Fonte: Conjur
Por Bernardo Strobel Guimarães, Caio Augusto Nazário de Souza e Giovanna Geiger Frizzo
Com a edição da Lei nº 14.133/21 a discussão quanto à natureza do elenco dos atos de improbidade (artigo 9, 10 e 11), se taxativos ou exemplificativos, se intensificou. A partir da nova lei, o caráter exemplificativo foi reforçado em razão de o legislador ter expressamente consagrado a taxatividade somente para o artigo 11 [1], mantendo a expressão "notadamente" nos caputs dos artigos 9º e 10 [2].
De nossa parte, embora verifiquemos uma incompatibilidade entre a consagração dos princípios da legalidade e da tipicidade no artigo 1º da Lei e a eventual natureza exemplificativa das condutas ímprobas, entendemos que essa é uma discussão que não leva em conta uma ideia fundamental: a de que os artigos 9, 10 e 11 são normas sancionadoras em branco. E isto quer dizer que a Lei de Improbidade, por si só, não possui a densidade normativa necessária para justificar a punição de quem quer que seja. Com efeito, não é possível a subsunção direta entre o ato ímprobo e a Lei de Improbidade. Algo, necessariamente, precisa se interpolar entre o fato e a sua descrição normativa.
Antes de explicar a ideia, um esclarecimento é necessário: aqui não se fala em norma sancionadora em branco no sentido clássico de que trata a doutrina penal. No âmbito do Direito Administrativo Sancionador, que é gênero do qual a improbidade é uma das espécies, o conceito se refere a leis que, por si só, não alcançam a normatividade necessária para serem aplicadas diretamente ao caso concreto, demandando complementação [3].
Se no Direito Penal a norma em branco remete à necessidade de se buscar (via de regra em outros diplomas normativos) conceitos necessários à incidência da norma, no direito administrativo sancionador a questão é a necessidade de conjugação de duas ou mais normas para a construção da norma que descreve a conduta a ser sancionada.
Nesse contexto, os artigos 9, 10 e 11 são normas incompletas, que exigem complementação das normas especiais que regulam a conduta do agente público, determinando a sua conduta. Embora o legislador tenha contemplado esse entendimento de forma expressa apenas para os atos de improbidade que atentam contra os princípios da Administração, ao prever no §3º do artigo 11 que a tipificação do ato "[...] pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas", esta premissa é válida para todos os dispositivos. A improbidade exige que se demonstre uma violação objetiva de uma norma administrativa.
Nessa linha, não se pode cogitar de conduta ímproba a partir da análise isolada da Lei de Improbidade. Para tanto é necessário, antes, demonstrar que o agente violou as normas setoriais a que estava obrigado a cumprir. Por exemplo: só seria possível falar que o agente violou a Lei de Improbidade por conceder benefício fora das hipóteses legais (artigo 10, inciso VII) caso se verifique que o agente infringiu as regras que regem a concessão de benefícios. Ou ainda, o ato de improbidade que frustra o caráter competitivo de procedimento licitatório (artigo 10, inciso VIII) depende, para sua configuração, da violação às normas da Lei de Licitações que tratam da estruturação do procedimento licitatório. E por aí vai.
O grau de abstração das normas e a profusão de tipos abertos e conceitos jurídicos indeterminados que revestem os artigos, parágrafos, incisos e alíneas da Lei de Improbidade não autorizam que ela seja vista como uma legislação completa, passível de subsunção direta, sob pena de se garantir amplo grau de discricionariedade ao julgador para a definição do que seja efetivamente improbidade, o que jamais pode ser admitido em um sistema de responsabilização regido pelos princípios da legalidade e da tipicidade e compatível com as garantias processuais fundamentais dos indivíduos.
Dito de outra maneira, a abertura semântica dessas normas não é um cheque em branco a ser preenchido pelo intérprete, mas sim um espaço que demanda que se demonstre a violação objetiva de outros deveres legais. A Lei de Improbidade incide, portanto, como uma "camada extra" sobre os fatos, agregando a eles uma sanção específica. A passagem da sanção ordinária para a improbidade é regida pelo dolo na conduta do agente e a efetiva violação do bem jurídico tutelado pela Lei de Improbidade.
Nessa medida, só há improbidade caso o autor logre demonstrar que o agente violou norma específica que estava obrigado a cumprir em razão de suas funções. Somente posteriormente é que se verifica se o ato praticado cumpre também os requisitos previstos na Lei de Improbidade para fins de punição. Nessa linha, Fábio Medina Osório registra que:
"Não se pode, por razões de segurança jurídica, legalidade, tipicidade e fundamentos do Estado Democrático de Direito, imputar improbidade administrativa a alguém, formulando uma acusação de vulneração isolada dos ditames de qualquer dos textos da LGIA, porque a incidência desta depende, de modo visceral, da prévia violação de outras normas." [4]
A probidade é um bem jurídico cuja proteção depende da conjugação da Lei de Improbidade com estatutos normativos específicos (aliás, o mesmo se dá com a Lei Anticorrupção).
Como visto, a própria estrutura dos incisos dos artigos 9º, 10 e 11 já indica a impossibilidade de se realizar subsunção direta da conduta do agente à Lei de Improbidade. É claro que essa remissão nem sempre será explícita, pois a violação às normas específicas pode ser implícita. Veja-se, nesse sentido, a conduta de permitir que terceiro de enriqueça ilicitamente, tipificada no inciso XII do artigo 10 (comissiva por omissão). É claro que o uso de suas atribuições funcionais para obter benefício indevido para si ou para outrem configura violação às regras a que o agente público está sujeito a cumprir, ainda que não exista uma regra expressa nesse sentido.
Como pontua Fábio Medina Osório, a exigência de intermediação legislativa explícita "[...] pode ser atenuada pela ideia de ilicitude nitidamente inerente ao sistema, implicitamente prevista ou derivada do arcabouço normativo pertinente" [5].
Nessa medida, ainda que se considere os róis dos artigos 9 e 10 exemplificativos, no sentido que basta o enquadramento da conduta ao descrito nos respectivos caputs para a configuração de ato de improbidade, ainda é requisito indispensável a demonstração de que o ato em questão se qualifica como violação às normas setoriais que regulam a atuação do agente e/ou a conduta por ele praticada. Falar em improbidade implica violação das normas que regem a atuação do agente e os atos por ele praticados. Não havendo violação a dever específico de conduta, não se pode falar de improbidade ainda que o ato tenha provocado enriquecimento ilícito, lesão ao erário ou violação aos princípios da Administração Pública. Estes efeitos só incidem se, antes, houver a violação da regra que baliza a atuação administrativa.
Há, portanto, um procedimento argumentativo específico a ser seguido para a subsunção do ato à Lei de Improbidade. Simplificando, há basicamente duas etapas. Primeiro, é preciso que a conduta do agente, seja ela comissiva ou omissiva, viole as regras que ele estava sujeito a cumprir em razão de suas atribuições funcionais. Ainda nesse primeiro passo, analisa-se também se a conduta guarda relação com a função pública. Afinal, a Lei não se volta contra atos privados sem relação com a função exercida pelo agente.
Em segundo lugar, examina-se se a conduta, além de violar a regra de atuação, preenche os requisitos previstos na Lei de Improbidade, como, por exemplo, a presença de dolo específico, na forma dos §§1º e 2º do artigo 11. É nesta etapa que se verifica se o ato, para além de configurar uma ilegalidade ou uma infração disciplinar, se amolda à tipicidade dos artigos 9, 10 e 11 da Lei de Improbidade, seja a partir dos caputs (nos casos dos artigos 9 e 10) ou dos incisos [6]. Note-se que há, portanto, duplo juízo de subsunção da conduta do agente.
Ou seja, um ato, para ser caracterizado como ímprobo, precisa tanto incidir em violação da legislação específica que rege a conduta do agente público quanto, ainda, se amoldar aos requisitos previstos na Lei de Improbidade, sejam aqueles requisitos genéricos (como enquadramento do sujeito no conceito de agente público previsto no artigo 2º e a presença de dolo específico), sejam aqueles específicos previstos nos caputs e incisos dos artigos 9, 10 e 11. Isso jamais pode ser perdido de vista quanto estamos a tratar do sistema brasileiro de combate à improbidade e independe da natureza jurídica dos róis previstos na Lei. Do contrário, estará se criando improbidade pela via puramente interpretativa, o que não se pode aceitar num sistema sancionatório que se rege pela legalidade estrita.
[1] Com a Lei de Reforma, o caput do art. 11 passou a contar com a expressão “caracterizada por uma das seguintes condutas” antes da descrição das condutas, a indicar a taxatividade do rol.
[2] Na Lei de Reforma o legislador manteve a redação original dos caputs quanto ao uso da expressão "notadamente" antes da descrição dos atos de improbidade.
[3] NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. 4. ed. Madrid: Tecnos, 2005, p. 266.
[4] OSÓRIO, Fábio Medina. OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública, corrupção e ineficiência. 6.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 256-257.
[5] OSÓRIO, Fábio Medina. OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública, corrupção e ineficiência. 6.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 257.
[6] BONIFÁCIO, Lucas Grangeiro. Adequação normativa do ato ímprobo nos tipos previstos na Lei n. 8.429/92: alterações da Lei nº 14.230/2021. In.: MARINHO, Daniel Octávio Silva; PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura. Improbidade administrativa: aspectos materiais e processuais da Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021. Londrina: Thoth, 2023, p. 364.