No texto anterior, introduzimos o objetivo desta coluna, que abordará o tema da improbidade administrativa a partir da possível iminente virada legislativa que se deu com a apresentação de anteprojeto em substituição à atual Lei 8.429/1992.
A história normativa da coibição à improbidade no Brasil, contudo, vem de bem antes[1], valendo dedicar este segundo texto a uma incursão nesse passado.
Iniciemos essa viagem na Península Ibérica do século XVI, quando um maior esforço de disciplinarização da ética na instância pública começou a ser notado com maior vigor. Essa escalada acabou reverberando nas Ordenações Afonsinas, de cujo texto se extrai curiosa passagem sancionatória do suborno no exercício de função pública:
Ordenamos e Poemos por Ley, que não seja nehuum tam ousado, de qualquer estado e condição que seja, que dê, ou prometa ouro, ou prata, ou dinheiros, pam, vinho, azeite, ou outra qualquer couza a algum Juiz, ou Dezembarguador, ou qualquer outro nosso Official, de qualquer Officio que seja, (...) em quanto perante ele anda a preito, ou a requerer algum desembarguo, de qualquer calidade e condição que seja; e qualquer que o contrario fezer, Mandamos que per esse mesmo feito perqua todo o direito, que em esse feito ou Desembarguo tever, e seja loguo apricado a Nós, e á nossa Coroa. (...) E quanto ao Dezembarguador, ou Official nosso, que assi ouver recebida a dita peita, ou aceptada a promissão dela, Mandamos, que se o feito for civel, que pague a Nós dello o tresdobro dequello, que assy ouver recebido, e o dobro do que lhe assy for prometido, e per ele aceptado, e todo seja apricado á nossa Coroa; e além desto o dito nosso Official perca o Officio, que assy de Nós ouver, em que assi pecou, que nunca o mais aja em algum tempo: e se esse feito for Crime, perca todolos beém que ouver para a nossa Coroa, e mais seja degradado fora da Comarqua, honde assy viver, ata nossa mercê, perdendo o dito Officio sem o nunqua mais aver, como dito he no Civel[2].
Em 1824, a primeira Constituição brasileira previu que ministros de Estado responsáveis por qualquer dissipação de bens públicos, ainda que agissem por ordem do imperador, seriam passíveis de punição (artigos 133, 134 e 135). Houve, também, no artigo 157, o estabelecimento de uma espécie de ação popular como mecanismo de combate: “Por suborno, peita, peculato, e concussão haverá contra elles [juízes de Direito e oficiais de Justiça] acção popular, que poderá ser intentada dentro de anno e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei”.
Posteriormente, em 1891, a primeira Constituição republicana define, entre os crimes de responsabilidade do presidente da República, o atentado contra a “probidade administrativa” (artigo 54, 6º), norma essa mantida pela Constituição de 1934, com pequena alteração ao enquadrar os crimes de responsabilidade como um atentado à “probidade da administração” (artigo 57, f) — a mesma Carta de 34 ainda traria, em seu artigo 113, a possibilidade de qualquer cidadão pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos ao patrimônio da União, dos estados ou dos municípios.
As Constituições de 37, 46 e 67/69, a exemplo da de 34, manteriam a tipificação dos atos atentatórios à probidade administrativa como crime de responsabilidade por parte do presidente da República (artigos 85, d, 89, V, 84, V e 82, V, respectivamente), com regulamentação dada pela já citada Lei 1.079/1950, em âmbito federal, e pelo Decreto-lei 201/1967, em âmbito municipal.
Ainda naquele período, outros diplomas importantes sobreviriam, como o Decreto-lei 3.240/1941 e as leis 3.164/1957 e 3.502/1958, que regularam o sequestro ou a perda de bens daqueles responsáveis por crimes de que resultassem prejuízo à Fazenda Pública[3], representando um marco inaugural das repercussões cíveis de ilícitos praticados contra o erário.
Especificamente na vigência da Carta de 67/69, o famigerado Ato Institucional 5 viria a lume, prevendo em seu artigo 8º a prerrogativa do presidente da República de decretar o confisco de bens daqueles que houvessem ilicitamente enriquecido no exercício de função pública.
Com a Constituição de 1988, houve uma previsão mais explícita a respeito da improbidade administrativa nos artigos 15, V, 37, parágrafo 4º, e 85, V.
Toda essa evolução normativa brasileira naturalmente conviveu com o modelo internacional. Na verdade, a tutela da probidade tem sido cada vez mais influenciada por diretrizes externas, impulsionadas pela premissa de que ofensas ao interesse público se revelam grandes responsáveis pela não implementação de direitos humanos.
Assim, tem sido revigorada busca por recursos em prol de toda a sociedade em vez de privilégios para uma limitada minoria. Como parte integrante desse concerto, a cooperação internacional tem ganhado rara importância, convertendo-se em importante instrumento para o combate a desvios num contexto cada vez mais global.
Aprofundando o tema sob uma ótica externa, convém iniciarmos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cujo artigo 15 já concebia o direito de toda a sociedade de pedir contas dos agentes públicos por sua administração.
Mais recentemente, essa cultura é oxigenada por estudos levados a cabo na década de 70 pela Securities and Exchange Commission dos EUA sobre subornos pagos a funcionários públicos estrangeiros por empresas norte-americanas para obtenção de vantagem competitiva sobre as empresas rivais. É também nesse interregno que, sob influência do escândalo Watergate, de 1974, surge o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), de 1977, importantíssimo paradigma que repercutiu também no combate à improbidade e que se tornaria mais conhecido a partir de sua aplicação caso Lockhead-Takla.
Em 1975, a Resolução 3.514 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) é editada para condenar práticas corruptas e o suborno no comércio internacional, instando a cooperação internacional como mecanismo de prevenção e combate.
A Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) não se omitiria, elaborando em 1984 a Antibribery Recommendation, que, entre outros itens, instava os Estados-membros aos esforços necessários à coibição de subornos.
No âmbito da União Europeia, é criado, em 1995, o Escritório Europeu de Polícia, com vistas à cooperação e prevenção de delitos internacionais. Em 1996, a ONU aprova a Resolução 51/59, trazendo anexo intitulado Código Internacional de Conduta para os Titulares de Cargos Públicos.
No mesmo ano de 1996 surgiriam ainda a Resolução 51/191, que veiculou da Declaração das Nações Unidas contra a corrupção nas transações comerciais internacionais, e nova recomendação da OCDE, pregando a proibição de deduções tributárias das propinas pagas pelas empresas em atividade no exterior, previstas em algumas leis internas como uma espécie de despesa operacional. Foi também naquele ano que sobreveio a importante Convenção Interamericana Conta a Corrupção, editada no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ratificada pelo Brasil a partir do Decreto 4.410/2002.
No ano seguinte, em 1997, a convenção sobre o combate à corrupção de funcionários públicos estrangeiros em transações comerciais foi elaborada na sede da OCDE, em Paris. O Brasil, por meio do Decreto legislativo 125/2000, aprovou o diploma, promulgado pelo Decreto 3.678, de 30/11/2000, e se impôs o dever de prevenir e reprimir, não apenas na seara penal, desvios que envolvam funcionários estrangeiros por parte de empresas sediadas no país em transações comerciais internacionais. A União Europeia, também em 1997, celebra a convenção relativa à luta contra malfeitos em que estejam implicados funcionários da Comunidade Europeia ou dos Estados-membros e edita a Resolução 23 do Conselho Europeu.
O combate a desvios em âmbito internacional ingressa em uma nova fase mais ao final da década de 1990, fundando-se na premissa de que desfalques ao erário são um empecilho à plena efetividade dos direitos sociais, justamente aqueles que demandam maior intervenção do Estado. Se, num primeiro momento — ilustrado pela Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, de 1993 —, se estabeleceu a fase legislativa da proteção internacional dos direitos humanos, com esforços em prol da adesão pelos Estados às convenções internacionais, a ênfase, na virada do século, passava a ser a preocupação com a implementação dos direitos humanos.
São ilustrativas desse esforço na União Europeia, em 1998, a Resolução 7, que constitui o grupo de Estados contra a corrupção (Greco), e a Ação Comum, através da qual foi criada uma rede judicial europeia para fins de cooperação. Em 1999, naquele mesmo bloco, sobrevêm as convenções de Direito Civil e Penal sobre corrupção e é criado o Organismo Europeu de Luta contra Fraude, precedido pela Unidade de Coordenação de Luta contra Fraude em defesa dos interesses financeiros. Finalmente, em 2003, a ONU aprova a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, introduzida na ordem interna brasileira pelo Decreto 5.687/2006.
Todo esse arcabouço de normas demonstra não apenas que o desapreço pelo erário é um problema constante, que tem acompanhado o Brasil e o mundo em sua história, mas, também, que os mecanismos de combate seguem buscando aprimoramento para fazer a essa sorte de desvios, com inegáveis efeitos sobre a tutela da probidade.
[1] MAGALHÃES JÚNIOR, Alexandre Alberto de Azevedo. A tutela do patrimônio público. In: VITORELLE, Edilson (org.). Manual de direitos difusos. Salvador, JusPodium, 2018, p. 336-342.
[2] Ordenaçoens do senhor rey Dom Affonso V. Livro III, título CXXVIII. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1786, p. 459.
[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Manual de Direito Administrativo. 31ª ed. São Paulo: Gen/Forense, 2018, p. 1.102-1.104.
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