Fonte: www.conjur.com.br
A eleição de 2018 foi a primeira experiência dos partidos políticos com a nova cláusula de barreira ou de desempenho, instituída pela Emenda Constitucional 97/2017[1], segundo a qual somente terão acesso aos recursos do fundo partidário e ao direito de antena (propaganda gratuita no rádio e na televisão) aqueles que alcançarem os patamares mínimos exigidos pela EC 97. A primeira das quatro etapas da cláusula de barreira exige que os partidos políticos obtenham pelo menos 1,5% dos votos válidos, daqueles destinados às eleições para a Câmara dos Deputados, distribuídos em pelo menos um terço dos estados nos quais se tenha obtido no mínimo 1% dos votos válidos ou que tiverem elegido nove deputados distribuídos em um terço das unidades da federação[2].
Com efeito, ultrapassar a cláusula de barreira revela-se crucial para a subsistência das agremiações partidárias brasileiras. Na atual legislatura, apenas 21 de 35 partidos políticos registrados perante o Tribunal Superior Eleitoral terão acesso a essas prerrogativas partidárias[3]. As 14 legendas que não ultrapassarem a cláusula provavelmente enfrentarão dificuldades na manutenção de suas estruturas partidárias, uma vez que sequer terão acesso ao percentual de 5% do total do Fundo Partidário[4], cuja distribuição foi suspensa desde o início dessa legislatura por meio de Portaria editada pelo TSE[5].
Diante desse cenário, com o evidente objetivo de superar a cláusula de barreira em vigor nas eleições 2018, algumas dessas agremiações decidiram buscar novos arranjos políticos através do processo de fusão ou de incorporação (PRP e Patri[6], PCdoB ao PPL[7] e o PHS ao Pode[8]), ao passo que outras resistem, ao optar pela doação de seus filiados como fonte principal de subsistência, como é o caso do Rede Sustentabilidade[9]. Contudo, a despeito dos esforços envidados pelos 14 partidos políticos atingidos pela EC 97, muitos parlamentares eleitos por essas greis decidiram migrar para alguma das 21 agremiações que a ultrapassaram.
O desafio a ser enfrentado pelo Poder Judiciário nos próximos meses será o confronto desse expressivo “transfuguismo partidário” em face da regra da fidelidade partidária, segundo a qual a titularidade do mandato eletivo — daqueles candidatos eleitos pelo sistema proporcional — pertence ao respectivo partido político pelo qual o trânsfuga fora eleito. Caso essa migração partidária seja considerada um ato de infidelidade partidária, o titular poderá perder o mandato conquistado no pleito de 2018.
A regra da fidelidade partidária comporta exceções, que são as denominadas “justas causas” — hipóteses nas quais se possibilita ao detentor de mandato eletivo filiar-se a outra agremiação sem perda da titularidade do mandato popular — cujo rol encontra-se previsto na Resolução TSE 22.610/2007 e na Lei dos Partidos Políticos. A EC 97 incluiu uma nova hipótese de “justa causa” no parágrafo 5º, artigo 17 da Constituição Federal, com o objetivo de possibilitar a migração partidária dos parlamentares filiados a legendas sem representatividade. Porém, essa norma deixa dúvidas quanto à incidência dessa ‘justa causa’ no caso de migração dos parlamentares eleitos no pleito de 2018[10], senão vejamos:
Artigo 17, parágrafo 5º - Ao eleito por partido que não preencher os requisitos previstos no parágrafo 3º deste artigo é assegurado o mandato e facultada a filiação, sem perda do mandato, a outro partido que os tenha atingido, não sendo essa filiação considerada para fins de distribuição dos recursos do fundo partidário e de acesso gratuito ao tempo de rádio e de televisão. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 97, de 2017)
A priori, conforme se depreende da mera leitura da norma constitucional, a incidência da hipótese de “justa causa” prevista no parágrafo 5º está condicionada ao não preenchimento dos requisitos exigidos pelo parágrafo 3º, do artigo 17, Constituição, última etapa gradativa da cláusula de barreira, que, por opção do Congresso Nacional, somente entrará em vigor nas eleições de 2030[11]. Destarte, como a norma aplicada ao pleito de 2018 foi aquela prevista no inciso I, do artigo 3º da EC 97 — e não aquela prevista no parágrafo 3º do artigo 17, da Constituição — segundo o ministro Gilmar Mendes, há duas interpretações possíveis para a norma prevista no parágrafo 5º, artigo 17, Constituição:
“i) somente tem aplicação na legislatura de 2031, pois a norma remete ao não preenchimento dos requisitos do artigo 17, parágrafo 3º, da Constituição, última fase da gradativa cláusula de barreira inaugurada pela referida emenda;
ii) a janela estará aberta no início de cada legislatura aos candidatos cujo partido não alcançou a cláusula de desempenho, considerando a regra de transição, que faculta ao parlamentar buscar uma nova agremiação partidária com a necessária estrutura de fundo partidário e acesso a rádio e tv”[12].
De acordo primeira interpretação possível, a norma do parágrafo 5º estaria submetida a uma espécie de eficácia limitada, cuja aplicação estaria condicionada à entrada em vigor do parágrafo 3º, artigo 17, da Constituição. Contudo, apesar dessa norma dispor expressamente que — quanto ao acesso aos recursos do fundo partidário e ao direito de antena — o parágrafo 3° entrará em vigor somente a partir das eleições de 2030, não se pode olvidar que a limitação da vigência foi diferida ao longo do tempo nos termos da própria EC 97, que estabeleceu requisitos graduais, e não estanques, motivo pelo qual a incidência da ‘justa causa’ prevista no parágrafo 5º deverá incidir desde a primeira etapa gradativa da cláusula de barreira.
Assim, entendemos que a segunda interpretação possível — aludida pelo ministro Gilmar Mendes — é a que se revela mais adequada. Isso porque, parece-nos, a EC 97 estabeleceu um nudge, i.e., uma arquitetura jurídica que, sem restringir a liberdade para decidir, estimula um determinado comportamento[13]. No caso, permite-se a mudança de partido sem a punição da perda do cargo para que o parlamentar goze de forma plena de seu mandato, migrando de uma legenda que não atingiu a cláusula de barreira ou desempenho para que outra legenda que a alcançou. Medida que, ao final, fortalece aquelas agremiações com melhor desempenho em nível nacional.
Ademais, não se pode ignorar que o pleno exercício do mandato parlamentar — consideradas as restrições eventualmente impostas para o “funcionamento parlamentar”[14] — pressupõe estar o mandatário filiado a agremiações partidárias que disponham do mínimo de representatividade no parlamento, ou seja, estar filiado a partidos políticos aos quais estejam assegurados o direito à participação proporcional na composição da mesa diretora, formação de bancadas, indicação de lideranças partidárias, participação das comissões permanentes e das comissões especiais, nos termos do regimento interno das Casas Legislativas. Contudo, como a EC 97 não faz menção expressa ao funcionamento parlamentar, a incidência dos seus requisitos no regimento interno da Câmara dos Deputados será decidida em breve pelo Supremo[15].
Por outro lado, caso venha a prevalecer a primeira interpretação possível — no sentido da impossibilidade da aplicação da "justa causa" prevista no parágrafo 5º para o pleito de 2018 — entendemos que, no caso de filiados a agremiações que optaram pela fusão ou incorporação, é possível invocar a legislação infraconstitucional para a preservação dos mandatos dos trânsfugas. A primeira norma que poderá ser invocada pelos trânsfugas está prevista na Resolução 22.610/2007 do TSE que, a despeito de posterior regulamentação da regra da fidelidade na Lei dos Partidos Políticos, continua em vigor. Muito embora a Lei 9.096/95[16] não faça menção expressa à incorporação ou fusão como hipótese de "justa causa", entendemos que o inciso I, parágrafo 1º, artigo 1º, da Resolução 22.610/2007[17] poderá ser aplicado aos casos análogos.
Contudo, subsidiariamente, é possível realizar uma interpretação extensiva da hipótese prevista no inciso I, artigo 22-A da Lei 9.096/95[18] — que trata da mudança substancial dos programas partidários como ‘justa causa’ – para atrair a sua incidência nos casos de fusão ou incorporação de partidos políticos. Afinal, a fusão ou incorporação não devem ser analisadas sob um viés meramente formal, considerando que a sua efetivação ocasiona, em maior ou menor dimensão, a mudança substancial dos programas partidários anteriormente estabelecidos individualmente por cada uma delas. Aliás, o TSE já decidiu que, ante a impossibilidade de aplicação do parágrafo 1º, inc. I, artigo 1º da Resolução/TSE 22.610/2007, tal fato: “[...] não impede que o parlamentar se desfilie do partido em razão de alteração substancial ou de desvio reiterado do programa, porém, o fundamento para tanto será o inciso III do parágrafo 1º do artigo 1º da Resolução no 22.610/2007 e não o que dispõe o inciso I do mesmo dispositivo.[...]”[19].
Além disso, o TSE já reconheceu a incidência da referida hipótese de ‘justa causa’ até mesmo naqueles casos nos quais a fusão ou incorporação não chegaram a se consumar, mas que foram amplamente noticiadas pela imprensa, com base no princípio da proteção à confiança[20]. Todavia, é importante ressaltar que a fusão ou incorporação não abre uma oportunidade de migração de parlamentares não a integraram, essa hipótese de ‘justa causa’ só poderá ser invocada pelos trânsfugas filiados ao partido que realizou a fusão ou incorporação[21].
Por fim, atualmente tramitam duas consultas[22] no TSE, sob a relatoria do ministro Admar Gonzaga, que indagam acerca do prazo para a desfiliação com base na hipótese de "justa causa" prevista no parágrafo 5º, artigo 17 da Constituição, diante da ausência de previsão na EC 97. Entretanto, entendemos que a eventual fixação de prazo — para o exercício da faculdade prevista no parágrafo 5º — não poderá mitigar o exercício do direito de desfiliação na legislatura de 2019, sob pena de violar o indispensável postulado da segurança jurídica que sempre deve estar no horizonte das decisões proferidas pelo TSE. Por outro lado, no que concerne a migração partidária motivada pela fusão ou incorporação — a despeito da ausência da fixação de prazo legal para a migração — o TSE possui diversos precedentes[23] que estabelecem um “prazo razoável” entre a data do fato que a ensejou e a sua efetivação.
[1] EC nº 97, de 4 de outubro de 2017, art. 3º, Parágrafo único – Terão acesso aos recursos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão os partidos políticos que: [...].
[2] EC nº 97, de 4 de outubro de 2017, art. 3º, I - na legislatura seguinte às eleições de 2018: [...].
[3] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/partidos-barrados-por-clausula-de-barreira-negociam-migracao.
[4] Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95), Art. 41-A, Inciso I - 5% (cinco por cento) serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que atendam aos requisitos constitucionais de acesso aos recursos do Fundo Partidário; e (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015).
[5] TSE, Pet 0601892-56, Rel. Min. Tarcisio Vieira, na sessão de 19.12.2018, por unanimidade, a Corte deliberou pela edição de portaria para regulamentar o termo a partir do qual incidirá o corte de repasse do fundo partidário, aos partidos que não alcançaram a cláusula de desempenho, como sendo em 1.2.2019.[6] http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Marco/tse-aprova-incorporacao-do-prp-ao-patriota
[7] https://pcdob.org.br/noticias/congressos-do-pcdob-e-ppl-aprovam-uniao-em-defesa-do-brasil
[8] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/sem-superar-clausula-phs-sera-incorporado-por-podemos.shtml
[9] http://www.redesustentabilidade.org.br/2019/03/11/elo-nacional-decide-pelo-fortalecimento-e-continuidade-da-rede/?fbclid=IwAR37e5NX3NepmspwjWweAYe5BX3rJRm_j3fozR3ITnnWU7uCYWEW2wYeyXo
[10] Sobre o tema, tramitam no Tribunal Superior a Consulta nº 0601755-74, distribuída ao Ministro Admar Gonzaga, e a Consulta n°, sob a relatoria do Ministro Tarcísio Vieira de Carvalho.
[11] EC nº 97, de 4 de outubro de 2017, art. 3º- O disposto no § 3º do art. 17 da Constituição Federal quanto ao acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e à propaganda gratuita no rádio e na televisão aplicar-se-á a partir das eleições de 2030.{
[12] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 14. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. – (Série IDP). p. 811.
[13] SUNSTEIN, Cass R. Nudging: a very short guide. p. 1. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2499658>. Acesso em: 01. abr. 2019.
[14] Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95), art. Art. 12. O partido político funciona, nas Casas Legislativas, por intermédio de uma bancada, que deve constituir suas lideranças de acordo com o estatuto do partido, as disposições regimentais das respectivas Casas e as normas desta Lei.
[15] A Rede Sustentabilidade ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade em face dos artigos 1º, 2º, 3º e parágrafo único do artigo 6º, da Resolução 30/2018 da Câmara dos Deputados, para que sejam declaradas inconstitucionais as referidas normas que prevêem que o partido que não alcançar tais limites previstos na EC nº 97 não terá direito a liderança e, em consequência, também não disporá dos cargos e funções que lá seriam lotados. A Rede requereu, ainda, a concessão de medida liminar para evitar que a partir de 1º de fevereiro, início do ano legislativo, fique sem sua atual estrutura de liderança partidária, que resultaria na exoneração dos funcionários. [STF, ADI nº 6056, Relator Ministro RICARDO LEWANDOWSKI.]
[16] Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9096/95), art. Art. 22-A. Perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, do partido pelo qual foi eleito. (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015)
Resolução nº 22.610/2007 do TSE, art. 1º, §1 – considera-se justa causa: I – incorporação ou fusão do partido.
[18] Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9096/95), art. Art. 22-A, inciso I - I - mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário; (Incluído pela Lei nº 13.165, de 2015).
[19] TSE, CONSULTA nº 1587, Rel. Min. Felix Fischer, DJE em 23/09/2008.
[20] TSE, RESPE nº 12454, Rel. Min. João Otávio De Noronha, DJE em 06/10/2014.
[21] Nesse sentido: TSE, CTA Nº: 18226 (Cta), em 29.4.2014; TSE, Res.-TSE nº 22885/2008.
[22] TSE, Consulta nº 0601755-74.2018.6.00.0000 e Consulta nº 0601975-72.2018.6.00.0000, Rel. Min. Admar Gonzaga.
[23] TSE, Recurso Ordinário nº 2352, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJE em 18/11/2009. Nesse mesmo sentido: TSE, Recurso Ordinário nº 2352, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJE em 18/11/2009.
Ezikelly Barros é advogada eleitoralista, mestranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), conselheira do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (Ibrade) e membro-fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
Sérgio Antônio Ferreira Victor é advogado, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Direito da Uninove e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
Antônio Pedro Machado é advogado e mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP).