Várias associações classistas de magistrados, membros do Ministério Público e auditores fiscais encaminharam ao presidente da República, Michel Temer, o Ofício Anamatra n. 219/2018, de 10/4/2018, mediante o qual requereram o veto integral do Projeto de Lei 7.448/2017 (“PL 7.448/2017”), que foi recentemente aprovado pelo Congresso Nacional e aguarda sanção presidencial. Esse projeto insere diversas disposições na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“LINDB”) com o objetivo de garantir segurança jurídica e promover eficiência na criação e na aplicação do direito público. As entidades aduzem que a proposta é repleta de conceitos vagos, cria “campos de irresponsabilidade” e ainda defendem que os agentes públicos devem responder em casos de dolo ou culpa, em qualquer grau, e não somente quando presente o erro grosseiro.
Diversamente do que alegam as associações, se sancionada, a proposição dará ensejo a uma nova legislação que certamente representará um marco de moralidade e respeito na relação entre o Estado e o cidadão no Brasil, marco esse já existente em nações desenvolvidas, como os Estados Unidos, conforme se demonstrará.
O PL 7.448/2017
Elaborado por uma comissão de juristas liderada pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano Azevedo Marques e apresentado pelo senador Antônio Anastasia, o PL 7.448/2017 representa uma medida voltada a “aumentar a segurança e a eficiência na aplicação do direito público”i.
Os preceitos legais aprovados — que acrescentam 11 novos artigos ao texto da LINDB — foram elaborados a partir de uma compreensão racional do atual estágio do direito público, no qual a ficção de que a legislação escrita circunscreve prévia e inequivocamente todas as situações fáticas em relação às quais ela é aplicada já se encontra superada.
Consoante destacaram os professores Marco Antônio Alberto e Conrado Hübner, “os artigos propostos preveem procedimentos e obrigações que vinculam as autoridades públicas em três blocos normativos”ii:
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o primeiro bloco incrementa o dever de motivação, impondo novas obrigações ao julgador que reexamina uma decisão administrativa, como a de investigar os obstáculos e as dificuldades enfrentadas pelo gestor no momento da tomada da decisão impugnada e a de não considerar erro grosseiro a decisão administrativa motivada em interpretação razoável, ainda que essa não tenha prevalecido (arts. 20, 21, 22 e 28);
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o segundo protege a estabilidade dos direitos subjetivos, prevendo inclusive a possibilidade de uma ação declaratória de ato ou contrato administrativo, a qual poderá ter o Ministério Público no polo passivo, e determinando a edição de enunciados para clarificar entendimentos jurídicos (arts. 23, 24, 25 e 30); e
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o terceiro bloco estipula mecanismos capazes de examinar circunstâncias específicas, tais como ganhos ou prejuízos excessivos, que a tramitação do processo possa ter ocasionado às partes, bem como impõe a obrigatoriedade de consultas públicas para a edição de atos normativos (arts. 27 e 29).
O objetivo deste artigo, no entanto, não é examinar com detalhe, uma a uma, as novas disposições aprovadas pelo Congresso. Faz-se, aqui, um convite ao leitor para que proceda a esse exame e forme um juízo crítico acerca da proposição.
A intenção deste texto é focar nos dispositivos que eximem o administrador de responsabilidade no caso de erro não grosseiro, isto é, quando o gestor aplica um entendimento que não vem a prevalecer no momento em que o Judiciário pacifica a questão jurídica. A responsabilização do gestor é algo que comumente ocorre nos dias atuais e configura uma das maiores injustiças do nosso sistema jurídico. Outros dispositivos serão rapidamente abordados.
A Visão Interacionista do Direito
Para Lon Fuller, ex-professor da Universidade de Harvard, o direito pode ser definido como “a empreitada de sujeitar a conduta humana à governança de regras”iii. Segundo esse autor, para um sistema de regras ser qualificado como jurídico, deve almejar perdurar no tempo e, para tanto, não terá outra alternativa senão regular de forma adequada o que exige de uma determinada coletividade.
Essa regulação adequada, por sua vez, se dá por meio da observância de oito princípios básicos: o direito deve ser (1) público, (2) prospectivo, (3) claro, (4) consistente, (5) congruente, (6) duradouro, (7) geral e (8) possível de ser cumpridoiv. Fuller exemplifica que “assim como nós não poderíamos descrever como ‘faca’ algo que não tenha poder cortante, não poderíamos descrever um sistema sem essas características como jurídico”v. O filósofo afirma que esses oito princípios da legalidade compõem o que se denomina a “moralidade interna que torna o direito possível”vi.
Segundo Kristen Rundle, professora da London School of Economics, a obediência a tais princípios enseja uma relação de reciprocidade entre o Estado – o criador das regras – e o cidadão – o cumpridor das normas. A reciprocidade defendida por Fuller sinaliza para igual presença e responsabilidade do Estado e do cidadão na criação e na obediência das leisvii. Daí a razão pela qual a doutrina de Fuller é denominada interacionista e não unidirecionalviii.
Fuller e o PL 7.448/2017
Muitos indagarão o que a teoria de Fuller tem a ver com esse debate. A resposta, como se verá, é simples: muita coisa.
A primeira questão que se deve ter em mente é a forma para a qual evoluíram os métodos de regulação de comportamentos no Brasil. Se antes optávamos por regras, hoje a dominância é dosprincípios. Esse fato é inequívoco. Os princípios dominam, sim, o debate jurídico, inclusive o direito administrativo, a teor do art. 37 da Constituição Federal. Basta ler um informativo do STF ou do STJ e diagnosticar o largo uso desses standards nas decisões para consentir com essa conclusão.
O problema é que, como é notório, os princípios (ainda que escritos em legislação) não são, em regra, mandamentos definitivos ou de aplicabilidade tudo-ou-nada, nas dicções de Alexy e Dworkin, respectivamente. Pelo contrário, são mandamentos de otimização, normas prima facie – também segundo Alexy – ou standards não conclusivos, na maior parte dos casosix. São normas abertas por natureza e não por defeitox. Isso significa que várias aplicações dos princípios podem não ter sido antecipadas pelo legislador propositalmente e apenas se mostrarão adequadas num caso específico, no momento da decisão. Muitas vezes essa aplicação é controvertida e não é imaginada pelo administrador ou, ainda que pudesse ser, não é a única solução aceitável para aquela situação.
Essas circunstâncias são capturadas por juristas que atualmente defendem ser impróprio dizer que a atribuição de sentido a princípios escritos seja um ato de interpretação. É comum afirmarem que os princípios são concretizados, em vez de interpretados, pois os resultados são alcançados em conformidade, mas não são determinados, pelo texto jurídicoxi.
Gustavo Zagrebelsky, ex-membro da Corte Constitucional da Itália, assenta que a concretização dos princípios se dá de duas maneiras: ou por meio do legislador, mediante a edição de regras (leis) que alcançam fatos futuros, ou por meio do juiz, mediante uma decisão que alcança fatos passadosxii. Ele descreve que seria incorreto falar em interpretação de princípios pelo legislador ou pelo juiz: “não é interpretação – no sentido que o termo é usado por juristas – porque os termos que expressam os princípios legais contêm pouco para ser interpretado”xiii. “Não será umaoperação silogística, mas uma forma argumentativa que não pode ser reduzida por fórmulas ou efetivada por inferências e deduções”xiv.
Daí Zagrebelsky afirmar que “essa característica faz com que a jurisprudência baseada em princípios seja plástica e adaptável, enquanto que a jurisprudência por regras tenha por objetivo maior rigidez e estabilidade.”xv Em virtude dessas características de plasticidade e adaptabilidade, o jurista italiano nota que a regulação de condutas por princípios deve ser evitada em áreas mais sensíveis aos direitos fundamentais, como no direito penal, em que é preferível que o legislador preveja os elementos do crime e as suas penas mediante regras prospectivas e clarasxvi.
Ao inserir a obrigação de que órgãos de controle, sejam administrativos ou judiciais, considerem as dificuldades fáticas e interpretativas que tiveram os gestores ao tomar determinada decisão, o PL 7.448/2017 demonstra compreender esse ambiente de predominância de regulação de comportamentos por meio de standards vagos de conduta, algo que os julgadores parecem ainda não ter entendido, salvo em raríssimas exceções.
É o que o projeto faz quando, por exemplo, propõe a inserção do art. 20 à LINDB, estabelecendo que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão.” Se, como destacado, a aplicação de valores jurídicos abstratos, tais como os princípios, não pode ser reduzida a uma operação silogística, de inferências e deduções, como ocorre com as regras, nada mais coerente do que exigir tanto do gestor quanto do órgão de controle o ônus de uma argumentação adequada, que avalie as consequências práticas do sentido que ele está atribuindo.
O mesmo ocorre com o parágrafo único do art. 28 proposto pelo PL 7.448/2017, que estipula não se considerar “erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais.” Se a concretização dos princípios pode ocorrer caso a caso quando o seu conteúdo não estiver previamente determinado em lei, nada mais justo que não se considere incorreta uma das interpretações possíveis, caso estejam presentes elementos que demonstrem que o agente público teve a intenção de acertar e, portanto, de cumprir o direito. Como já disse a Suprema Corte dos EUA, “se os juízes discordam acerca de uma questão constitucional, é injusto responsabilizar [o agente] por escolher o lado perdedor da controvérsia.” xvii
O exercício de raciocínio sobre as dificuldades encontradas pelo gestor no momento em que ele tomou a decisão administrativa reflete uma atitude de respeito e compreensão sobre a possibilidade de incerteza das normas jurídicas que estavam à sua disposição no momento da tomada de decisão, atitude essa consentânea com sistemas jurídicos mais avançados, que levam a sério a obrigação do Estado de legislar prospectivamente e com clareza – princípios que compõem a noção de moralidade interna do direito de Fuller.
A atitude interacionista de respeito ao cidadão também se verifica no fato de que esses sistemas mais avançados só admitem punir a pessoa que consciente e voluntariamente aceitou descumprir uma norma jurídica claramente determinada,xviii e não aquele que meramente escolheu razoável e justificadamente a tese perdedora da controvérsia, sem poder antecipar que ela não seria a prevalecente.
Precedentes no Direito Brasileiro e no Direito Comparado
Engana-se, porém, quem acredita que o exame proposto no art. 28, parágrafo único, do PL 7.448/2017, no sentido de não considerar erro grosseiro a decisão tomada com base em interpretação aceitável, ainda que essa não venha a prevalecer, já não ocorra no direito brasileiro.
Um exemplo claro é o que se verifica com a aplicação do princípio da boa-fé para impedir a devolução de valores recebidos da Administração Pública por servidores públicos que posteriormente são considerados ilegais. O STF possui o entendimento que “a boa-fé na percepção de valores indevidos bem como a natureza alimentar dos mesmos afastam o dever de sua restituição.”xix Por qual razão a Corte sedimentou um entendimento dessa natureza, que autoriza um servidor a se enriquecer ilicitamente, já que a percepção da vantagem foi ao fim considerada indevida? Justamente pela presença de boa-fé, pois constatou que o servidor não intencionou violar o direito quando recebeu a vantagem da Administração – apesar de a violação ter ocorrido – especificamente porque não havia direito claramente determinado no sentido de que a vantagem era indevida.
Outro exemplo se verifica em casos em que há modificação de entendimento pela Administração. Quando isso ocorre, a própria Lei 9.784/1999 impede a aplicação retroativa da nova interpretação. É o que estabelece o art. 2°, parágrafo único, inciso XIII, ao dizer que “nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”. Nesse contexto, o artigo 23 do PL 7.448/2017, ao impor o exame da viabilidade de instituição de um regime transitório, apenas mitiga efeitos drásticos que a mudança de interpretação pode causar. O STF adotou postura similar, por exemplo, quando assentou que o Ministério Público de SP poderia, até que implementada a Defensoria Pública no Estado, continuar propondo ações cíveis ex delicto, ainda que a Corte entendesse que o art. 68 do CPP não havia sido recepcionado pela CF/88xx – a famosa doutrina danorma ainda constitucional. Esse entendimento nada mais é que a implementação de um regime transitório.
O STF também já assentou que a oitiva de órgão jurídico para que se pronuncie sobre a exigibilidade ou não de licitação afasta o dolo do administrador de cometer o crime do art. 89 da Lei n. 8.666/1993, o qual se consubstancia na vontade livre e consciente de praticar o ilícito penal.xxi Se, ao consultar o órgão jurídico numa questão controvertida, o administrador recebe o sinal verde para agir, não pode depois ser responsabilizado se a posição orientada não prevalecer. Como afirmou o Ministro Fux, seria o típico caso de “crime de exegese”, o qual não é punível no direito brasileiroxxii, pois o agente público, ao solicitar a orientação, pretendeu observar o direito, não tendo o dolo de descumpri-lo. Essa oitiva afasta justamente a possibilidade do erro grosseiro previsto no § 1° do artigo 28 do PL 7.448/2017, caso a opinião esteja adequadamente fundamentada.
No direito comparado, existem inúmeros exemplos de aplicação dessa reflexão interacionista do direito. Devido ao reconhecimento das graves consequências que estatutos penais vagos podem ter na interferência com a liberdade dos cidadãos é que, nos Estados Unidos, a Suprema Corte há tempos firmou a compreensão de que a cláusula constitucional do devido processo legal impõe que os cidadãos tenham fair notice do conteúdo dos tipos penais ou, em outras palavras, sejam inequivocamente cientificados do que é proibido. Para o Tribunal, “ninguém deve ser compelido, sob o risco de ser privado de vida, liberdade ou propriedade, a especular qual é o sentido de leis penais. Todos possuem o direito de ser informados sobre o que o Estado impõe ou proíbe.”xxiiiIsso reflete a preocupação com a função orientadora do direito penal. Sobre o tema, confira-se o que dito pela Corte em Connally v. General Construction. Co., decidido em 1926:
“Que os termos de uma lei penal criadora de um novo crime devem ser suficientemente explícitos para informar aqueles que devem obedecê-la qual conduta de sua parte os renderá sujeitos às suas penalidades é um bem conhecido requisito que atende as noções ordinárias de jogo limpo e estado de direito seguro. E uma lei que ou proíba ou requeira a realização de um ato em termos tão vagos que homens de inteligência comum devem necessariamente adivinhar o seu conteúdo e divergir sobre a sua aplicação viola a primeira noção de devido processo legal.”xxiv
É, assim, dominante na jurisprudência americana o entendimento de que “uma lei [penal] deixa de atender ao que requer a cláusula do devido processo quando ela é tão vaga ou sem standardsque deixa o público incerto sobre a conduta que proíbe ou deixa juízes e julgadores livres para decidir, sem qualquer standard legal fixo, o que é proibido e o que não é proibido num caso particular.”xxv Nesses casos, tem-se a aplicação da teoria da nulidade por vagueza (void for vagueness), o que torna a norma penal inconstitucional.
Em casos nos quais a vagueza pode ser sanada pela via judicial, a Suprema Corte Americana pode se eximir de proclamar a inconstitucionalidade e deixar de aplicar o entendimento definido ao caso concretoxxvi. Isso pode ocorrer mediante o uso de uma regra antiga da common law, denominada regra de leniência (rule of lenity), a qual assenta que ambiguidades na lei penal devem ser solucionadas em favor do réu. Como observa William Eskridge, “se uma lei punitiva não proíbe a conduta claramente, o cidadão não pode ser punido.”xxvii
Ainda nos Estados Unidos, no âmbito civil, foi também consolidada pela Suprema Corte a doutrina da imunidade qualificada (qualified immunity) no caso de responsabilização pessoal de servidores por danos a terceiros. Segundo tal doutrina, os “servidores públicos somente podem ser punidos quando violarem um direito legal ou constitucional que estiver claramente determinado no momento da prática da conduta”xxviii. A Corte pontua que um servidor “somente pode ser condenado por violar um direito claramente determinado se os contornos de tal direito estiverem suficientemente definidos a tal ponto que qualquer servidor público razoável em seu lugar compreenderia que estava violando tal direito, […] o que significa que os precedentes jurisprudenciais existentes […] colocaram a questão legal ou constitucional fora de debate”xxix.
A doutrina da imunidade qualificada é adotada nos EUA tanto por razões pragmáticas quanto por razões morais: (a) pragmáticas porque evita que servidores tenham que constantemente se dedicar a defesas em ações judiciais, o que os impediria de concentrar as suas atenções na atuação administrativa; (b) morais porque somente permite punições àqueles que descumprem a lei conscientemente, eximindo de sanções os servidores que tinham dúvidas razoáveis e fundadas sobre se cometiam ou não ilícito.
Da mesma forma, essa doutrina evita que servidores deixem de tomar decisões que acreditem possam beneficiar o público em geral, por receio de eventual responsabilização. Ou seja, a imunidade qualificada tem por objetivo encorajar a prática de atos aparentemente legais, evitando efeitos de dissuasão não desejados (unintended deterrence effect)xxx, dando aos servidores um espaço razoável até mesmo para o cometimento de erros não considerados grosseiros.xxxi
O ponto forte da doutrina é que, ao aplicá-la, a Suprema Corte não deixa de decidir sobre o comportamento dos servidores, considerando-o legal ou ilegal. A Corte executa uma dupla análise: esclarece qual a interpretação correta para futuros casos, desenvolvendo o direito, mas afasta a punição no caso concreto, pois considera que somente a partir dessa decisão no caso específico passa a existir direito claramente determinado (clearly established law) sobre o tema.
Esses três exemplos apenas demonstram que o PL 7.448/2017 equiparará a legislação brasileira às melhores práticas internacionais, de sistemas avançados, que levam a sério a necessidade de o cidadão/administrador conhecer o que o Estado lhe demanda. O fato de não punir o erro, salvo o grosseiro, por exemplo, não impedirá que os órgãos de controle fixem a correta interpretação das normas para casos futuros.
Outra referência importante é o fato de o PL 7.448/2017 inserir o artigo 21 na LINDB, prevendo que “a interpretação das normas sobre gestão pública considerará os obstáculos e dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.” Essas dificuldades, em caso de ações movidas contra policiais, por exemplo, são levadas em conta pela Suprema Corte dos Estados Unidos. A Corte assenta que, nesses casos, deve-se analisar a legalidade da ação “sob a perspectiva do agente de polícia razoável presente na cena, e não com visão 20/20 e em retrospectiva, […] levando em conta o fato de que policiais são usualmente forçados a tomar decisões em frações de segundo – em circunstâncias que são tensas, incertas e evoluem rapidamente – acerca do montante de força que é necessário em uma situação particular.” xxxii
Aliás, quem assistiu o filme Sully – O Herói do Hudson, que conta a história do piloto da companhia US Airways Chesley Sullenberger, que pousou um avião A320 no Rio Hudson, em Nova Iorque, nota essa preocupação nos julgadores da legalidade da conduta do piloto. Se as dificuldades de decisão no momento de crise – havia a dúvida se a decisão adequada era pousar o avião no rio ou retornar ao aeroporto – não tivessem sido levadas em conta para análise da culpa do piloto, certamente ele estaria condenado e de maneira injusta, como o filme bem explica.
Sendo assim, não há dúvida de que a análise de eventuais dificuldades fáticas ou jurídicas enfrentadas pelo gestor, tal como proposto no PL 7.448/2017, deve ser levada em conta se se quiser, de fato, somente punir o servidor que efetiva e voluntariamente intenciona violar o direito. Não é pertinente em um momento futuro, no qual essas dificuldades já se esvaziaram, considerar que elas simplesmente não existiram ou não foram relevantes.
Diversos outros exemplos poderiam ser dados para justificar as demais proposições do projeto, mas apenas mencionarei um último. As tutelas de urgência deferidas pela ministra Rosa Weber nas ADIs 3.406 e 3.470, para suspender os efeitos erga omnes da declaração de inconstitucionalidade da lei que autorizava o uso do amianto crisotila, mesmo após o Plenário do STF já ter concluído o julgamento, mostram a necessidade de se indicar as consequências de invalidações de preceitos legais, atos, entre outros, tal como exige o art. 21 do projeto. Pelo que relatou a decisão da Ministra Rosa, quando da conclusão do julgamento das ADIs, existiam 6,500 toneladas de amianto no Porto de Santos aguardando serem embarcadas para exportação. Esse amianto poderia ou não ser exportado depois do julgamento do Plenário? Esse é um típico caso em que consequências práticas de uma decisão de inconstitucionalidade tiveram que ser examinadas.
Conclusão
O PL 7.448/2017 merece ser sancionado. As críticas apontadas, sobretudo as direcionadas aos dispositivos aqui examinados, não procedem, consoante a experiência prática brasileira e internacional evidenciam.
Como afirmou Mauro Cappelletti, citando o jurista inglês Lord Kenneth Diplock, “a regra de que um novo precedente se aplica a atos praticados antes do seu estabelecimento não é uma característica essencial do processo judicial. É uma consequência de uma ficção legal de que as Cortes apenas esclarecem o direito que sempre existiu. O tempo chegou, eu sugiro, para refletir se devemos descartar essa ficção.”xxxiii
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i Carlos Ari Sundfeld & Bruno Meyerhof Salama, Chegou a Hora de Mudar a Velha Lei de Introdução, em Segurança Jurídica e Qualidade das Decisões Públicas (Senado Federal, Brasília, 2015), pag. 13. Disponível em http://antonioaugustoanastasia.com.br/wp-content/uploads/2015/09/segurancajuridica.pdf.
ii Marco Antônio Moraes Alberto & Conrado Hübner Mendes, Por que uma lei contra o arbítrio estatal? em JOTA (12.4.2016, 18h23), https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/por-que-uma-lei-contra-o-arbitrio-estatal-12042018
iii Lon F. Fuller, The Morality of Law, rev. ed., 124 (New Haven: Yale University Press, 1964). Tradução livre.
v Denise Meyerson, Understanding Jurisprudence, 42 (New York: Routledge, 2007). Tradução livre.
vi De fato, não há dúvidas de que um sistema jurídico no qual as regras são (a) editadas empregando textos vagos; (b) promulgadas intencionalmente para atingir determinados indivíduos dentro de uma coletividade; (c) feitas para punir condutas retroativamente ou exigindo mais do que os cidadãos podem efetivamente cumprir; (d) aplicadas de maneira inconsistente e sempre sujeitas a mudanças repentinas; tende a ser um sistema com reduzida eficácia e pouquíssimas chances de perdurar. Como exemplo disso, os defensores de Fuller apontam que nenhum dos regimes jurídicos utilizados pelos seus críticos para atacar a sua teoria – Alemanha Oriental, Alemanha Nazista ou o regime do Apartheid na África do Sul – perdurou por muito tempo. Na obra The Morality of Law, para introduzir essas oito características, Fuller conta a história do sistema legal de um reino imaginário comandado pelo monarca Rex, o qual, por reiteradamente violar esses princípios de legalidade, acaba sendo um desastre.
vii Ibid.
viii Idem, p. 122.
ix Existem hipóteses em que a aplicação de um princípio pode ser até mais clara do que a aplicação de uma regra. Isso decorrerá do fato de a situação em exame já ter sido verificada anteriormente e decidida num certo sentido pelos órgãos de controle, de forma definitiva. Além disso, certos sentidos de princípios morais podem ser bastante incontroversos. Um exemplo é o crime de homicídio doloso: ainda que não haja uma norma dizendo que homicídio doloso é imoral, não há dúvida de que quem pratica um ato dessa natureza infringe a moralidade positiva.
x Gustavo Zabrebelsky, Ronald Dworkin’s Principle Based Constitutionalism: An Italian Point of View Roundtable, 1 Int’l J. Const. L. 621, 631 (2003).
xi Winfried Brugger, Legal Interpretation, School of Jurisprudence, and Anthropology: Some Remarks From a German Point of View, 42 Am. J. Comp. L. 395, 398 (1994).
xii Gustavo Zabrebelsky, Ronald Dworkin’s Principle Based Constitutionalism: An Italian Point of View Roundtable, 1 Int’l J. Const. L. 621, 631 (2003).
xiv Idem.
xvi Idem.
xvii Wilson v. Layne, 526 U.S. 603 (1999). No caso, debatia-se a responsabilidade de um policial.
xviii Essa obrigação é inequívoca no Brasil. O período de vacatio legis previsto no art. 1° da LINDB é uma expressão dessa necessidade, bem como o art. 11 da Lei Complementar 95/98.
xix MS 25921 AgR-ED, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 02/08/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-174 DIVULG 17-08-2016 PUBLIC 18-08-2016).
xx “LEGITIMIDADE – AÇÃO ‘EX DELICTO’ – MINISTÉRIO PÚBLICO – DEFENSORIA PÚBLICA – ARTIGO 68 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – CARTA DA REPÚBLICA DE 1988. A teor do disposto no artigo 134 da Constituição Federal, cabe à Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a orientação e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV, da Carta, estando restrita a atuação do Ministério Público, no campo dos interesses sociais e individuais, àqueles indisponíveis (parte final do artigo 127 da Constituição Federal). INCONSTITUCIONALIDADE PROGRESSIVA – VIABILIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DE DIREITO ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE – ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA DOS NECESSITADOS – SUBSISTÊNCIA TEMPORÁRIA DA LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ao Estado, no que assegurado constitucionalmente certo direito, cumpre viabilizar o respectivo exercício. Enquanto não criada por lei, organizada – e, portanto, preenchidos os cargos próprios, na unidade da Federação – a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista. Irrelevância de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento. (RE 135328, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/1994, DJ 20-04-2001 PP-00137 EMENT VOL-02027-06 PP-01164 RTJ VOL-00177-02 PP-00879); Cf. também RE 341717 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 05/08/2003, DJe-040 DIVULG 04-03-2010 PUBLIC 05-03-2010 EMENT VOL-02392-03 PP-00653 RSJADV mar., 2010, p. 40-41.
xxi Cf. Inq 3753, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 18/04/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-113 DIVULG 29-05-2017 PUBLIC 30-05-2017;
xxii Inq 2482, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-035 DIVULG 16-02-2012 PUBLIC 17-02-2012.
xxiii Theodore J. Boutros, Jr. & Blaine H. Evanson, The Enduring and Universal Principle of “Fair Notice”, 86 S. Cal. L. Rev. 193, 195 (2013).
xxiv Connaly v. General Const. Co., 269 U.S. 385, 391 (1926). Tradução livre.
xxv Giaccio v. Pennsylvania, 382 U.S. 399, 402–03 (1966). Tradução livre.
xxvi Foi o que ocorreu no caso Mitchell v. City of Charleston, 378 U.S. 551 (1964).
xxvii William N. Eskridge Jr., Philip P. Frickey, Elizabeth Garrett and James J. Brudney, Cases and Materials on Legislation and Regulation – Statutes and the Creation of Public Policy 693 (West, 5th, 2014).
xxviii City and County of San Francisco, California, et al v. Sheehan, 575 US _ 2 (2015). Tradução livre de: “[p]ublic officials are immune from suit under 42 U.S.C. §1983 unless they have ‘violated a statutory or constitutional right that was ‘“‘clearly established”” at the time of the challenged conduct”.
xxix Idem. Ibidem. Tradução livre de: “[a]n officer ‘cannot be said to have violated a clearly established right unless the right’s contours were sufficiently definite that any reasonable official in [his] shoes would have understood that he was violating it, […] meaning that ‘existing precedent’ … placed the statutory or constitutional question beyond debate”.
xxx Fred Smith, Formalism, Fragmentation and The Future of Qualified Immunity, artigo ainda não publicado apresentado no Faculty Workshop da Fordham University Law School em 15.3.2018.
xxxi Diversos artigos apontam que administradores públicos muitas vezes deixam de agir, ainda quando acreditam que suas ações são lícitas, com medo de responsabilização. Cf. Fernando Vernalha Guimarães, O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle, DIREITO DO ESTADO (Jan. 31, 2016), http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle; Joel Niebuhr & Pedro Niebuhr, Administração Pública do Medo – Ninguém quer criar, pensar noutras soluções. O novo pode dar errado e o erro é punido severamente, JOTA (Nov. 23, 2017 8:07), https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/administracao-publica-do-medo-23112017; Carlos Ari Sundfeld, Chega de axé no direito administrativo, HUFFPOST (Jan. 26, 2017 21:02), https://www.huffpostbrasil.com/car-los-ari-sundfeld/chega-de-axe-no-direito-
xxxii Graham v. Connor, 490 U.S. 386, 396-397 (1989).
xxxiii Mauro Cappelletti, The Judicial Process in Comparative perspective, 36 (Belknap Harvard, 1st ed. 1986). Tradução livre.