Nenhum direito é absoluto. Essa expressão, muito conhecida no mundo jurídico, aponta para o fato de que os direitos, mesmo os fundamentais, podem ser relativizados ou mitigados, mormente quando colidem com outros direitos de índole constitucional, fato que exige o sopesamento de ambos.
Noutro giro, ao interpretar uma norma constitucional, o exegeta deve proporcionar a sua máxima eficácia possível, sem violar, todavia, o seu conteúdo. Na lição de Pedro Lenza, “também chamado de princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais deve ser entendido no sentido de a norma constitucional ter a mais ampla efetividade social”.
Firmes nessas premissas, entendemos ser de grande valia a análise de situação que se avizinha.
Segundo a Constituição Federal, deputados e senadores têm, respectivamente, quatro e oito anos de mandato, ou seja, uma ou duas legislaturas. As eleições para os cargos que compõem o Congresso Nacional ocorrem concomitantemente com o primeiro turno das eleições para presidente e vice-presidente da República, o que se dá no primeiro domingo de outubro do último ano da legislatura.
Durante todo o mandato, ao menos em tese, é permitido aos congressistas a participação no processo legislativo, que compreende a elaboração de leis lato sensu.
Porém, há um momento específico que merece a análise detida do meio jurídico, principalmente em razão da estratégia adotada pelo atual governo, que postergou a análise e a votação da Reforma da Previdência para momento posterior às eleições.
Trata-se do período entre as eleições para o Congresso Nacional e a posse dos novos deputados e senadores eleitos.
As eleições para o Congresso Nacional são o momento no qual os mandatos dos atuais ocupantes das cadeiras do Legislativo são submetidos ao julgamento popular. Nessa ocasião, o povo diz se aprova ou desaprova o rendimento dos seus deputados e senadores. Os aprovados são reeleitos, enquanto que os reprovados perdem o seu mandato.
A leitura rasa dos preceitos constitucionais permite a conclusão de que aqueles deputados e senadores não reeleitos poderiam participar da análise, discussão e votação de temas como a Reforma da Previdência, mesmo após as suas reprovações nas urnas.
Mas, muito embora tenham sido eleitos no escrutínio anterior, os deputados e senadores não reeleitos têm mesmo legitimidade para participar do processo legislativo no período que separa as eleições para o Congresso Nacional e a posse dos novos deputados e senadores eleitos? Entendemos que não.
Com o passar dos séculos, aquele modelo grego de democracia direta, no qual o povo reunia-se na Ágora para decidir as questões afeitas ao Estado, foi substituído pelo que chamamos de “democracia representativa”. Neste modelo, o poder continuou emanando do povo. No entanto, o seu exercício passou para as mãos de seus representantes, com raras exceções.
Esse modelo foi plasmado no parágrafo único do artigo 1º da CF/88, que assim dispõe: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Assim, deputados e senadores são os legítimos representantes do povo, os únicos capazes de elaborar as leis que regem a nação.
No entanto, essa legitimidade, em determinadas situações, pode existir apenas no papel, não refletindo necessariamente a realidade. Exemplo deste distanciamento entre previsão legal e realidade encontramos em Marcelo Tibo Barbosa Lima[1], que nos brindou com importante momento da história brasileira, ocorrido no Brasil, durante o período da ditadura militar:
“Há, na História do Brasil, um exemplo real. Durante a ditadura militar, os sindicatos estavam legalizados, mas a serviço da ideologia do regime. Não obstante, os operários organizaram greves e se reuniram para negociar, sem se fazerem representar pela respectiva entidade sindical, como aconteceu no ABC paulista, na década de setenta. É que, muito embora o sindicato da categoria fosse detentor da legitimidade, pela via legal, não a possuía na versão jurídica, porque não havia consenso em torno de suas decisões”.
Tal exemplo demonstra que a representatividade política não deve ser mero conceito, pois, para que uma democracia seja autêntica e real, “exige efetiva participação popular nas decisões governamentais e, em especial, na escolha de seus representantes. Mister se faz a adequação de mecanismos que ampliem a eficácia da representatividade, sejam preventivos, por meio de um maior interesse do cidadão nas eleições, sejam repressivos, por meio de práticas de Democracia semidireta, pois, como adverte Dalmo Dallari, a crise da democracia representativa pode gerar regimes autoritários”[2].
Essa efetiva participação popular não prescinde do crivo eleitoral. É nas eleições que os mandatos são colocados à prova. Nesse momento, o eleitor tem a palavra final, podendo dizer se aprovou ou reprovou a conduta de deputados e senadores durante o transcorrer de seus mandatos.
Após o julgamento nas urnas, aqueles reprovados não mais representam seus eleitores. Muito embora essa realidade seja cristalina, o modelo atual permite que os deputados e senadores rejeitados continuem participando do processo legislativo mesmo não tendo mais legitimidade para tal.
A situação é tão grave que deputados e senadores que não mais representam seus eleitores, visto que censurados pelo crivo popular, são capazes de modificar todo o ordenamento jurídico, inclusive, aprovando modificações no texto constitucional, como, no caso concreto, reformando a previdência dos trabalhadores brasileiros.
Essa anomalia é fruto do longo período que separa a eleição da posse dos novos deputados e senadores. Neste longo período, os interesses mais escusos podem ser defendidos no Congresso, uma vez que aqueles que lá ocupam seus postos já passaram pelo crivo popular e não sentem mais a pressão do eleitorado.
Sentindo-se livre das rédeas da população, deputados e senadores podem ficar à vontade para aprovar tudo o que melhor lhes aprouver, em detrimento da vontade do povo.
Deste modo, é fundamental a implementação de mecanismos que ampliem a eficácia da representatividade, como bem salientou o ministro Alexandre de Moraes. Passa também pela relativização dos direitos dos congressistas não reeleitos.
Essas medidas passam necessariamente pela proibição de atuação dos deputados e senadores não reeleitos no processo legislativo no hiato existente entre as eleições para o Congresso Nacional e a posse dos novos deputados e senadores eleitos.
Somente assim teremos a segurança de que os responsáveis pelo ordenamento jurídico serão aqueles que realmente representam a vontade do povo brasileiro, de quem verdadeiramente emana todo o poder.
[1] https://jus.com.br/artigos/19278/o-conceito-de-legitimidade
[2] Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. Pág. 132.
CONJUR
www.conjur.com.br
Acesso em 04/06/2018