campanhas eleitorais, através da Resolução 23.464/15.
Cumpre reconhecer que a arrecadação de recursos de campanha eleitoral proveniente de qualquer natureza pressupõe o cumprimento de etapas legais, a saber: (i) requerimento de registro da candidatura que se modula entre os períodos das convenções partidárias, 20 de julho a 5 de agosto até o último dia para a solicitação registral que é 15 de agosto do ano eleitoral; (ii) o pré-candidato deverá requerer sua inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ); (iii) o candidato deverá abrir conta bancária específica que comprovará a movimentação financeira dos recursos arrecadados e gastos; e (iv) a emissão de recibos eleitorais.
Veja que, a obrigação de candidatos e partidos políticos, encerradas as eleições, prestarem contas à Justiça Eleitoral tem o nítido sentido de procurar impedir o abuso do poder econômico, garantindo transparência e legitimidade das eleições.[1]
Em virtude das detalhadas regras sobre a prestação de contas é resoluta a sua natureza jurisdicional resultando em decisão pela: (i) aprovação; (ii) aprovação com ressalvas; (iii) desaprovação; e (iv) não prestação.
Como se nota, o processo de prestação de contas é autônomo e resultará em uma decisão definitiva. No entanto, como já normatizado pelo Tribunal Superior Eleitoral, é possível a apuração do abuso do poder econômico em processo diverso, nos seguintes termos:
“A aprovação, com ou sem ressalvas, ou desaprovação da prestação de contas do candidato, não vincula o resultado da representação de que trata o artigo 30-A da Lei 9.504/97, nem impede a apuração do abuso do poder econômico em processo apropriado”. (§4º do artigo 91 da Res. TSE 23.463/2015).
E ainda:
“O julgamento da prestação de contas pela Justiça Eleitoral não afasta a possibilidade de apuração por outros órgãos quanto à prática de eventuais ilícitos antecedentes e/ou vinculados, verificados no curso das investigações em andamento ou futuras” (artigo 92 da Re. TSE 23.463/2015).
Tem-se, então, que a aprovação de contas de campanhas eleitorais em processo judicial de prestação de contas não inibe a possibilidade de persecução penal, nem tampouco impede: (i) a propositura da ação de captação ou gastos ilícitos de recursos nos moldes do artigo 30-A, cujo prazo escoa em até 15 dias da diplomação, (ii) o ajuizamento da representação por abuso do poder econômico nos termos do artigo 22 da Lei Complementar 64/90, sendo que o prazo se encerra no próprio dia da diplomação; e (iii) o ingresso da ação de impugnação ao mandato eletivo nos 15 dias contados da diplomação, conforme previsão constitucional no artigo 14, §§ 10 e 11.
Cumpre-nos assinalar que se no processo de prestação de contas foram analisados os documentos comprobatórios da arrecadação de gastos de recursos nas campanhas eleitorais, nos moldes do que prevê os incisos do artigo 48, da Resolução TSE 23.463/15, mas de forma superveniente emergiram provas de que foram omitidas dolosamente doações de terceiras pessoas com o propósito de criar um falso ideal, desloca-se a questão para o exame da tipicidade penal eleitoral, prevista no artigo 350 do Código Eleitoral, fenômeno conhecido como “Falsidade ideológica eleitoral”, senão vejamos:
Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais:
Pena: reclusão até 5 (cinco) anos e pagamento de 5 (cinco) a 15 (quinze) dias-multa, se o documento é público, e reclusão até 3 (três) anos e pagamento de 3 (três) a 10 (dez) dias-multa, se o documento é particular.
Parágrafo único. Se o agente da falsidade documental é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, a pena é agravada.
Com base no que dispõe o artigo 287, do Código Eleitoral, aplica-se aos crimes eleitorais, a disposição constante da parte geral do Código Penal, absorvendo deste toda a parte que trata da teoria do delito, consumação e tentativa, pena e sua aplicação, concurso de pessoas, concurso de crimes, concurso de normas penais, suspensão condicional do processo e da pena, bem como causas de extinção da pretensão punitiva estatal.[2]
Desse modo, incide todas essas circunstâncias no delito do artigo 350 do Código Eleitoral que, como todos os crimes eleitorais, é crime comum, e não crime político, tendo como bem jurídico tutelado a fé pública eleitoral, cujo sujeito passivo primário é o Estado e, secundariamente, a pessoa prejudicada pela falsificação, seja ela eleitor ou não eleitor.
Quando ao tipo objetivo, a falsidade ideológica (ou intelectual) é aquela definida por Puglia[3] como não revelada por sinais exteriores, porém concernentes ao seu conteúdo, assim exemplificada: (i) atestar como verdadeiros feitos em sua presença ou fatos ou declarações contra a verdade; b) omitir declarações feitas pela parte; e c) alterar essas declarações.
Todavia, há que esclarecer que, quando as declarações forem provenientes de mera desatenção, esquecimento, sem intenção fraudulenta ou possibilidade de prejuízo público ou privado, não haverá crime. Nesse sentido, Garraud, em sua obra Tratado de Direito Penal.
Veja que, a declaração inverídica deve ser essencial ao documento, ou seja, é importante que tenha relevância jurídica para modificar a higidez da prestação de contas.
Mas, destaca-se que, não é apenas na prestação de contas eleitoral que pode haver a incidência do crime em questão, uma vez que, tendo a parte se utilizado de documento do qual haja informação inverídica e seja relevante ao fim a que se destina, qualquer documento utilizado em processo eleitoral poderá ser tipificado nos moldes do artigo 350 do Código Eleitoral, como exemplo no caso do uso de declaração, onde haja afirmação falsa acerca do recebimento de benesse em troca de votos, anexada aos autos de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, com vias a tentativa de cassação de registro ou mandato de adversário político.
Nesse caso específico, estamos diante de situação de extrema gravidade, artifício comumente utilizado, com o fim de, ofendendo a legitimidade e lisura do pleito eleitoral, obter por via transversa o que não foi obtido nas urnas, em evidente e grave ofensa à soberania popular.
Ademais, a consumação do delito não exige qualquer resultado ulterior, pois estamos diante de crime formal, cuja consumação ocorre com a mera ação omissiva ou comissiva, independente da ocorrência de prejuízo, bastando para sua configuração a potencialidade de dano decorrente da falsidade do conteúdo do documento, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 96.233/SP.[4]
Dessa forma, seja na prestação de contas ou em outro processo eleitoral, havendo a realização de mais de um crime em decorrência do crime de falsidade ideológica eleitoral, não há que se falar em progressão criminosa, mas em crime progressivo e, sendo assim, o agente responde pela falsidade ideológica e por outro crime que venha a praticar, especialmente diante da diversidade de bens jurídicos.
Porém, conforme lição de Luiz Carlos Gonçalves[5], quando a falsidade ideológica for praticada em documento que, em si mesmo, é falso (falsidade material), haverá absorção, só respondendo o agente pela falsidade material (artigos 348 ou 349 do Código Eleitoral), aplicando-se o princípio da consunção, caso em que o crime meio estará inserido no crime fim.
Retomando o tema específico da prestação de contas de campanhas eleitorais e partidárias, incide o delito do artigo 350 do Código Eleitoral quando o agente ativo falsifica dados, contas, omite fontes vedadas (artigo 24 da Lei no 9.504/1997) para objetivar a aprovação ilegal das contas e fugir à sanção de falta de quitação eleitoral (artigo 11, § 7º, da Lei 9.504/1997) ou até da inelegibilidade prevista na alínea j do artigo 1º, inciso I, da LC 64/90.
No entanto, no julgamento do HC 715-19/SP, em 20/3/2013, o Tribunal Superior Eleitoral reconheceu como atípica, portanto não constituir crime, a conduta do candidato que negou a existência de movimentação financeira em conta de campanha, em face da irrelevância do fato.
Por outro lado, o mesmo TSE, no julgamento de Ação Cautelar no HC 581, de 18/3/2008, já havia entendido que “a omissão e a inserção de informações falsas nos documentos de prestação de contas, dado o suposto montante de despesas não declaradas, configuram, em tese, o ilícito previsto no artigo 350 do CE. (...)”.
Destaca-se, ainda, que, assim como em todo crime eleitoral, neste também não se pune a conduta culposa, portanto, será sempre necessária a demonstração do dolo do falsário, ou seja, a vontade consciente de praticar o ato descrito no tipo do artigo 350 do Código Eleitoral, qual seja, “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”.
Desse modo, poderá responder pelo crime em análise, aquele que agir e aquele que se omitir, uma vez que se admite a figura omissiva e condutas comissivas, pois há duas formas de mentir e uma delas é deixar de dizer a verdade, além do que o tipo equipara a mentira (declaração falsa) com a informação pertinente (declaração diversa da que devia ser escrita), que é falsa naquele contexto, não necessariamente em todos, produzindo idêntica alteração da verdade.[6]
Assim sendo, para o candidato negligente na arrecadação financeira de sua campanha, caso em que tenha agido com culpa, não incidirá esse delito, uma vez que o agente deve agir, como dito, com o intuito de prejudicar direitos, alterar verdades substanciais sobre fatos juridicamente relevantes.
Não bastasse, há entendimento no sentido de que, em especial no caso da prestação de contas, como se tratam de declarações sujeitas a procedimento verificatório, a mentira ou omissão seriam condutas atípicas.[7]
Quanto à competência para o processo e julgamento do delito de falsidade ideológica, é importante verificar que a prática isolada do mesmo resulta na competência exclusiva da Justiça Eleitoral, seguindo os critérios de fixação da competência penal, caso em que, exceto nos casos em que haja prerrogativa de foro, caso em que seguirá regras próprias, os agentes serão processados e julgados pelos juízes eleitorais de primeira instância.
Da mesma forma, havendo conexão de crime eleitoral com crime comum, exceto no caso de delito federal e militar, a Justiça Eleitoral exercerá a via atrativa nos termos do artigo 35, inciso II do Código Eleitoral.
Portanto, se o infrator não goza de foro por prerrogativa de função, será julgado pelo juiz eleitoral da zona eleitoral do local do crime, independente da eleição que esteja disputando, nos termos do artigo 70 do Código de Processo Penal, que é aplicado subsidiariamente para o processo penal eleitoral, conforme previsão do artigo 364 do Código Eleitoral e do artigo 12 da Resolução TSE 23.396/13, que dispõe sobre apuração de crimes eleitorais.
Importante destacar que, deveras, o Tribunal Superior Eleitoral não exerce nenhuma competência criminal eleitoral originária, mas tão somente em grau recursal, nos casos em que o processo tem início nas instâncias inferiores, o que, no nosso entender, trata-se de lastimável omissão do constituinte que deveria ter atribuído a competência originária por crimes eleitorais ao TSE, àqueles que têm foro por prerrogativa de função no STJ e no STF, possibilitando, inclusive, uma maior amplitude de defesa e do exercício do contraditório, em respeito ao princípio do duplo grau de jurisdição.
Na hipótese de conexão do crime eleitoral com um crime de natureza federal, o Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência majoritária no sentido de que deve ocorrer a cisão dos processos, cumprindo à Justiça Eleitoral julgar o crime eleitoral, considerando serem ambas as infrações penais de competência constitucional. Neste sentido, CC 39.357/MG, julgado em 09/06/2004; CC 126.729/RS, julgado em 24/04/2013 e CC 107.913/MT, julgado em 24/10/2012.
Em conclusão, guardadas as devidas proporções, quanto à gravidade da sanção a ser aplicada e, ainda, no que diz respeito à competência para processo e julgamento do tipo penal constante do artigo 350 do Código Eleitoral — Falsidade ideológica eleitoral —, poderá responder por este o agente que, voluntaria e conscientemente, incluir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita ou, ainda, omitir informação que deveria constar, nos autos do processo de prestação de contas eleitoral, com o fim único de prejudicar direitos e burlar a fiscalização da Justiça Eleitoral.
[1] GOMES. José Jairo. Direito Eleitoral. p. 298 apud ALVIM. Frederico Franco. Curso de Direito Eleitoral. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2016. p. 390.
[2] Ibidem. p. 623.
[3] PUGLIA. Manual de Direito Penal, v. 2. p. 218.
[4] GONÇALVES. Luiz Carlos dos Santos. Crimes eleitorais e processo penal eleitoral. São Paulo: Atlas, 2012. p. 117-118.
[5] Idem.
[6] Ibidem. p. 116.
[7] TRE-SP. Recurso Criminal nº 2093, julgado em 25/2/2010 apud Idem. p. 120.
Karina Kufa é advogada especialista em direito eleitoral e processual eleitoral. Presidente do Instituto Paulista de Direito Eleitoral (Ipade). Coordenadora/coautora do livro Aspectos polêmicos e atuais no direito eleitoral, Arraes (2012) e coautora dos livros Direito Eleitoral contemporâneo, LEUD (2014) e Prismas do direito eleitoral – 80 anos do tribunal eleitoral de Pernambuco, Forum (2012).
Amilton Augusto Kufa é advogado da Kufa Sociedade de Advogados, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho e em Direito Público pelo Instituto Superior do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Marcos Ramayana Blum de Moraes é procurador de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ex-coordenador das promotorias eleitorais e assessor parlamentar do procurador-geral de Justiça e auxiliar do procurador regional eleitoral no Estado do Rio de Janeiro.
Ana Luiza Sodré de Moraes é advogada. Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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CONJUR
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Acesso em 04/05/2017