Por Anna Graziella Santana Neiva Costa e Mariana Costa Heluy
O Supremo Tribunal Federal decidiu no último dia 14, em votação apertada (6 a 5), que os crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, quando conexos ao de caixa dois, devem ser processados no âmbito da Justiça Eleitoral.
A corte consolidou entendimento já aplicado pela 2ª Turma do STF, órgão competente para apreciação e julgamento dos casos da badalada operação "lava jato". O julgado ganha especial relevo por uniformizar o entendimento no tribunal, visto que a 1ª Turma adotava raciocínio contrário, provocando instabilidade.
Em voto divergente, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu que os crimes comuns deveriam ser julgados pela Justiça Federal, e os delitos eleitorais, pela Justiça especializada, sustentando que a última não seria vocacionada para julgamentos criminais. No mesmo sentido, o ministro da Justiça, Sergio Moro, ponderou, em rede social, que “a Justiça Eleitoral não está preparada para julgar corrupção e outros crimes comuns”. Já o procurador da República Deltan Dallagnol publicou em suas redes sociais a assertiva: “hoje, começou a se fechar a janela de combate à corrupção política que se abriu há 5 anos, no início da Lava Jato”.
Com todo respeito aos que discordam, a controvérsia travada não pode enveredar para argumentos que transformem a suprema corte em uma espécie de “inimigo público da sociedade”, ou ainda “em um demônio popular”, como nominou o desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região Ney Bello, em recente artigo[1], tão-somente por aplicar impecavelmente os preceitos da Constituição Federal e das demais normas do arcabouço jurídico brasileiro. Como guardião da Magna Carta, o STF não pode se curvar a interpretações e anseios alheios ao sistema normativo que, indubitavelmente, comprometem a segurança jurídica.
Tal qual o ministro Marco Aurélio, não se entende o motivo da polêmica, vez que todos os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais conduzem, sem embaraços, à competência em razão da matéria. A Constituição diz, claramente, que é a Justiça Federal quem julga causas de interesse da União, "ressalvada a competência da Justiça Militar e Eleitoral". Já o Código Eleitoral enfatiza que o ramo é responsável por processar e julgar os crimes eleitorais "e comuns que lhe forem conexos".
Não se deve olvidar que precedente adquire valor de lei ou, por vezes, até de regra constitucional, e decisões que visem prioritariamente aprovação e aplausos de parcela da opinião pública — distanciando-se da legalidade — incorrem, perigosamente, nos riscos da pós-verdade. O historiador Gregorio Caro Figueroa define pós-verdade como “a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais”.
A sociedade contemporânea experimenta o tempo das fakes news e da modernidade líquida de Zygmunt Bauman. Considerado um dos pensadores mais importantes e populares do fim do século XX, o sociólogo polonês discorreu sobre a fluidez e, na modernidade líquida, o Estado perde força. As sólidas estruturas dos princípios constitucionais são temerosamente corroídas.
Desejo e clamor social, ainda que envolvam a valorosa luta pelo combate à corrupção, jamais podem ser o âmago de um debate jurídico. Ora, se a suposta conduta atribuída aos investigados possui inequívoca conotação eleitoral, a fixação da competência deve estar assentada — à luz do artigo 109, inciso I, parte final, da Carta Magna, do artigo 35, inciso II do Código Eleitoral e do artigo 78, inciso IV do Código de Processo Penal — à Justiça Eleitoral. Por conseguinte, a forum attractionis dos crimes conexos tem o condão de viabilizar a unidade de processo e julgamento e concretizar a segurança jurídica.
Os movimentos de deputados federais e senadores, após o julgamento da suprema corte, com o desígnio de propor alteração em artigo de lei que versa sobre crimes conexos aos delitos eleitorais, robustece a certeza de que o STF se reconciliou com os regramentos pátrios.
A argumentação de que não estaria a Justiça Eleitoral preparada para o desafio, a rigor, não é uma alegação válida. É um sofisma.
Por outro lado, o raciocínio de que Justiça Federal seria a "competente" para o enfrentamento da temática por não terem os juízes eleitorais "qualificação para analisar crimes de outra natureza" merece severa reprimenda e simples esclarecimentos: a corte eleitoral brasileira possui composição heterogênea, mantendo em seus assentos, inclusive, magistrados oriundos da Justiça Federal, nos exatos termos dos artigos 119 e 120, da Carta Magna.
Outrossim, os órgãos competentes para investigar e denunciar em casos de competência da Justiça Federal são exatamente os mesmos legitimados no âmbito na Justiça Eleitoral: Polícia Federal e Ministério Público Federal.
Afastar a governança judicial da corte especializada diante de fatos que atingem diretamente a lisura das eleições, a igualdade dos candidatos, a democracia e, acima de tudo, a soberania popular tutelada no artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal é, sobretudo, violentar um Poder que representa o pilar do sistema democrático brasileiro.
Causa espécie aos que têm a prodigalidade de olhares mais atentos o aquecido debate que envolve a definição da competência para o julgamento dos crimes conexos aos eleitorais, vez que seja a Justiça Federal, a Eleitoral ou a comum, todas (i) possuem o encargo de fazer Justiça, aplicando escorreitamente a lei; (ii) são passíveis da vigilância e da cobrança social; (iii) é a Justiça Eleitoral a mais acessível aos cidadãos, por ser a tutora da vontade popular.
Neste ponto, aproveita-se para pausar e pedir desculpas a todos os valorosos e aguerridos juízes, desembargadores, ministros e servidores que compõem as cortes eleitorais do nosso país por tantos ataques levianos à capacidade técnica de quem, ao longo de anos, guarda, zela, luta pela preservação da defesa do nosso maior e mais valioso bem, a soberania popular.
Não se está aqui a defender o dito “golpe” ao combate à corrupção. Pelo contrário. É preciso combatê-la dentro dos parâmetros constitucionais e legais. Deve-se punir, severamente, corruptos e usurpadores da vontade popular. Contudo, qualquer enfrentamento que ocorra fora ou distante dos contornos da legalidade, por mais nobre que seja o valor defendido, não fortalece a democracia, como bradam alguns insufladores.
A relativização do acatamento às leis não pode, jamais, atingir a estrutura constitucional, que é sustentada por princípios democráticos inarredáveis. Tais princípios são alicerces do Estado Democrático de Direito.
Se a legislação brasileira não atende mais aos anseios sociais, que o povo brasileiro vote, com consciência política, para formação de um Congresso atuante e preparado para executar, com competência, as modificações legais necessárias e que parecem hoje se impor.
Até lá, que se dissipem as cortinas de fumaça, se façam ouvidos moucos para uma opinião pública forjada, se desnudem os desejos espúrios e interesses subalternos. O Brasil é democrático e sob a égide da lei vigorará.
[1] O Judiciário e o Supremo: a equivocada criação de um demônio popular: https://www.conjur.com.br/2019-mar-17/crime-castigo-judiciario-stf-equivocada-criacao-demonio-popular#author
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