Fonte: Conjur
Por Felipe Bernardo Furtado Soares e Lucas Loureiro Ticle
Bons textos já foram publicados aqui na ConJur sobre o julgamento do Recurso Extraordinário 1.055.941[1], em que se discutirá “se é constitucional o compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais de contribuintes obtidos pelo Fisco no exercício do dever de fiscalizar, sem a intermediação prévia do Poder Judiciário.”
Em tempos estranhos nunca é demais rememorar como determinadas normas se consolidam em nosso ordenamento jurídico, a fim de afastar os argumentos “iluministas” dos defensores do combate à corrupção que teimam em não aceitar os limites impostos pelo Estado Democrático de Direito e insistem em nos manter “fora da curva”. É preciso, pois, que a Constituição seja vista novamente como nosso timoneiro, para que não nos deixemos navegar em turvas águas pela República de Curitiba e seus asseclas.
É com esse objetivo que, no presente artigo, pretende-se elucidar as contribuições da Justiça Eleitoral para o tema a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal no RE 1.055.941.
Destaca-se o julgamento do Recurso Especial Eleitoral 28.746 em 2010 pelo Tribunal Superior Eleitoral, em que ministros travaram frutíferos debates sobre a possibilidade de o Ministério Público Eleitoral requisitar diretamente à Receita Federal informações de natureza financeira sobre o faturamento e/ou renda de doadores de campanha eleitoral.
Tratava-se de recurso interposto por empresa que havia sido penalizada por ter realizado doações eleitorais acima do limite legal. Entre outros argumentos, a empresa arguiu “nulidade do processo em face da quebra do sigilo fiscal ilegalmente obtida pelo Ministério Público Eleitoral, com violação ao artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal', haja vista que o parquet oficiou diretamente a Secretaria da Receita Federal em Goiás para obter informação relativa ao faturamento bruto declarado pela empresa, sem a imprescindível e prévia ordem judicial.”
Inicialmente, o ministro relator, Marcelo Ribeiro, entendeu que era lícito ao “Ministério Público requisitar diretamente à Receita Federal os dados relativos somente aos valores dos rendimentos brutos dos doadores, para subsidiar a representação de que trata os artigos 23 e 81 da Lei 9.504/97.” O relator defendeu que “tal procedimento não configura quebra de sigilo fiscal, tendo em conta que os dados a serem fornecidos deverão ser apenas os valores brutos recebidos pelo contribuinte no ano anterior ao pleito, sem a individualização dos bens ou das demais informações acerca do patrimônio do doador.”
Inaugurando divergência, o ministro Ricardo Lewandowski defendeu que “os dados obtidos pelo Ministério Público por meio da Receita Federal teriam que ser precedidos de autorização judicial.”
A ministra Carmen Lúcia apresentou posição intermediária no sentido de que o representante do Ministério Público pode solicitar à Receita Federal “apenas a confirmação ou não de que as doações por eles declaradas obedecem aos limites estabelecidos nas normas aplicáveis à espécie.”
A ministra destacou ainda que “se a resposta da Receita Federal for no sentido de que a pessoa teria ultrapassado os limites legais, caberia ao Ministério Público requerer à Justiça Eleitoral autorização para a liberação de informações necessárias para o cumprimento de suas obrigações de defesa da legalidade e do interesse coletivo, sem possibilidade de se ter a quebra do sigilo constitucionalmente a todos assegurado.”
Ao final de várias sessões de julgamento, a tese intermediária defendida pela ministra Carmen Lúcia sagrou-se vencedora, contando inclusive com os votos dos ministros Marcelo Ribeiro e Ricardo Lewandowski, que, no início do julgamento, apresentaram votos absolutamente divergentes.
Posteriormente, esse entendimento foi consolidado pelo artigo 25 da Resolução Resolução 23.406/14 do TSE, em que se esclarecia o limite da comunicação da Receita Federal:
§ 5º A comunicação a que se refere o inciso II do § 4º restringe-se à identificação nominal, seguida do respectivo número de inscrição no CPF ou CNPJ, município e UF fiscal do domicílio do doador, resguardado o respectivo sigilo dos rendimentos da pessoa física, do faturamento da pessoa jurídica e do possível excesso apurado.
Em 2015, com a chamada minirreforma eleitoral promovida pela Lei 13.165/15, tal norma foi cristalizada no artigo 24-C da Lei 9.504/97. No mesmo intuito, a Resolução 23.553/17 do TSE, em seu artigo 29, parágrafo 5º, reiterou os termos da Resolução de 2014 para estabelecer com clareza os limites da informação a ser prestada pela Receita Federal ao Ministério Público Eleitoral, que deve resguardar o sigilo das informações fiscais do doador.
Ressalvadas as diferenças entre a justiça eleitoral e o processo penal, considerando que estamos a tratar da extensão da efetividade de direitos fundamentais – no caso, direito à intimidade e direito ao sigilo de dados-, a retomada histórica feita nesse artigo demonstra que o tema vem sendo abordado com coerência e integridade por nossos tribunais superiores. Isso porque o entendimento da Justiça Eleitoral está em plena consonância com o que decidiu o STF no julgamento das ADI’s de números 2.386, 2.390, 2.397 e 2.859, em 2016, e também o ministro Dias Toffoli na decisão proferida nos autos do RE 1.055.941 em que atendeu ao pedido formulado pela defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ).
Em suma, caso o Plenário do STF corrobore o entendimento exposto na liminar proferida pelo ministro Dias Toffoli, não haverá qualquer inovação em nosso ordenamento, e não deveria haver motivo para alarde. O STF estará apenas e tão somente fazendo cumprir a Constituição, reafirmando reiteradas decisões dos Tribunais Superiores sobre essa temática.
Que a Constituição retome o leme de nosso Direito!
[1] Veja-se: https://www.conjur.com.br/2019-nov-19/stf-atribuicao-uif-antigo-coaf-direito-comparado ; https://www.conjur.com.br/2019-nov-19/ademar-borges-uif-antigo-coaf-sigilo-bancario-visao-stj