Fonte: Conjur - www.conjur.com.br
Por Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega
Como amplamente repercutido, o Supremo Tribunal Federal, por ocasião da sessão do dia 8 de agosto de 2018, julgou o Recurso Extraordinário 852.475 para, em repercussão geral, concluir pela imprescritibilidade do ressarcimento ao erário em razão de atos de improbidade praticados com dolo.
O tema, que já vinha sendo tangenciado notadamente a partir do RE 669.069 — no qual se decidiu pela prescritibilidade do ressarcimento por danos oriundos de ilícito civil —, representou um marco importante, pondo fim (em tese) à controvérsia antiga a respeito da interpretação a ser conferida ao artigo 37, parágrafo 5º, da Constituição Federal.
A complexidade do debate empreendido pela corte e a apertada maioria formada (6 a 5), contudo, forneceram campo para que a discussão seguisse sendo travada social e academicamente.
Pudera, sensível que é a contraposição: de um lado, supremacia do interesse público e a defesa de seu patrimônio, tão vilipendiado; de outro, contraditório, ampla defesa, segurança jurídica e estabilização das relações sociais. Isso tudo ainda acrescido de norma de rara obscuridade (“A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”).
Algumas passagens ajudam a ilustrar a riqueza do debate, como trecho do voto do relator original do RE 852.475, ministro Alexandre de Moraes, que invocou dado histórico de que inicialmente se valera o ministro Barroso por ocasião do julgamento do RE 669.069:
A ressalva que permaneceu no § 5º do art. 37 da CF (“ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”), mesmo após a retirada da expressão “QUE SERÃO IMPRESCRITÍVEIS”, teve por finalidade evitar, principalmente, uma anomia em relação à possibilidade de ressarcimento ao erário em face de responsabilização pela prática de eventuais atos ilícitos, enquanto ainda não tipificados pela lei exigida no § 4º do art. 37 da CF como atos de improbidade administrativa
A alusão feita pelo ministro remete ao período de trabalhos da Assembleia Constituinte de 1987, no curso dos quais sobreveio anteprojeto, elaborado pela Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, de que constou a seguinte previsão em seu artigo 44, parágrafo4º: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento, que serão imprescritíveis”.
O raciocínio construído, então, foi no sentido de que a supressão da expressão “que serão imprescritíveis” sugeriu uma deliberada intenção do constituinte originário de renegar a imprescritibilidade. Mas o que, então, quereria dizer a locução posta em seu lugar (“ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”)?
A resposta é singela. Dado que o parágrafo 4º do artigo 37 submeteu à reserva legal a tipificação, forma de persecução e gradação das sanções dos atos de improbidade, a preocupação do constituinte, no entendimento do ministro Moraes, teria sido a de preservar as ações de ressarcimento por prejuízos ao erário impingidos antes da superveniência daquela lei (que, não é ocioso dizer, viria a ser a Lei 8.429/1992).
É dizer, a ressalva a respectivas ações de ressarcimento teria o condão na verdade de resguardar pretensões ressarcitórias surgidas anteriormente à tipificação dos atos de improbidade, estremando ao menos a reparação da condição de que sobreviesse lei específica.
Outra leitura — ainda em favor da tese de prescrição — merecedora de prestígio ao longo do debate em questão partiu da doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, que, revisitando posicionamento pessoal anterior pela imprescritibilidade, sustentou que a ressalva constante do parágrafo 5º na realidade diria respeito à distinção entre prazos prescricionais para pretensão essencialmente punitiva e de reparação de danos:
Não é crível que a Constituição possa abonar resultados tão radicalmente adversos aos princípios que adota no que concerne ao direito de defesa. Dessarte, se a isto se agrega que quando quis estabelecer a imprescritibilidade a Constituição o fez expressamente como no art. 5º, incs. XLII e XLIV (crimes de racismo e ação armada contra a ordem constitucional) - e sempre em matéria penal que, bem por isto, não se eterniza, pois não ultrapassa uma vida, ainda mais se robustece a tese adversa a imprescritibilidade. Eis, pois, que reformamos nosso anterior entendimento na matéria. Como explicar, então, o alcance do art. 37, § 5º? Pensamos que o que se há de extrair dele é a intenção manifesta, ainda que mal expressada, de separar os prazos de prescrição do ilícito propriamente, isto é, penal, ou administrativo, dos prazos das ações de responsabilidade, que não terão porque obrigatoriamente coincidir. Assim, a ressalva para as ações de ressarcimento significa que terão prazos autônomos em relação aos que a lei estabelecer para as responsabilidades administrativa e penal[1].
Como deflui do trecho acima, a Constituição, quando quis, foi enfaticamente expressa de modo a não deixar dúvidas sobre as hipóteses de imprescritibilidade. Porque excepcionais em relação à regra geral de prescrição, aquelas normas sofrem interpretação restrita, sem conteúdos implícitos, como, aliás, leciona Teori Zavascki, calçado em Pontes de Miranda: “Se a prescritibilidade das ações e pretensões é a regra — pode-se até dizer, o princípio —, a imprescritibilidade é a exceção, e, por isso mesmo, a norma que a contempla deve ser interpretada restritivamente”[2].
Adicionalmente, ainda se poderia dizer que a hipótese de ressarcimento ao erário, quando oriunda de atos de improbidade, se põe não apenas com viés compensatório, mas também punitivo, como aliás sugerem o parágrafo 4º do artigo 37 da Constituição e os incisos do artigo 12 da Lei 8.429/1992. À vista disso, o ressarcimento, como pena, ostentaria exigibilidade perpétua, vulnerando o artigo 5º, XLVII, b, da Carta, como defende Érico Andrade: “Tanto é certa a prevalência do direito fundamental de vedação de penas perpétuas sobre a norma do art. 37, § 5º, CF, que o art. 23, I, da Lei n. 8.429/92 prevê a prescrição quinquenal para a aplicação de suas sanções — entre as quais se situa, obviamente, o perdimento de bens ou imposição de indenizar o erário”[3].
Todos esses argumentos forneceram importantes premissas para que a comissão de juristas responsável por apresentar anteprojeto que culminaria no Projeto de Lei 10.887/2018 fizessem dele constar as seguintes disposições:
Art. 23. A ação para a aplicação das sanções previstas nesta lei prescreve em 10 (dez) anos, contados a partir do fato.
§ 1º A instauração de inquérito civil suspende o curso do prazo prescricional, por no máximo 3 (três) anos, recomeçando a correr após a sua conclusão ou esgotado o prazo de suspensão.
§ 2º A pretensão à condenação ao ressarcimento do dano e à de perda de bens e valores de origem privada prescreve em 20 (vinte) anos a partir do fato.
§ 3º É imprescritível a pretensão a reaver bens e valores apropriados ilicitamente do Poder Público.
De pronto, interessante notar uma opção pela ampliação do prazo prescricional geral da pretensão punitiva, embora impondo-se como termo inicial a ocorrência do fato, diferentemente do entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça, que vincula a actio nata ao conhecimento dos fatos pela administração[4] — por incidência analógica do artigo 142, parágrafo 1º, da Lei 8.112/1990 — ou ao término do mandado do agente político[5]. Se se dobrou o lapso temporal dentro do qual exercitável a pretensão, retirou-se, do alvedrio do Estado, uma certa disposição sobre o marco inaugural da contagem, prevendo-se, nada obstante, a hipótese de suspensão em razão da instauração de inquérito civil dirigido à elucidação dos fatos.
O parágrafo 3º, acima, de sua vez, afinado com o artigo 102 do Código Civil, consignou a imprescritibilidade da restituição de bens e valores apropriados ilicitamente do poder público.
Já o parágrafo 2º, e aqui o enfoque deste escrito, trouxe o prazo prescricional de 20 anos para exercício da pretensão de ressarcimento de dano ao erário, além da condenação em perda de bens e valores de origem privada. Como é possível notar, o lapso em questão é ampliado, dobrado em relação àquele que subordina as demais sanções, mas se contrapõe à tese de imprescritibilidade, na esteira daqueles argumentos antes declinados.
Um questionamento emergiria como natural: seria esse dispositivo inconstitucional, sobretudo se levado em consideração o julgamento levado a termo pelo STF no RE 852.475? Entendemos que não, por algumas razões.
Em primeiro lugar, aquela decisão do STF foi exarada em controle difuso, que não dimana efeitos erga omnes[6] e nem transcende seus motivos para vincular o legislativo.
Em segundo lugar, a proposição legislativa insere ingrediente adicional no debate ao prever um prazo prescricional muito mais amplo (20 anos) que aquele que funcionaria como alternativa ao entendimento versado pelo STF (cinco anos). Em outras palavras, se estabelece posição intermediária capaz de influenciar o quórum de maioria absoluta que seria necessário para declaração de inconstitucionalidade daquela virtual norma em possível controle concentrado de sua constitucionalidade: nem imprescritível nem prescritível em cinco anos; prescritível em 20 anos.
Essa alternativa intermediária parece, de fato, alinhada com as disposições constitucionais, especialmente com a garantia do efetivo contraditório e da ampla defesa, pois, como reconhecido pela ministra Cármen Lúcia no RE 669.069, “não é do homem médio guardar, além de um prazo razoável (…) a documentação necessária para uma eventual defesa”.
Daí por que, então, o julgamento levado a efeito no RE 852.475 não há de ser tido como a última palavra sobre a (im)possibilidade de prescrição da pretensão de ressarcimento ao erário; muito ao revés, o tema permanece absolutamente aquecido e pode ser oxigenado com a discussão legislativa sobre a reforma da Lei 8.429/1992.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 1.081.
[2] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2014, p. 71.
[3] ANDRADE, Érico. Responsabilidade civil do estado e o direito de regresso.São Paulo: Thomson, 2005.
[4] REsp 1.263.106/RO, DJ de 11.12.2015.
[5] REsp 1.107.833/SP, julgado em 8.9.2009.
[6] Entende-se que não há como se falar em efeitos erga omnes das decisões proferidas sob o regime da repercussão geral na medida em que estas, nos termos do artigo 326 do RITSF, valem apenas “para todos os recursos sobre questão idêntica” à decidida. Assim, a decisão tomada em sede de repercussão geral, por influir apenas na admissibilidade dos recursos extraordinários interpostos em questões idênticas, goza, em verdade, de efeito multiplicador — e não de eficácia erga omnes —, como aponta Luciano Fuck (O Supremo Tribunal Federal e a repercussão geral. Revista de Processo, ano 35, n. 181, março/2010).
Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).
Guilherme Pupe da Nóbrega é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.