Introdução: o que é democracia?
Ainda antes do resultado das eleições, já se discutia — em âmbito internacional, diga-se — em que medida a provável eleição de Jair Bolsonaro representaria (ou não) um risco à democracia brasileira.
Democracia. Conceitos como esse são, além de contestáveis[1], sujeitos às contingências do tempo: citando Nietzsche, Merquior dizia que “apenas seres a-históricos permitem uma definição no verdadeiro sentido da palavra”.
Talvez isso seja até positivo; talvez a possibilidade de ressignificar e argumentar sobre esses conceitos de forma contínua — respeitados os limites de uma interpretação autêntica — seja melhor que qualquer conclusão artificialmente definitiva que ignore a natureza própria da linguagem. Seja como for, por uma questão de obediência aos princípios de um pensamento honesto (e minimamente racional), é importante que se deixe muito claro de que ponto de vista estamos falando e qual é nossa concepção acerca de um conceito interpretativo por essência.
Simone Weil — segundo Albert Camus, “o único grande espírito de nossos tempos” — alertava para os riscos subjacentes a um vocabulário sociopolítico em que palavras como democracia, fascismo, capitalismo, autoridade são tratadas como objetivos (ou maus) absolutos, sem levar em conta que as circunstâncias da realidade são sempre mutáveis, variáveis. Quando ignoramos as condições — em todas suas possibilidades e limites — do presente, em vez de conceitos autênticos, tratamos de abstrações fixas; de mitos e monstros que acabam significando, simultânea ou sucessivamente, nada ou qualquer coisa.
Então, esclareço que quando falo em democracia, aqui, falo da democracia liberal ocidental posterior a 1870, constituída por elementos como autonomia individual, liberdade religiosa, direitos humanos, ordem legal, governo representativo. Sou, nesse sentido, herdeiro de Constant, de Tocqueville e de Staël.
Com relação ao Direito, também são muitas as concepções e abordagens teóricas acerca do fenômeno. É impossível esgotar o assunto neste espaço; séculos de Filosofia do Direito não o fizeram. Pessoalmente — como Jeremy Waldron —, estou interessado em uma teoria jurídica liberal-democrática e, portanto, assumidamente valorativa.
É, assim, a partir dessa perspectiva que este ensaio pretende (i) questionar se e em que medida a eleição de Jair Bolsonaro representa uma ameaça à democracia brasileira e, a partir daí, (ii) tecer brevíssimas reflexões sobre quais são as tarefas do presidente eleito, do Poder Judiciário e dos democratas diante e a partir desse cenário.
Bolsonaro é um risco à democracia no Brasil?
Que o uso tão indiscriminado quanto abstrato de termos como “fascista” e “nazista” por parte da oposição não nos faça perder de vista quão oportuna e verdadeiramente legítima é a pergunta. Não o fosse, não seria essa a tônica da repercussão em veículos como The Economist, como o Times e a New Yorker. Não o fosse, cientistas políticos como Francis Fukuyama (que não é comunista — e ter de reafirmar essa obviedade só mostra a profundidade do abismo em que nos colocamos a nós próprios) não teriam expressado preocupação quanto à, nas palavras de Yascha Mounk, “ameaça existencial” de que sofre a democracia brasileira.
É a própria equipe de Bolsonaro que torna a questão absolutamente válida e justificável: o ônus argumentativo parece-me estar com quem nega os sinais antidemocráticos de uma campanha marcada por episódios como a sugestãode uma nova Constituição escrita por uma “comissão de notáveis” e comentários sobre o que seria necessário para “fechar o STF” (“Não precisa mandar nem um jipe, manda um soldado e um cabo”. Afinal, “o que é o STF?”).
Para além desses aspectos, se adotada a concepção de democracia que me parece verdadeira, a pergunta torna-se ainda mais urgente se revisitados os inúmeros episódios em que o próprio Bolsonaro manifestou-se, com orgulho, em sentido (i) contrário aos direitos de minorias no país e, na mesma proporção, (ii) favorável à prática de tortura, chegando a celebrar a memória do abjeto coronel Brilhante Ustra.
Afinal, a eleição de Bolsonaro coloca a democracia no Brasil em risco?
Por si, não necessariamente.
Faça você parte dos que votaram no PSL, no PT ou em nenhum dos dois, Jair Bolsonaro será o presidente do Brasil a partir de 1º de janeiro de 2019. “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, tá ok?!”
Confesso aos leitores que imaginar esse compromisso constitucional, que deve contar com a presença de Magno Malta e Alexandre Frota, é algo que me causa náusea. Mas viver em uma democracia liberal exige que se tolere a náusea; sobretudo, exige que se tolere aqueles que têm concepções diferentes das nossas. Jair Bolsonaro foi, democraticamente, eleito pelo voto de 57 milhões de pessoas.
É bem verdade que, em meio a todos esses indivíduos, há racistas, homofóbicos, há todo tipo de ideologia reacionária, discriminatória e antidemocrática. Por que não? Ao mesmo tempo, encerrar as reivindicações de 57 milhões de pessoas apenas nesses rótulos é tão maniqueísta quanto simplista.
57 milhões de pessoas. “Os ingênuos”, dizia Marcel Proust, “pensam que as vastas dimensões dos fenômenos sociais nos ajudam a penetrar mais a fundo no animo humano”. Na verdade, “somente adentrando em uma individualidade em sua singularidade teriam a possibilidade de compreender esses fenômenos”.
Em meio à maioria do eleitorado brasileiro, que optou por Bolsonaro, há também aqueles que, desesperados, sofrem diariamente com a violência, traduzida em altas taxas de homicídios, e a desesperança, traduzida em recessão e altíssimos índices de desemprego.
Há quem rejeite as elites — política (corrupta), intelectual e artística (esquerdista) e da mídia (mentirosa) — e identifique em Bolsonaro o “homem comum”, seja ele quem for.
Há, portanto, quem recorra a uma alternativa — qualquer uma — em face das circunstâncias que não lhe pareciam oferecer nenhuma.
Posso sustentar e argumentar que é um voto ruim; isso não significa que não seja legítimo. O populismo é sempre um sintoma, e, nas palavras de João Pereira Coutinho, triunfa “quando as elites políticas ignoram a realidade”.
Seja como for, a democracia é um ideal que requer compromissos. Um deles recai sobre os vencidos: aceitar a legitimidade dos resultados que nos desagradam.
Agora, o compromisso do vencedor revela-se pelo outro lado dos números. Como bem lembra Reinaldo Azevedo, 31,93% das pessoas aptas a votar optaram por outro número e, com isso, outro projeto de país; 30,87% não se sentem representado por nenhum dos dois que chegaram ao fim da disputa.
Isso, por óbvio, não significa que o novo presidente não tenha legitimidade; Bolsonaro foi legitimamente eleito com a maioria dos votos. Agora, isso significa, sim, que o presidente não dispõe de carte blanche, de autoridade irrestrita para agir desconsiderando os interesses daqueles que não compartilham de suas crenças. Aquele que se propõe a governar e, como Jair Bolsonaro, promete ser democrático ao fazê-lo deve ter sempre em mente que governa para o país todo, não apenas para metade.
O que quero dizer é que a eleição de Bolsonaro, como tal, dentro do processo democrático, é legítima; legítima porque se deu dentro das regras estabelecidas e expressa a vontade popular, que reivindica, ainda que de forma difusa, uma série de pautas que a elite política não foi capaz de enfrentar.
Mas as coisas não são tão simples quanto um discurso de Bolsonaro. Além de algumas dessas reivindicações serem elas mesmas antidemocráticas por essência, a própria democracia é capaz de engendrar o despotismo.
Um episódio que ilustra um pouco desse paradoxo e possibilita sua reflexão é a influência do WhatsApp e, sobretudo, do escândalo das notícias falsas sobre as eleições.
As redes sociais não seriam uma explosão de democracia, a mais perfeita definição de “horizontalidade da palavra”? Talvez sim. Mas, como bem esclarece Rodrigo de Lemos, ao se tornar “livre das proibições tradicionais”, a disseminação de informações livra-se também “dos antigos parâmetros de aceitabilidade”. É daí que pode emergir “o espectro do despotismo”.
O financiamento de empresários a um serviço de disseminação de notícias falsas em redes sociais, exposto pela jornalista Patrícia Campos Mello na Folha, acabou por revelar mais uma característica iliberal de Bolsonaro e uma parcela de seu eleitorado: a Folha foi acusada de... fake news. A jornalista, perseguida por militantes que apoiam o militar.
Uma imprensa livre também é um dos elementos que constituem uma democracia autêntica. Não gosta da Folha? Troque de jornal.
Contrariando John Dewey, talvez a cura para os males da democracia não esteja em mais democracia. Às vezes, mais democracia gera fake news e, sobretudo, fake readers.
Seja como for, a eleição de Bolsonaro não se explica somente pela disseminação de notícias falsas. Dizer isso é desrespeitar a autonomia de seus eleitores. Goste-se ou não, o discurso de Bolsonaro conquistou a maioria do país, que elegeu seu presidente dentro das regras institucionais. A eleição, repito, é legítima.
O que preocupa é o que pode vir pela frente — especialmente quando, dadas as contradições da campanha e do discurso, ninguém sabe o que vem pela frente.
Só o tempo dirá se Bolsonaro pretende colocar em prática sua promessa de “quebrar o sistema” ou se pretende honrar seu juramento a Deus e exercer um governo “defensor da Constituição, da democracia e da liberdade”.
Que Bolsonaro seja o homem cristão que diz ser e honre seu juramento. Sem liberdade, sem um governo constitucional e ordem legal, o voto majoritário pode ser nada mais que expressão da velha tirania da maioria, para a qual John Stuart Mill já alertava em 1859.
Se a soberania da população não significar algo mais que a maioria (ou menos), será “uma soberania de gangsters rumo a uma sociedade bárbara”.
O Poder Judiciário e os democratas na era Bolsonaro
Diante das diversas declarações, da equipe e do próprio presidente, tomadas como um indicativo de “retrocesso em vários temas”, ministros como Luís Roberto Barroso já sinalizaram uma união na defesa de direitos fundamentais.
Em abstrato, isso é excelente; um Estado que não respeita os direitos de sua população não respeita a si próprio. Se qualquer democracia precisa de um Poder Judiciário forte e independente, as cortes assumem especial relevância em tempos como o nosso.
Porque se a eleição de Bolsonaro é legítima, tão legítima quanto grande parte das pautas de seu eleitorado, também é verdade que muitas dessas reivindicações podem gerar todo tipo de medida autoritária. Erroneamente tomadas como conservadoras, pautas reacionárias podem ser tão extremistas quanto qualquer radical de esquerda — e, portanto, tão atentatórias ao conservadorismo quanto qualquer revolucionário jacobino.
Defender, nostálgica e apaixonadamente, um passado que nunca existiu não é típico do indivíduo de disposição conservadora, tão bem exposta por Michael Oakeshott. Trata-se, ao contrário, de um dogmatismo raso, que degrada Edmund Burke a Silas Malafaia[2]. Nesses interessantes tempos — mais interessantes que o da apócrifa maldição chinesa, arrisco dizer —, a união do Supremo é fundamental.
Ainda assim, é preciso ter cuidado, prudência e um pouco de ceticismo.
Se há risco de ofensa à ordem legal vigente, é claro que o Poder Judiciário não pode ser subserviente. Ao mesmo tempo, respeitar e exigir o respeito aos princípios constitucionais não significa, não deve significar, uma suprema corte iluminista, responsável por “empurrar a história”.
É preciso cautela para diferenciar aquilo que é mera demagogia antidemocrática daquilo que pode ser uma reivindicação legítima de grande parte da sociedade, ainda que discordemos dela. Nem tudo que parece politicamente ruim e moralmente errado é inconstitucional. A tarefa é difícil: é tênue a linha que divide (i) um freio ao que for nada mais que expressão de tirania e (ii) a imposição, do alto, de boas intenções que, porque pretendem salvar o “povo” (essa entidade abstrata) de si mesmo, também atentam contra a democracia.
Ainda que esteja dotado da melhor das intenções, um juiz (ou ministro) que não observa os limites da instância que regula sua atuação pode acabar por colocar em risco exatamente aquilo a que se deseja preservar. Daí a necessidade de prudência: deve-se buscar le juste milieu, o justo meio entre a complacência e o ativismo judicial.
Isso porque também a separação de poderes e um sistema legítimo de freios e contrapesos é condição de possibilidade de um regime democrático, e manter esse sistema é a melhor saída para manter também o respeito aos direitos civis — porque esses direitos são conquistas da democracia liberal, e não de qualquer salvacionismo autoritário ou despotismo esclarecido.
Aceitar o resultado de eleições que nos desagradam, resultante de diferentes concepções acerca do que é o bem e o justo[3] que nos desagradam, é tarefa de todo democrata que se respeite enquanto tal. Por outro lado, também é tarefa do democrata a vigilância constante contra a tirania — seja ela qual for.
A democracia só desaparece quando desaparecerem os democratas. A nós, portanto, cabe levar o Direito a sério e, contra a tirania da maioria e a tirania da virtude, fazer valer o império da lei — não do presidente eleito, da maioria ou das cortes.
Talvez Churchill tivesse razão ao dizer que o melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor normal. Por certo, também tinha quando disse que a democracia é a pior forma de governo.
Exceto todas as outras.
[1] “Um predicado P é contestável se (1) não for implausível dizer tanto ‘algo é P se também for A’ quanto ‘algo é P se também for B’ como explicações alternativas do significado de P; se (2) também houver um elemento e* de força valorativa ou normativa atrelada ao significado de P; e se (3) como consequência de (1) e (2), houver um histórico do uso de P de forma a significar padrões ou princípios rivais, tais como ‘A é e*’ e ‘B é e*’.” É o caso de democracia: é um termo sobre o qual (1) se pode falar tanto em termos de representação quanto em termos de participação direta, que tem (2) um significado valorativo favorável e, como consequência disso, (3) deriva-se princípios antagônicos a partir do mesmo conceito. Cf. WALDRON, Jeremy. Vagueness in Law and Language. California Law Review, 82, 03, 1994, pp. 509-540.
[2] Aqui, tomo emprestada a analogia de Fernando Schüler. Discordo de algumas de suas análises recentes, mas sua voz é tão inteligente quanto necessária no debate público.
[3] Disso não se segue que os valores sejam relativos. Ao mesmo tempo, objetividade e universalidade de valores (haja uma unidade a eles subjacente ou não) não justificam a intolerância.
Acesse o conteúdo completo em www.conjur.com.br